Se denota cada vez mais corriqueira a prática comercial referente à remessa de mercadorias por fornecedor hábil para adquirentes que as recebem sem custo de aquisição, isto é, com bonificações.
Estabelecer e delinear de modo efetivo as características e os requisitos para a incidência do ICMS neste tipo de operação se faz necessário, pois, considerando que é tarefa da lei o estabelecimento da referida exação, isto é, do instrumento normativo/legislativo pertinente e embasador de todos os preceitos necessários para emplacar e demonstrar a hipótese de incidência tributária, certo é que deverá haver um integral atendimento dos preceitos legislativos e constitucionais pertinentes ao caso.
O tema ora em análise, não obstante o atual posicionamento do E. Superior Tribunal de Justiça a respeito, é de suma importância visto que dele emana grande repercussão procedimento-legal e econômica para o campo empresarial bem como reflete de maneira integral no montante tributário que é atribuído às empresas suportarem.
Dito isso, vale destacar que o mandamento constitucional, em seu artigo 1551 , estabelece a competência dos Estados para a instituição do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias (ICMS).
Nesse mesmo sentido, a LC 87/96 veio a estabelecer os critérios gerais de exigência do ICMS, definindo a regra matriz da hipótese de incidência tributária a ser aplicada em todo o território nacional. Nos preceitos por ela estabelecidos, prevê-se que a base de cálculo do tributo será o valor da operação na saída das mercadorias. Veja-se:
''Art. 13. A base de cálculo do imposto é:
I - na saída de mercadoria prevista nos incisos I, III e IV do art. 12, o valor da operação;
II - na hipótese do inciso II do art. 12, o valor da operação, compreendendo mercadoria e serviço;
(…)''
Em se tratando de remessa em bonificação, ao revés da regular operação de venda, o remetente não firma qualquer negócio jurídico de venda dos bens abarcados pela operação. Trata-se, em verdade, da concessão de um bônus ao adquirente das mercadorias, seja na realização de determinada operação de venda, seja pelo estabelecimento de negócios entre as partes envolvidas.
Em que pese haja a circulação física desses bens (mercadorias), isto é, do remetente para o adquirente, não há que se falar em atividade de mercancia. Isso porque, não há nenhum tipo de intuito negocial de venda desses bens, de modo que, consequentemente, sequer podem ser entendidos como mercadorias.
Quanto à definição de mercadoria, o I. doutrinador Roque Antonio Carraza preceitua que:
''É o caso de rememorarmos que mercadoria, nos patamares do Direito, é o bem móvel, sujeito à mercancia. É, se preferirmos, o objeto da atividade mercantil, que obedece, por isso mesmo, ao regime jurídico comercial.
(…)
Não é qualquer bem móvel que é mercadoria, mas tão-só aquele que se submete à mercancia. Podemos, pois, dizer que toda mercadoria é bem móvel, mas nem todo bem móvel é mercadoria. Só o bem móvel que se destina à prática de operações mercantis é que assume a qualidade de mercadoria. '' 2
Podemos verificar que a circulação, dessa forma, para fins de configuração da hipótese de incidência tributária do ICMS, se relaciona com a mudança de titularidade de um bem que é objeto de mercancia, ou seja, a mercadoria. Veja-se que é requisito intrínseco e essencial das operações mercantis a transferência de um bem a outrem mediante o recebimento do preço que, via de regra, visa ao lucro do vendedor.
Vale destacar que, tão importante quanto a natureza do bem é a sua destinação, isto é, para onde será encaminhado. Um determinado bem não será mercadoria por sua própria natureza. A natureza mercantil da mercadoria não decorre das propriedades que lhe são atribuídas, mas sim de sua destinação específica.
Estes requisitos, no entanto, não se encontram presentes na remessa em bonificação. Isso porque, não há qualquer negócio jurídico mercantil que possuam esses bens como objeto, além do que não há qualquer preço a ser recebido como contraprestação pela circulação dos referidos bens. A sua única conexão a determinado negócio jurídico denota-se reflexa, isto é, acompanha, em geral, a venda de mercadorias.
Por esses motivos, não é possível se falar em incidência de ICMS sobre as remessas em bonificação realizadas, pois, sendo certo a inexistência da hipótese material da incidência do tributo estadual, a sua exigência se torna inequivocamente indevida e imaterializada.
