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As limitações à incidência do Código de Defesa do Consumidor na relação entre concessionário e usuário de serviço público

No dia 30 de junho de 2006, foi publicado acórdão da terceira turma do Superior Tribunal de Justiça que, por unanimidade, proveu o recurso especial n.° 647.710/RJ interposto contra decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

12/7/2006


As limitações à incidência do Código de Defesa do Consumidor na relação entre concessionário e usuário de serviço público

Paulo Osternack Amaral*


1. No dia 30 de junho de 2006, foi publicado acórdão da terceira turma do Superior Tribunal de Justiça que, por unanimidade, proveu o recurso especial n.° 647.710/RJ interposto contra decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.


O caso concreto dizia respeito a uma colisão de veículo automotor com animal de porte em rodovia administrada por concessionária de serviço público. O acidente acarretou o falecimento da usuária e, diante disso, o seu filho ajuizou demanda indenizatória em face da concessionária, tencionando obter ressarcimento por danos morais.


2. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, reformando a sentença de procedência, consignou a inexistência de nexo de causalidade no caso concreto, na medida em que não seria de responsabilidade da concessionária o controle do acesso de animais na pista de rolamento, pois essa incumbência não resultaria nem da lei nem do contrato. Asseverou que a legislação vigente atribui ao dono do animal a responsabilidade pelos danos por ele causados e à Polícia Rodoviária Federal o dever de recolher os animais soltos na estrada. Por fim, sustentou a não-incidência da responsabilidade objetiva pela defeituosa prestação do serviço, contida no Código de Defesa do Consumidor.


Em face do acórdão proferido pelo Tribunal estadual, o autor interpôs recurso especial, alegando violação aos artigos 458 e 535, do Código de Processo Civil, ao artigo 14, § 1º, do Código de Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078/90 - clique aqui) e ao artigo 1.527, do Código Civil de 1916.


3. Na parte que interessa à presente análise, o recurso especial foi provido, determinando-se que “Às concessionárias de serviços públicos são impostos os mesmos critérios de responsabilização do ente público que substituem, nos termos do disposto no artigo 37, § 6º, da Constituição Federal. Sendo assim, não há como se afastar a relação consumerista existente entre a empresa concessionária e os usuários de seus serviços, uma vez que as partes presentes nesse tipo de contrato se submetem aos princípios definidos pelo Código de Defesa do Consumidor. Destarte, cabe à concessionária zelar pela rodovia em todos os seus aspectos. Ademais, a possibilidade de um animal adentrar à pista se insere no risco da atividade econômica da ré”. E mais adiante conclui: “Nada impede, a toda evidência, que, em casos como o presente, em relação jurídica autônoma, exerça a ação de regresso contra quem de direito”.1


As passagens acima transcritas permitem análises de diversas ordens acerca do aludido acórdão. Contudo, e sem a pretensão de exaurir o assunto, os presentes comentários se restringirão apenas a chamar atenção para algumas questões atinentes à impossibilidade da incidência automática e irrestrita do Código do Consumidor à relação estabelecida entre a empresa concessionária e o usuário do serviço público, bem como à responsabilidade da concessionária no caso concreto.


4. O art. 7º da Lei n.º 8.987/95 (clique aqui) assegura a aplicabilidade concomitante das regras protetivas do Código de Defesa do Consumidor e da disciplina inerente ao Direito Administrativo à relação travada entre concessionário e usuário de serviço público.2


Contudo, o estatuto consumerista não incide sobre a relação entre usuário e concessionário nos mesmos moldes em que o faz no âmbito das relações privadas.


Ao contrário do que pode fazer crer o mencionado acórdão do Superior Tribunal de Justiça, o Código do Consumidor não se aplica às relações submetidas ao regime de Direito Público na mesma intensidade que incide sobre as relações privadas, em que a atividade desenvolvida pelas partes subsume-se ao conceito de atividade econômica em sentido estrito.


E não poderia ser diferente. A atuação estatal desenvolvida por meio da concessionária tem por escopo prestar adequadamente o serviço público, como forma de realizar o interesse público envolvido no caso concreto.


Diante da incidência do regime de Direito Público, não seria razoável e nem proporcional reputar que toda a relação travada entre concessionário e usuário fosse submetida irrestritamente ao regramento do Código do Consumidor – cuja sistemática é preponderantemente voltada à tutela do interesse privado do consumidor. Disso resulta que, na generalidade dos casos, o regime de Direito Público se sobreporá às normas de Direito do Consumidor.


5. Basta imaginar-se a prerrogativa consistente na alteração unilateral das condições estabelecidas no contrato concessão, por razões de necessidade e conveniência.


