Introdução
As sociedades limitadas encontram disciplina legal no Código Civil 1, regendo-se nas omissões do capítulo IV deste codex, pelas normas atinentes às sociedades simples, postas entre os arts. 997 a 1.0382 .
Prevê-se ainda, a possibilidade de que sociedades limitadas adotem a regência supletiva das normas atinentes às sociedades anônimas, qual seja a lei. 6.404 de 15 de dezembro de 19763 .
Em contrapartida a isto, o Departamento de Registro Empresarial e Integração – DREI, editou IN 38 4 , na qual elenca a possibilidade de se presumir a adoção da regência supletiva da lei 6.404/76 5 em sociedades limitadas.
1 A legislação aplicável às sociedades anônimas
O Código Civil vigente disciplina as sociedades limitadas entre os artigos 1.052 a 1.0876 , estabelecendo que, nas omissões do capítulo, reger-se-á pelas normas da sociedade simples, postas entre os artigos 997 a 1.0387 .
Dispõe o artigo 1.053:
Art. 1.053. A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste capítulo, pelas normas da sociedade simples.
Parágrafo único. O contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima.
O parágrafo único do supramencionado artigo estabelece possibilidade de regência supletiva da Lei das Sociedades Anônimas, qual seja a lei 6.404/76, desde que assim esteja previsto, de forma expressa, no contrato social da sociedade limitada em questão.
Sobre esta matéria, ensina Fábio Ulhoa Coelho.
O diploma legal de regência supletiva da limitada pode ser, porém, a lei das sociedade anônimas (LSA). Para isto, é necessário que os sócios contratem neste sentido. Em consequência, se o contrato social contemplar cláusula expressa, determinando a aplicação da lei das sociedades por ações aos casos não regulados no capítulo específico do Código Civil de 2002 referente às limitadas, o regime das sociedades simples não se aplica8 . (grifo nosso)
Ainda, nas palavras de Sérgio Campinho:
Quando na sua disciplina verificar-se omissão, aplica-se, como fonte de regência supletiva, o regramento próprio da sociedade simples, que se estabelece como norma geral em matéria de direito societário. Contudo, faculta-se aos sócios, mediante expressa previsão contratual, a opção pela regência subsidiária por meio das regras prescritas na lei das sociedades anônimas 9. (grifo nosso)
Note-se, portanto, dos fragmentos de doutrina acima colecionados, que o entendimento, em consonância com o disposto na própria letra da lei no artigo 1.053, parágrafo único, do Código Civil, que para haver regência supletiva da lei 6.404/76 à sociedade limitada, é imperioso que o contrato social traga menção expressa sobre o tema.
Tal regência supletiva se destina a completar as lacunas contratuais, incidindo tão e somente sobre matérias que poderiam ser disciplinadas pela via contratual 10.
Além da possibilidade de se aplicar a Lei das Sociedades Anônimas por via supletiva, entende-se que a mesma é aplicável pela via analógica, como bem considera o Fábio Ulhoa Coelho ao afirmar que ''(...) a lei das sociedades por ações, por sua abrangência e superioridade técnica, tem sido aplicada a todos tipos societários, inclusive à limitada, também por via analógica'' 11.
2 A nova Instrução Normativa 38/17
Desconsiderando a norma legal, que exige previsão expressa em cláusula contratual da adoção da regência supletiva da lei 6.404/76, o Departamento de Registro Empresarial e Integração – DREI, editou a IN 38/17, em vigor a partir de 2 de maio de 2017.
Dispõe o manual de registro:
O contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima, conforme art. 1.053, parágrafo único do Código Civil.
Para fins de registro na Junta Comercial, a regência supletiva:
I – poderá ser prevista de forma expressa; ou
II- presumir-se-á pela adoção de qualquer instituto próprio das sociedades anônimas, desde que compatível com a natureza da sociedade limitada, tais como:
a) Quotas em tesouraria;
b) Quotas preferenciais;
c) Conselho de Administração; e
d) Conselho fiscal.
Ora, considerando que a própria norma legal exige a previsão contratual expressa da regência supletiva, causa, no mínimo, estranheza tal possibilidade de presunção inserida pela Instrução Normativa.
