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Medidas cautelares diversas da prisão também exigem o "perigo da liberdade"

A valer, rigorosamente consensual na mais abalizada doutrina sobre o tema a compreensão de que as cautelares alternativas, por também implicarem, ainda que com intensidade inferior à da prisão, restrição à liberdade de locomoção, igualmente reclamam, pois, o periculum libertatis.

18/1/2018

Desde o advento da lei 12.403, de 4 de maio de 2011 – a qual, ao contemplar ''várias alternativas à prisão (min. ROGÉRIO SCHIETTI CRUZ, decisão sobre medida liminar no HC 282.509/SP, DJe 22/11/13) – , baniu a ''bipolaridade cautelar'' do sistema processual penal brasileiro (''prisão ou liberdade provisória''), não raro tem decidido a Justiça Criminal, na hipótese de estimar despropositada a prisão preventiva, substitui-la, automaticamente e, quase sempre, no plural, por medida cautelar diversa (CPP, art. 319).

Exemplificativamente: ''Analisando-se os requisitos presentes no artigo 312, do CPP, pode-se concluir que, embora o delito em comento autorize a custódia cautelar – crime doloso punido com reclusão e haja uma probabilidade de condenação (fumus boni iuris) – não estão presentes os motivos que justifiquem a manutenção da medida (periculum libertatis). Não se verificando no caso em debate o periculum libertatis, isto é, a necessidade de manutenção da prisão cautelar, impunha-se a não decretação da prisão preventiva no caso vertente (...) Isto posto, CONCEDE-SE PARCIALMENTE A ORDEM de habeas corpus impetrada em favor de (...), para deferir as liberdades provisórias às pacientes, com a imposição das medidas cautelares previstas nos incisos I, III, IV e V do artigo 319 do Código de Processo Penal, determinando-se a expedição dos competentes alvarás de soltura clausulados em seus benefícios” (TJSP, HC 2150167-05.2017.8.26.0000, DJ 20/09/17).

Posta de lado, aqui, a irremissível impropriedade jurídica da substituição de prisão preventiva por liberdade provisória 1, decisões como a acima coligida evidenciam que a maioria dos aplicadores do direito, decerto porque ainda atada a seca dicotomia do sistema anterior, em face da qual, como alternativa à segregação, havia apenas a liberdade provisória – e, ademais, desde que presente alguma excludente da ilicitude ou ausentes quaisquer das hipóteses autorizativas da prisão preventiva – , insiste em ver e tratar as cautelares diversas do encarceramento como um ''favor'' ao investigado ou acusado ou, noutra perspectiva, como ''preço mínimo'' a ser por ele necessariamente pago para e por se ''livrar'' da prisão em flagrante ou preventiva, independentemente da ausência do denominado periculum libertatis.

Entretanto, a imposição de medidas cautelares diversas da prisão em moldura fática composta pelo reconhecimento da inexistência de perigo da liberdade colide frontalmente com a própria ratio essendi do regime instituído pela lei 12.403/11, tanto quanto e, por conseguinte, com a lógica intrínseca revelada pelos preceitos legais nos quais se consubstancia.

A valer, rigorosamente consensual na mais abalizada doutrina sobre o tema a compreensão de que as cautelares alternativas, por também implicarem, ainda que com intensidade inferior à da prisão, restrição à liberdade de locomoção, igualmente reclamam, pois, o periculum libertatis.

Em alentada monografia, Rodrigo Capez: ''Por outro lado, afirmar-se que a prisão cautelar seja a ultima ratio não significa que a imposição de qualquer outra medida dela diversa constitua desdobramento ordinário da marcha processual, haja vista que, em maior ou menor grau, sempre haverá intervenção em um direito fundamental. Todas as medidas cautelares, indistintamente, se destinam a enfrentar uma situação de crise processual, representada pelo periculum libertatis, e somente a presença dessa situação extraordinária, nos casos expressamente previstos em lei, autoriza o recurso a esse meio também excepcional, de modo a romper-se a inviolabilidade da liberdade individual.'' (Obra anteriormente citada, pg. 358).

Aury Lopes Jr: ''Sem dúvida a maior inovação desta reforma do CPP em 2011, ao lado da revitalização da fiança, é a criação de uma polimorfologia cautelar, ou seja, o estabelecimento de medidas cautelares diversas da prisão, nos termos do art. 319, rompendo com o binômio prisão-liberdade até então vigente. Importante sublinhar que não se trata de usar tais medidas quando não estiverem presentes os fundamentos da prisão preventiva. Nada disso. São medidas cautelares e, portanto, exigem a presença do fumus commissi delicti e do periculum libertatis, não podendo, sem eles, ser impostas. Assim, se durante uma prisão preventiva, desaparecer completamente o requisito e/ou fundamento, deve o agente ser libertado sem a imposição de qualquer medida alternativa (...) A medida alternativa somente deverá ser utilizada quando cabível a prisão preventiva, mas, em razão da proporcionalidade, houver uma outra restrição menos onerosa que sirva para tutelar aquela situação.'' (Prisões cautelares. 4ª edição. SP: Saraiva, 2013, pg. 177).

