Caso Suzane Richthofen: ilicitude da prova produzida pelo "Fantástico"
Por força do princípio da presunção de inocência (que alguns preferem chamar de “presunção de não-culpabilidade”, embora essa seja uma locução com origem no fascismo italiano) “todo acusado é presumido inocente, até a sentença condenatória definitiva” (CF, art. 5.º, inc. LVII; Declaração Universal dos Direitos Humanos, art. XI). Em virtude desse presunção, sua responsabilidade penal só pode ser reconhecida com base na lei (Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, art. 14.2; Convenção Americana dos Direitos Humanos, art. 8.2), na constituição e judicialmente (PIDCP, art. 14.2.).
Recordemos: o princípio da presunção inocência é constituído de uma regra de tratamento bem como de incontáveis regras probatórias. A regra de tratamento diz: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (CF, art. 5.º, inc. LVII). Essa regra deve ser entendida, necessariamente, em harmonia com a contida no art. 8.2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (que, diga-se de passagem, fala expressamente em “presunção de inocência” e se acha vigente incorporada - no Direito brasileiro desde 1992).
No que diz respeito às regras probatórias cabe sublinhar o seguinte: o jogo processual probatório começa 1 x 0 para o acusado (em tempos de copa do mundo, talvez seja não só permitido como apropriado utilizar essa imagem futebolística). À acusação cabe derrubar a presunção de inocência (virar o placar do jogo), mesmo porque se trata de uma presunção iuris tantum (relativa). Mas para isso só pode se valer de provas válidas. Provas ilícitas (que violam regras de Direito material) ou ilegítimas (que violam regras de Direito processual) não possuem valor jurídico (são gols inválidos).
Eis a primeira fundamentação: toda atividade probatória, dentre tantos outros, é regida por dois princípios básicos: legalidade e moralidade. Toda prova deve ter previsão legal (nulla coatio sine lege) e ser moralmente válida (CPC, art. 332). Não se admite fraude ou coação na produção da prova.
Parte da referida entrevista foi gravada por jornalistas de Rede Globo de modo clandestino (fraudulento). Em matéria probatória, tudo que é governado por princípios éticos pouco recomendados é imoral. O que no mundo jornalístico pode ser um “grande furo”, no plano jurídico não vale nada.
Uma outra fundamentação: a 5.ª Câmara do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (decisão de 22.6.06, relator Des. Damião Cogan, no HC 971.732) mandou suprimir, em 48 horas, todos os trechos da entrevista que captaram desautorizadamente a conversa entre a paciente e seus defensores.
Esse mesmo fundamento foi também invocado pelo Ministério Público Federal (Subprocurador Jair Brandão de Souza Meira) no HC 59.967, impetrado pelo advogado Mário de Oliveira Filho, junto ao STJ. Mas de acordo com sua opinião a “fita” deve ser inteiramente desentranada.
Em seu parecer o MPF afirma que, em regra, não cabe habeas-corpus contra decisão que indefere liminar. Afasta-se essa regra, entretanto, em casos excepcionais de flagrante ilegalidade.
Sublinhou o Subprocurador que o Estatuto da Advocacia dispõe ser direito do advogado ver respeitada, em nome da liberdade de defesa e do sigilo profissional, a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, de seus arquivos e dados, de sua correspondência e de suas comunicações, inclusive telefônica ou afins, salvo caso de busca ou apreensão determinada por magistrado e acompanhada de representante da Ordem dos Advogados do Brasil. Esse direito, afirma o parecer, é decorrente da garantia constitucional à ampla defesa. “Embora tenha a paciente concordado em conceder a entrevista ao programa televisivo Fantástico, a conversa que haveria de ser reservada entre ela e seus advogados foi captada clandestinamente”.
A prova da verdade não pode ser produzida de modo ilícito, com desrespeito aos direitos fundamentais. Tudo que foi colhido pelo “Fantástico” de modo ilícito (violando o Estatuto da Advocacia) e fraudulento (clandestinidade) não pode ter nenhum valor jurídico.
O STJ (Sexta Turma), julgando o HC 59.967, em 29.6.06, negou o pedido de liberdade provisória de Suzane, cassou a liminar concedida pelo Ministro Nilson Naves (que havia deferido a prisão domiciliar) e determinou o desentranhamento da fita com a gravação da conversa de Suzane von Richthofen e seu advogado.
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* Fundador e presidente da Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes
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