Primeiramente porque a sociedade limitada é uma sociedade de natureza contratual, na qual as relações são pautadas pelas disposições de vontade destes12 , estabelecidas no contrato social.
Não há de se falar, portanto, em presunção de vontades que não estejam postas no contrato social, uma vez que este é o instrumento de manifestação das vontades que regerão a relação empresarial entre os sócios, nos limites da lei.
Presumir a adoção da regência supletiva parece, inclusive, afrontar a liberdade de contratar pautada na autonomia de vontade13 dos sócios, positivado no artigo 421 do Código Civil.
A lógica adotada pelo DREI, de que a adoção de qualquer instituto próprio das sociedades anônimas, desde que compatível com a natureza da sociedade limitada, autoriza a presunção da aplicação supletiva da lei 6.404/76, não pode ser reconhecida.
Em primeiro lugar, porque se reconhece a possibilidade de aplicação da Lei das Sociedades Anônimas por analogia às sociedades limitadas, em casos de matérias não disciplinadas no Código Civil, como já mencionado anteriormente.
Além disso, alguns dos institutos elencados pela Instrução Normativa não poderiam admitir tal presunção.
Note-se que a possibilidade de sociedades limitadas adquirirem suas próprias quotas, adotando o instituto das ''quotas em tesouraria'' é matéria que vem sendo discutida doutrinariamente, havendo divergência.
O DREI, em Instrução Normativa anterior14 , vedava tal prática, entendendo ser incompatível com a regulamentação das sociedades limitadas.
Agora, em mudança de entendimento, admite ''quotas em tesouraria'' em sociedades limitadas, mas passa a presumir a adoção da lei 6.404/76 em sociedades que instituírem as mesmas.
Ainda, no que tange ao conselho fiscal, o mesmo não pode ser entendido como instituto próprio de sociedades anônimas, uma vez que encontra previsão legal dentro das normas que regem sociedades limitadas, entre os artigos 1.066 e 1.070 do Código Civil, sendo sua adoção uma faculdade dos sócios.
Neste sentido:
O contrato social pode, para melhor instrumentalizar o exercício do direito de fiscalização pelos sócios, instituir conselho fiscal. É sempre facultativa a criação em contrato desse instrumento de fiscalização. 15 (grifo nosso)
Faculta-se aos sócios, para melhor ordenar a fiscalização, a adoção de um conselho fiscal. Para tal, basta a previsão de cláusula contratual neste sentido (artigo 1.066) 16 . (grifo nosso)
Assim sendo, demonstra-se que o conselho fiscal é um órgão típico das sociedades limitadas, prevista sua instalação em seu próprio regramento no Código Civil. Não se trata, portanto, de órgão típico, apenas, de sociedade anônima, sendo facultada sua instalação em sociedades limitadas.
3 Competência do DREI
As competências de atuação do Departamento de Registro Empresarial e Integração – DREI estão postas na lei 8.934/94 17 , que em seu art. 4º elenca as finalidades deste órgão do comércio.
O supramencionado artigo, em seu inciso III, outorga ao DREI mera competência para solucionar dúvidas ocorrentes de interpretação das leis, regulamentos e demais normas relacionadas com o registro de empresas mercantis, através da edição de instruções18 .
Ao estabelecer a presunção da adoção da lei 6.404/76 afronta o disposto de forma expressa no Código Civil, em seu art. 1.053, posto que deixa de observar a normativa que estabelece ser necessária cláusula contratual acordada entre os sócios estabelecendo a regência supletiva da Lei das Sociedades Anônimas.
Assim sendo, tal hipótese de presunção acarreta abuso, por parte do DREI, das competências que lhe são legalmente outorgadas.
Conclusão
Ao presumir a regência supletiva da Lei das Sociedades Anônimas, sem que haja expressa previsão contratual, indo ao encontro com a própria norma legal, que exige previsão contratual para que se estabeleça a regência supletiva da lei 6.404/76, age o DREI em abuso das competências que lhe são legalmente outorgadas.