Gustavo Badaró: ''A partir dos critérios de ''necessidade'' e ''adequação'' (CPP, art. 282, caput, I e II), e da proporcionalidade em sentido estrito, é de se definir o relacionamento das medidas cautelares diversas da prisão, denominadas ''outras medidas cautelares'' (CPP, art. 319 e 320), com a prisão preventiva (art. 311 e ss), que se tornou, de forma ainda mais clara, a prisão cautelar por excelência e o parâmetro legal geral para a imposição da privação da liberdade no curso do processo, ante a nova regra do art. 310, caput, II, do CPP. As medidas cautelares previstas no art. 319, bem como a medida cautelar estabelecida no art. 320 são medidas cautelares alternativas à prisão preventiva ou prisão em flagrante delito. Não se trata de medidas cautelares substitutivas da prisão. A diferença é fundamental. No caso de medidas substitutivas, a prisão preventiva é concretamente cabível, mas o juiz pode deixar de aplicá-la, substituindo-a por medida menos gravosa, não privativa de liberdade. É o que estabelece, por exemplo, a StPO alemã, em seu § 116: (...) Já no caso de medidas alternativas, significa que se está diante de uma situação em que, concretamente, ou se admite a prisão preventiva, ou se admite outra coisa, isto é, uma das medidas cautelares dos arts. 319 ou 320, acrescidos pela lei 12.403/11. Não haverá situação em que ambas as modalidades de medidas cautelares – prisão preventiva, de um lado, e medidas alternativas do art. 319 e 320, de outro – sejam, em concreto, igualmente possíveis. Se a prisão é cabível, significa que o grau de cautelaridade exigido para o caso é máximo, sendo insuficiente a imposição de medidas menos gravosas, porque não assegurarão suficientemente a instrução ou os fins do processo. Por outro lado, nas hipóteses em que a necessidade de assegurar a instrução ou a aplicação da lei penal possa ser suficiente e adequadamente garantida por uma medida menos intensa que a prisão preventiva (p.ex., proibição de ausentar-se do país, ou o recolhimento domiciliar noturno), a toda evidência, o cárcere mostrar-se-á exorbitante e excessivo, não sendo justificável a privação da liberdade de locomoção de quem a Constituição presume inocente. (...) Nenhuma medida cautelar pessoal no processo penal poderá ser decretada sem que haja fumus commissi delicti e periculum libertatis. Não é diferente com as medidas cautelares alternativas à prisão previstas nos arts. 319 e 320 do CPP (...) Para a decretação das medidas alternativas à prisão também é necessário que ao pressuposto positivo se some ao menos uma hipótese de periculum libertatis (...)'' (''Medidas cautelares alternativas à prisão preventiva''. In: Medidas cautelares no processo penal. Coordenação: Og Fernandes. SP: RT, 2012, pgs. 210/211 e 218/219).

E, na mesma senda, o magistério pretoriano: '' (...) o Supremo Tribunal Federal, no Habeas Corpus 138.453/PR, relator o ministro Dias Toffoli, por decisão proferida em 14/12/16, adotando os fundamentos expostos neste trabalho, concluiu que a imposição de qualquer medida cautelar pessoal exige a indicação dos pressupostos fáticos que autorizam a conclusão de que o imputado, em liberdade, criará riscos para os meios ou o resultado do processo, sob pena de lhe faltar justificação constitucional. Nesse writ, reputou-se ilegal a imposição da medida cautelar de fiança, em razão de o juízo de primeiro grau ter se limitado a repetir a fórmula legal prevista no art. 319, VIII, do Código de Processo Penal, sem indicar elementos fáticos concretos evidenciadores do periculum libertatis.'' (Rodrigo Capez: obra anteriormente citada, pg. 358).

No STJ, em acórdão lavrado pelo ministro Rogerio Schietti Cruz, averbou-se: ''Ordem concedida para, confirmada a liminar, cassar a decisão que decretou a prisão preventiva do paciente, ressalvada a possibilidade de ser editada nova decisão, em termos que demonstrem a análise fundamentada da cautelaridade justificadora da mantença do cárcere preventivo, e de serem fixadas medidas cautelares alternativas, nos termos do art. 319, c/c o art. 282, ambos do Código de Processo Penal, mediante fundamentação idônea (...)” (HC 402.071/SP, 6ª Turma, DJe 27/09/17).

Em suma, se as cautelares diversas da prisão reclamam, para se revestirem de ''justificação condicional'', ''fundamentação idônea''– leia-se: ''indicação dos pressupostos fáticos que autorizam a conclusão de que o imputado, em liberdade, criará riscos para os meios ou o resultado do processo'' – , inelutável convir não constituírem elas consectário automático e obrigatório do afastamento da prisão preventiva, mas medidas que, por também importarem restrição à liberdade ambulatorial, igualmente demandam – e com a nota da imprescindibilidade – o periculum libertatis.

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1- Confira-se, entre outros, Rodrigo Capez: ''A liberdade provisória sem fiança não perdeu sua natureza de contracautela, uma vez que, tal como no regime anterior à lei 12.403/11, pressupõe o estado coercitivo da prisão em flagrante. É, portanto, uma contracautela à prisão em flagrante, a qual substitui.'' (Prisão e medidas cautelares diversas. SP: Quartier Latin, 2017, pg. 395).

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*Leônidas Ribeiro Scholz é advogado criminal em SP, conselheiro do IDDD – Instituto de Defesa do Direito de Defesa Márcio Thomaz Bastos e sócio da Advocacia Criminal Leônidas Scholz.

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