Noutro ponto, ciente da ausência das características necessárias da hipótese de incidência do ICMS nas remessas de bonificação, o legislador foi claro ao dispor quais valores, dentre aqueles existentes na relação mercantil, se enquadram na hipótese de incidência do imposto. Veja-se:
''Art. 13. A base de cálculo do imposto é:
(…)
§ 1o Integra a base de cálculo do imposto, inclusive na hipótese do inciso V do caput deste artigo:
I - o montante do próprio imposto, constituindo o respectivo destaque mera indicação para fins de controle;
II - o valor correspondente a:
a) seguros, juros e demais importâncias pagas, recebidas ou debitadas, bem como descontos concedidos sob condição;
b) frete, caso o transporte seja efetuado pelo próprio remetente ou por sua conta e ordem e seja cobrado em separado. ''
Pelo quanto acima destacado, se pode perceber que o legislador entendeu por bem incluir apenas os descontos condicionais, isto é, aqueles que dependam de evento futuro e incerto. A dicção do termo condição, vale destacar, emana do artigo 121 do Código Civil 3, o qual subordina o efeito do negócio jurídico a evento futuro e incerto.
Seguindo esse raciocínio, se pode verificar que os descontos incondicionais serão aqueles que não dependem, como visto, de evento futuro e incerto. Veja-se o entendimento que fora fixado pelo E. Superior Tribunal de Justiça:
''A jurisprudência desta Corte assentou entendimento de que os descontos incondicionais concedidos nas operações mercantis, assim entendidos os abatimentos que não se condicionam a evento futuro e incerto, podem ser excluídos da base de cálculo do ICMS, pois implicam a redução do preço final da operação de saída da mercadoria.'' 4
Cumpre destacar que a análise pela Corte superior do caso acima serviu de fundamento para a edição da súmula 457/STJ, a qual reconhece claramente que ''os descontos incondicionais nas operações mercantis não se incluem na base de cálculo do ICMS''.
Dessa forma, diante do conteúdo sumular exposto, não há espaço para discussão meritória sobre o assunto, de modo que os descontos incondicionais não integram a base de cálculo do imposto estadual.
A relevância dessa questão para a presente análise, vale dizer, é que o E. Superior Tribunal de Justiça reconheceu a equiparação das bonificações aos descontos incondicionais para fins de exclusão de tais valores do campo de incidência tributária do ICMS.
Ao julgar o recurso especial 1.111.156/SP, sob a ótica e sistemática dos recursos repetitivos (artigo 543-C do Código de Processo Civil de 1973), a Seção de Direito Público da Corte Superior, ao consolidar a interpretação da legislação, reconheceu a impossibilidade de incidência do ICMS sobre as remessas em bonificação. Senão vejamos:
''A matéria controvertida, examinada sob o rito do art. 543-C do Código de Processo Civil, restringe-se tão-somente à incidência do ICMS nas operações que envolvem mercadorias dadas em bonificação ou com descontos incondicionais; não envolve incidência de IPI ou operação realizada pela sistemática da substituição tributária.
A bonificação é uma modalidade de desconto que consiste na entrega de uma maior quantidade de produto vendido em vez de conceder uma redução do valor da venda. Dessa forma, o provador das mercadorias é beneficiado com a redução do preço médio de cada produto, mas sem que isso implique redução do preço do negócio.
A literalidade do art. 13 da LC 87/96 é suficiente para concluir que a base de cálculo do ICMS nas operações mercantis é aquela efetivamente realizada, não se incluindo os ''descontos concedidos incondicionais''.
A jurisprudência desta Corte Superior é pacífica no sentido de que o valor das mercadorias dadas a título de bonificação não integra a base de cálculo do ICMS.''
Logo, as remessas em bonificação realizadas pelo(a) remetente não devem sofrer qualquer tipo de incidência e exação do imposto estadual ora em comento, em obediência à legislação federal de regência e à jurisprudência do E. Superior Tribunal de Justiça, construída e fundamentada tendo por base a sistemática de recursos repetitivos.
Diante deste cenário, é possível opinar sobre a patente existência do direito de determinados contribuintes, que se encontrem na qualidade de remetentes de mercadorias, pleitearem a devolução dos valores recolhidos no tocante à incidência ICMS sobre a remessa realizada em bonificação.
Não obstante o quanto já esposado, os contribuintes devem-se atentar para o embasamento documental ao buscar medida judicial que lhe conceda o direito aqui exposto, pois, em que pese haja entendimento legal e jurisprudencial favorável, necessário se faz a apresentação contundente dos documentos que demonstrem e fundamentem o quanto pleiteado.
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1- ''Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
(…)
II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; ''
2- CARRAZA, Roque Antonio. ICMS. 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 41.
3- ''Art. 121. Considera-se condição a cláusula que, derivando exclusivamente da vontade das partes, subordina o efeito do negócio jurídico a evento futuro e incerto. ''
4- ''STJ, REsp 873.203/RJ, Primeira Turma, rel. min. José Delgado, 17/04/07''.
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*Diogenys de Freitas Barboza é advogado tributarista no escritório Correa Porto Sociedade de Advogados; Membro efetivo da Comissão do Jovem Advogado da 104ª Subseção da OAB/SP.