O entendimento firmado na Instrução Normativa 38/17 não possui respaldo legal, e sua aplicabilidade fere princípios do direito privado, como a autonomia das vontades das partes e a liberdade de contratar.
Assim sendo, conclui-se que não se pode, em uma sociedade pautada pela característica contratual, obrigar-se que seja regida por uma norma legal que não está expressamente prevista em cláusula contratual, tampouco em lei, posto que a regência subsidiária estabelecida pelo Código Civil remete ao regramento das sociedades simples.
______________
1- BRASIL, lei 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em <lei> acessado em: 07/04/17.
2- BRASIL, lei 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em <lei> acessado em: 07/04/17.
3- BRASIL, lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Disponível em: <lei> acessado em 07/04/17.
4- BRASIL, Departamento de Registro Empresarial e Integração – DREI, instrução normativa 38 de 2 de março de 2017. Disponível em<IN 38> acessado em: 07/04/17.
5- BRASIL, lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Disponível em: <lei> acessado em 07/04/17.
6- BRASIL, lei 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em <lei> acessado em: 07/04/17.
7- BRASIL, lei 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em <lei> acessado em: 07/04/17.
8- COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. Direito de Empresa. Ed. Saraiva. 19ª edição. P.154.
9- CAMPINHO, Sérgio. O direito de empresa à luz do novo código civil. Ed. Renovar. 7ª ed. Rio de Janeiro. 2006. P.150.
10- BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. Ed. Renovar. 12 ed. Rio de Janeiro. 2009. P. 122 e 123.
11- COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. Direito de Empresa. Ed. Saraiva. 19ª edição. P. 155.
12- COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. Direito de Empresa. Ed. Saraiva. 19ª edição. São Paulo. 2007. P. 153.
13- BRASIL, lei 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em <lei> acessado em: 07/04/17.
14- BRASIL, Departamento de Registro Empresarial e Integração – DREI, instrução normativa 10 de dezembro de 2013. Disponível em <IN 10> acessado em: 07/04/17.
15- COELHO, Fábio Ulhoa. A Sociedade Limitada no Novo Código Civil. Ed. Saraiva. Ano 2003. São Paulo. p. 82.
16- CAMPINHO, Sérgio. O direito de empresa à luz do novo código civil. Ed. Renovar. 7ª ed. Rio de Janeiro. 2006. P.238.
17- BRASIL, lei 8.934 de 18 de novembro de 1994, publicada no Diário Oficial da União em 21 de novembro de 1994, disponível em <lei> e acessado em 23/04/16.
18- BRASIL, lei 8.934 de 18 de novembro de 1994, publicada no Diário Oficial da União em 21 de novembro de 1994, disponível em <lei> e acessado em 23/04/16.
_____________
BRASIL, Departamento de Registro Empresarial e Integração – DREI, instrução normativa 10 de dezembro de 2013. Disponível em <IN 10> acessado em: 07/04/17.
BRASIL, Departamento de Registro Empresarial e Integração – DREI, Instrução Normativa 38 de 2 de março de 2017. Disponível em<IN 38> acessado em: 07/04/17.
BRASIL, lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Disponível em: <lei 6.404 > acessado em 07/04/17.
BRASIL, lei 8.934 de 18 de novembro de 1994, publicada no Diário Oficial da União em 21 de novembro de 1994, disponível em <lei 8.934> e acessado em 23/04/16.
BRASIL, lei 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em <lei 10.406> acessado em: 07/04/17.
BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. Ed. Renovar. 12 ed. Rio de Janeiro. 2009. P. 122 e 123.
CAMPINHO, Sérgio. O direito de empresa à luz do novo código civil. Ed. Renovar. 7ª ed. Rio de Janeiro. 2006. P.238.
COELHO, Fábio Ulhoa. A Sociedade Limitada no Novo Código Civil. Ed. Saraiva. Ano 2003. São Paulo. p. 82.
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. Direito de Empresa. Ed. Saraiva. 19ª edição. São Paulo. 2007. P. 153.
____________________
*Paola Pereira Martins é bacharela em Direito e pós-graduanda em Direito Societário.