Nesse caso, o usuário não poderá invocar as regras do Código do Consumidor para impedir eventual alteração unilateral na prestação do serviço, que tenha sido conduzida sob o pálio das garantias inerentes ao devido processo legal. A regra de Direito Público consistente na prerrogativa extraordinária de alteração na prestação do serviço – realizada em vistas ao atendimento do interesse público envolvido no caso concreto – preponderará sobre a tutela de Direito do Consumidor consistente na vinculação aos termos da oferta apresentada ao usuário (interesse individual) do serviço público.


Sobre o tema, Marçal Justen Filho é categórico ao afirmar que “A disciplina do Direito do Consumidor apenas se aplicará na omissão do Direito Administrativo e na medida em que não haja incompatibilidade com os princípios fundamentais norteadores do serviço público. Em termos práticos, essa solução pode gerar algumas dificuldades. O que é certo é a impossibilidade de aplicação pura e simples, de modo automático, do Código de Defesa do Consumidor no âmbito dos serviços públicos”.3


6. Outra questão examinada pelo acórdão em comento que merece destaque é a atinente à imputação de responsabilidade objetiva à concessionária de serviço público naquele caso concreto (CDC, art. 14).


Pede-se licença para discordar desse entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que considerou a concessionária objetivamente responsável por infração de um dever que não lhe incumbia. Essa discordância se baseia, inicialmente, no disposto no art. 936 do Código Civil, que estabelece a responsabilidade objetiva do dono ou do detentor, pelos danos causados por animais (responsabilidade esta que se exime se o dono ou detentor comprovar culpa da vítima ou força maior). Logo, nem a concessionária nem o Poder Público, nos casos de rodovia administrada diretamente, são passíveis de responsabilização por danos causados por animais que transitem na rodovia.


7. Além disso, como toda a atuação da concessionária é vinculada à lei e aos termos do contrato de concessão – que definem as condições em que o serviço público será prestado –, nem a Administração (Poder Concedente) nem a concessionária respondem (muito menos objetivamente) por riscos que elas não tenham criado. Em outras palavras, não é possível responsabilizar objetivamente a concessionária apenas porque alguém sofreu dano nos limites da rodovia concedida. Sustentar o contrário seria admitir a responsabilidade absoluta e irrestrita da concessionária por toda e qualquer conduta lesiva (inclusive de terceiro) - o que é inadmissível, pois inviabilizaria a implementação da concessão dentro das balizas constitucionais e legais (p.ex., a previsão no contrato de todo e qualquer risco impediria o atendimento do princípio da modicidade da tarifa).

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8. A doutrina e jurisprudência reconhecem tradicionalmente a distinção de natureza entre a responsabilidade do Estado por atos comissivos e a sua responsabilidade por atos omissivos.


Para a reparação de dano derivado de conduta estatal comissiva, é necessária tão somente a comprovação do nexo de causalidade entre a atuação estatal e o dano causado. Trata-se da responsabilidade objetiva do Estado, que independe da aferição de culpa ou dolo. Contudo, a incidência dessa responsabilização no caso concreto fica afastada desde logo, na medida em que a presença do animal na pista não derivou de uma atuação (ato comissivo) da concessionária.


No entanto, quando o dano derivar de conduta omissiva do Estado, a sua responsabilização dependerá da comprovação da infração a algum dever de diligência. Em outras palavras, a responsabilização estatal derivará da ineficiência da sua atuação.


Celso Antônio Bandeira de Mello sustenta que os danos derivados da omissão estatal ensejam responsabilidade subjetiva, pois “se o Estado não agiu, não pode, logicamente, ser ele o autor do dano. E, se não foi o autor, só cabe responsabilizá-lo caso esteja obrigado a impedir o dano. Isto é: só faz sentido responsabilizá-lo se descumpriu dever legal que lhe impunha obstar ao evento lesivo”.4


Marçal Justen Filho, por sua vez, considera que “O grande problema são as hipóteses de ilícito omissivo impróprio, em que o sujeito não está obrigado a agir de modo determinado e específico. Nesses casos, a omissão do sujeito não gera presunção de infração ao dever de diligência. É imperioso, então, verificar concretamente se houve ou não infração ao dever de diligência especial que recai sobre os exercentes de função estatal. Se existiam elementos fáticos indicativos do risco de consumação de um dano, se a adoção de providências necessárias e suficientes para impedir esse dano era de competência do agente, se o atendimento ao dever de diligência teria conduzido ao impedimento da adoção das condutas aptas a gerar o dano – então estão presentes os pressupostos da responsabilização civil”.5


Ambos os doutrinadores são claros em imputar responsabilidade ao Estado quando houver infração a um dever legal de diligência (i.e., uma omissão), cujo atendimento seria capaz de impedir a consumação do dano.


