O Réveillon é o dia em que nos despedimos do ano que se esgotou, desejando ver as experiências malogradas definitivamente guardadas nas gavetas da memória. Seja por um brinde da melhor champanhe francesa, ou pelos saltos sobre as ondas do mar, ou tão somente com o olhar catatônico em frente à televisão, até mesmo o mais pessimista dos homens ousa imaginar que dali para frente muita coisa poderá mudar. Todavia, no campo da política, quem desse sonho compartilhou enquanto realizava a contagem regressiva nos dez segundos finais de 2017, levou menos de uma semana para perceber que, nesse aspecto, o mais adequado teria sido o cumprimento de "feliz ano velho", parafraseando a obra do escritor Marcelo Rubens Paiva.
A nomeação da deputada federal Cristiane Brasil para a pasta do Ministério do Trabalho foi o início de uma nova crise institucional que insiste em não ter fim. Por decisão em liminar de um magistrado da Justiça Federal, foi suspensa a solenidade de posse até que o mérito da ação popular seja definitivamente julgado. A providência judicial teve como fundamento a violação ao princípio da moralidade (art. 37, caput, da CF), pelo fato de a referida parlamentar ter sido condenada pela Justiça do Trabalho, devido ao descumprimento de determinadas regras da CLT. A notícia, depois de ter sido amplamente divulgada pelos veículos de comunicação, causou considerável alvoroço nas redes sociais, gerando o clima ideal para que o TRF confirmasse a decisão.
Enquanto a AGU avalia se levará a questão ao STJ, e, eventualmente, ao STF, os juristas discutem se os argumentos apresentados até a presente data pelo Poder Judiciário são idôneos para justificar a medida cautelar. Questiona-se se a existência de condenações perante a Justiça do Trabalho seriam impedimentos constitucionais para que um cidadão pudesse assumir a função de longa manus da presidência da República.
De acordo com o art. 87 da Lei Maior, "os Ministros de Estado serão escolhidos dentre brasileiros maiores de vinte e um anos e no exercício dos direitos políticos.". Preenchidos os mínimos requisitos acima expostos, compete ao presidente da República, por critérios de caráter meramente subjetivo, a escolha de seus ministros, embora o ato de nomeação não fique livre do exame de legalidade e moralidade a ser exercido pelos membros do Judiciário. A indicação de um estrangeiro, por exemplo, para ocupar o cargo de ministro, sem sombra de dúvida, teria de sofrer o controle judicial, em razão do flagrante desrespeito ao texto da norma constitucional. No tocante à moralidade, o mesmo ocorreria caso o governo pretendesse dar posse a um condenado por tráfico de drogas para comandar o Ministério da Saúde. Ocorre que, no caso em tela, a situação mostra-se bem peculiar. A razão da medida judicial deve-se exclusivamente ao fato de a parlamentar indicada para ocupar o cargo ter deixado de assinar a carteira de trabalho de dois dos seus empregados, o que foi regularizado a posteriori mediante o pagamento de multa na esfera administrativa. Em que pese o desrespeito aos direitos trabalhistas ser conduta reprovável, totalmente opostos aos discursos elogiosos por parte dos trabalhadores brasileiros, bem como da classe patronal, não se trata de infração grave, muito menos de um relevante penal. Não estamos aqui tratando de crime contra a pessoa, como na hipótese da redução à condição análoga a de escravo, previsto no art. 149 do Código Penal, nem outro tipo penal elencado entre os crimes contra a organização do trabalho, título do mesmo diploma legal (arts. 197 ao 207). E ainda que houvesse a subsunção do fato a alguma norma penal incriminadora, a proibição de assumir a função ministerial não estaria entre os efeitos da condenação, para que pudessem tentar justificar odioso caráter perpétuo do castigo extremo.
Qualquer pessoa que se preste a investir no setor produtivo, ou em atividades voltadas para a prestação de serviços, não está imune às demandas trabalhistas, mesmo quando imbuídos de consciência social, espírito fraternal e total inclinação ao cumprimento da legislação vigente. Por diversas vezes, a interpretação equivocada da norma, ou até mesmo o seu desconhecimento, induz o patrão, na condição de empresário ou não, a agir à margem da ordem jurídica. Neste contexto, incluem-se aqueles que optam pelas relações informais, acreditando, sinceramente, estarem agindo de forma mais benéfica do ponto de vista do trabalhador, como também os que, abarrotados de compromisso, negligenciam quanto aos deveres burocráticos, deixando para depois determinados compromissos que, na falta, acarretam onerosas sanções, inimagináveis para quem não atua na área do Direito.