9. Transpondo para o caso em análise, a responsabilização da concessionária nessa hipótese dependeria da comprovação de sua omissão na fiscalização da rodovia, que poderia consistir, por exemplo, no impedimento do tráfego de animais na pista de rolamento.


Avulta, nesse ponto, a impropriedade da conclusão atingida pelo Superior Tribunal de Justiça no caso em análise, em que se considerou a concessionária objetivamente responsável pelo falecimento de usuária que colidiu com um animal na rodovia pedagiada. O referido acórdão não levou em conta a responsabilidade objetiva – legalmente prevista – do dono ou detentor do animal, nem tampouco investigou a existência ou não de violação a um dever de diligência da concessionária (contratual ou legalmente previsto) relacionado com o impedimento da consumação do dano.


Não se ignora que a produção de uma prova destinada a comprovar a omissão do Estado (no caso, da concessionária) seja extremamente problemática para o usuário, razão pela qual se vislumbra para esses casos a possibilidade de inversão do ônus da prova, impondo à concessionária o dever de comprovar que atuou diligentemente (i.e., de acordo com a lei e o contrato). É usual a referência a uma culpa administrativa presumida exatamente para fazer frente a essas situações.


De todo modo, considera-se ter havido equívoco na atribuição de responsabilidade objetiva à concessionária, nos termos previstos no CDC, pelo dano moral causado ao filho da usuária falecida. Primeiro, porque seria impossível a existência de fiscalização permanente ao longo de todo o trecho da rodovia pedagiada, que permitisse verificar, a todo tempo e a cada instante, a existência de animais na pista. A dimensão de uma incumbência como essa extrapolaria os limites da razoabilidade. Segundo, porque o art. 936 do Código Civil é expresso em imputar responsabilidade ao dono ou detentor do animal pelos danos causados.


10. Dessa breve análise acerca da decisão proferida no âmbito do recurso especial n.° 647.710/RJ, extraem-se as seguintes conclusões:

a) O regramento constante do Código de Defesa do Consumidor não se aplica de maneira direta e irrestrita ao âmbito dos serviços públicos. A incidência das normas consumeristas dar-se-á tão somente nas hipóteses em que a sua aplicabilidade coincida com a disciplina prevista no Direito Público e nos casos em que a sua incidência não conflite com os interesses coletivos que a Administração deve perseguir e realizar. Quando houver divergência entre os regramentos, o regime de Direito Público preponderará sobre o regime de Direito do Consumidor.

b) É inviável a atribuição pura e simples de responsabilidade objetiva à conduta da concessionária de serviço público neste caso concreto, conforme determinou a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça. A Lei é expressa em considerar que o dono do animal (ou o seu detentor) é o responsável pelos danos por este causados. Logo, a concessionária não poderia ser responsabilizada pelos danos decorrentes do acidente causado por animal que invadiu a pista de rolamento da rodovia.

c) Mesmo que se pudesse cogitar de responsabilidade da concessionária, esta seria por omissão, não por ato comissivo. Portanto, incumbia ao autor da demanda judicial demonstrar não só o descumprimento de um dever de diligência (eventual dever de fiscalização), mas também que o atendimento desse dever pela concessionária seria apto a impedir a consumação do dano.

d) A aplicação do Código de Defesa do Consumidor seria irrelevante no caso sob análise. Isso porque, da mesma forma que na generalidade das situações conflituosas entre concessionária e usuário de serviço público, a controvérsia ali existente se resolveria por meio da aplicação de regras exclusivamente de Direito Administrativo.

________________

1A incidência do Código de Defesa do Consumidor à relação estabelecida entre concessionário e usuário já é posicionamento assente no âmbito da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça: AgRg no AI n.º 522.022/RJ, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 17/2/2004, DJ de 5/4/2004, p. 256 e REsp n.º 467.883/RJ, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 17/6/2003, DJ de 1/9/2003, p. 281.
 

2Cesar A. Guimarães Pereira reputa que o sentido do art. 7º da Lei 8.987/95 é o de tornar aplicáveis de modo automático à relação entre concessionária e usuário apenas as disposições de direito administrativo (p. ex., o art. 22) e o regime processual (art. 81 e ss.) contidos no CDC (Usuários de Serviços Públicos, São Paulo: Saraiva, 2006, p. 144).


3Teoria Geral das Concessões de Serviço Público, São Paulo: Dialética, 2003, p. 560.
 

4MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 19. ed., São Paulo: Malheiros, 2005, p. 943.


5JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2005, p. 800.
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* Advogado do escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados









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