Há anos tem se visto uma tentativa frustrada de buscar requisitos de ordem puramente objetiva para atestar a competência e a retidão dos profissionais de forma geral. Essa é uma das razões para que muitas das nossas instituições não consigam funcionar em sua plenitude, ficando aquém das expectativas nelas depositadas. A maioria das universidades, por exemplo, exige doutorado para integrar o corpo docente, ficando em segundo plano virtudes como didática, experiência prática, cultura geral etc. Assim, no campo da engenharia, o bacharel que jamais edificou um prédio, ou sequer um barraco de madeira, vai para a sala de aula ensinar o que nunca aprendeu. Em contrapartida, gênios como Oscar Niemayer, se quisessem lecionar, seriam reprovados em exame seletivo por terem se limitado ao bacharelado no mundo acadêmico. Se não tem título, não serve! Na questão do Ministério do Trabalho, o que ocorre é semelhante, apesar de a análise focar um evento positivo, ao invés de negativo: se respondeu a uma reclamação trabalhista, não está apto a ocupar o cargo! Despertaria curiosidade se fizessem um levantamento de todas as autoridades do país que já figuraram como réus em algum tipo de processo. Seguindo esta mesma linha de avaliação, cuja conclusão é alcançada em detrimento do raciocínio, talvez apenas dez por cento teriam legitimidade para o exercício de suas respectivas funções.
Na realidade, os que aprovam a vedação de cargos no Poder Executivo para a Deputada Cristiane Brasil pretendem causar embaraços ao Governo Federal, como costumam fazer os políticos de oposição, e com mais afinco ainda quando às vésperas das eleições presidenciais. Também há de se ponderar se não constitui um ataque indireto ao deputado Roberto Jefferson, líder do PTB, em razão do fato de ser pai da mandatária em questão. Há quem não esteja satisfeito com a sua condenação pelo escândalo do mensalão à pena privativa de liberdade, a qual cumpriu fielmente, mesmo quando era submetido a um sofrível tratamento para o câncer. É como se o tamanho do erro sempre sobrepujasse à dosimetria da pena; como se para certos pecados, o arrependimento jamais desviasse o confesso do caminho rumo ao inferno.
O Brasil vem se transformando em um Estado policial, e com o agravante da hipocrisia endêmica. Em um clima de constante patrulhamento ideológico, todos olham para os erros dos que caminham ao lado, mas ninguém faz o exercício diário de voltar o olhar para si mesmo. Por essa razão, virou rotina ouvirmos discursos moralistas saindo da boca dos degenerados pelo enriquecimento sem causa, pelo ócio, ou pelo comportamento que se qualificaria como ultrajante até para os habitantes de Sodoma e Gomorra. Com o dedo em riste, apontam as inferioridades do mundo inteiro, ao estilo de quem se apavora com a possibilidade de ser revelado algo de muito podre que guarda em segredo.
O resultado do excesso de vigilância sobre a vida alheia é o retrógrado aumento da judicialização dos conflitos sociais. Já não existe mais um perfil das ações que vão desaguar no STF, pois, em plenário, chega-se a discutir até mesmo questões envolvendo briga de galo. E estando as câmeras ligadas, os discursos podem durar algumas horas. No momento atual, o alvo é a União, que está perdendo o controle sobre as próprias decisões que dependeriam exclusivamente de um juízo de conveniência e oportunidade. Dentro ou fora da legalidade, o controle extrapola o ponderável e ameaça as instituições democráticas.
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*Henrique Nelson Calandra é desembargador. Especialista em Direito Empresarial, presidente da AMB - Associação dos Magistrados do Brasil nos anos de 2011-2013, ex-presidente da APAMAGIS - Associação Paulista de Magistrados e professor emérito da Escola Paulista da Magistratura.
*Sergio Ricardo do Amaral Gurgel é advogado na Amaral Gurgel Advogados, autor da Editora Impetus, professor de Direito Penal e Processo Penal.