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A efetividado do Direito e os legíslatras

Há quem se confesse, com todas as letras, escravo(a) da lei : escravos jamais foram bons soldados e deles, salvo raras exceções, não se pode esperar o mínimo de coragem e descortino para romper as trevas da clausura cognitiva e escancarar as janelas do saber aos fenômenos da realidade quotidiana . Os que alardeiam o pela lei, com a lei, dentro da lei , pois fora da lei não há salvação esquecem os que foram escravizados, desterrados, torturados e/ou mortos , sem que seus algozes necessitassem se apartar um milímetro, sequer ,do texto legal.

11/8/2006


A efetividade do Direito e os legíslatras

Edson Martins Areias*

“As pessoas sábias aprendem com as outras; as medianas aprendem pelo sofrimento e as pessoas tolas... não aprendem absolutamente mais nada, porque elas já sabem tudo”

Há quem se confesse, com todas as letras, escravo(a) da lei: escravos jamais foram bons soldados e deles, salvo raras exceções, não se pode esperar o mínimo de coragem e descortino para romper as trevas da clausura cognitiva e escancarar as janelas do saber aos fenômenos da realidade quotidiana. Os que alardeiam o pela lei, com a lei, dentro da lei, pois fora da lei não há salvação esquecem os que foram escravizados, desterrados, torturados e/ou mortos, sem que seus algozes necessitassem se apartar um milímetro, sequer, do texto legal.

Não há nada de novo debaixo do sol. Nem os legíslatras, nem os alcoólatras, nem os idólatras, nem os demais adoradores de soluções simplistas que descuram as variáveis que os tempos aportam à equação da vida. Há muitos séculos passados, Davi soube descumprir a Lei, quando, em determinado momento, julgou ser mais importante alimentar os homens do que se ater às fórmulas prontas; o Nazareno não hesitou em proclamar que o sábado existe para servir ao homem, e não o homem para servir ao sábado. Não que se deseje um sistema anárquico ou anômico: “não pensem que eu vim para acabar com a Lei de Moisés ou com os ensinamentos dos profetas. Não vim para acabar com eles ,mas para dar o seu sentido completo”. Este sentido completo é o que tem angustiado os juristas em todos os tempos: se necessário se faz elaborar um modus faciendi - um know-how – dinâmico, célere, padronizado e cogente, um “se tal,então tal”, ao mesmo tempo não se pode negligenciar que a lei é, apenas, a manifestação imediata do Direito, jamais a única ou a última.

Tais aspectos têm que ser levados em conta ao pensarmos o Direito como Ciência. Por isto dizemos "Juiz de Direito" e não “Juiz de Leis”, “Tribunal de Justiça” e não “Tribunal de Leis”. Nenhuma lei pode prever tudo que vai acontecer:o in claris non fit interpretatio é tão perigoso que os Romanos já o refutavam. O polêmico Raul Seixas, compositor e cantor baiano dos anos setenta, dizia preferir ser uma metamorfose ambulante a ser um pretensioso que tem respostas prontas para tudo. Com razão. Antes de nos intimidar, a proposição do poeta António Machado - caminantes no hay caminos, los caminos se hacem al caminar-nos desafia a manejar os instrumentos ancilares que a Ciência oferece à análise holística,imposta pelo Estado Democrático de Direito, principalmente, aos seus órgãos de soberania.

Nenhum sistema em evolução pode prescindir de procedimentos padronizados que exsurjam das práticas recorrentes; mas certo também é que os desafios do mundo em constante transformação não comportam a áurea mediocritas de reduzir juristas à dimensão de meros autômatos e de gorilas amestrados em soluções padronizadas. É notório o desapreço que a maioria das escolas de Direito do País nutrem pelas matérias propedêuticas: quiçá a interpretação literal da locução Law School - reduza o ensino jurídico à mais simples expressão das leis, tantas delas eivadas de antinomias e inconstitucionalidades, a agredir o Direito. O temor iluminista da “ditadura dos magistrados” impele alguns teóricos a cerrarem fileiras em torno do que Cappelletti denominou certeza do direito, traduzida pela lei escrita, a limitar a discricionariedade administrativa e judiciária, exacerbando a vinculação dos agentes políticos e administrativos aos preceitos formais.

Contudo, abordar o direito como sistema de garantias implica estabelecer a equação cujos termos devem ser devidamente equilibrados: segurança jurídica e efetividade. A efetividade impõe que o Direito seja um instrumento de promoção e distribuição de justiça cuja validade extrapola a bitola formal do fiat lex. Exacerbar a segurança jurídica, consentir os ostensivos biombos legais, não só inviabiliza a efetividade do Direito como realimenta a insegurança. Nesta marcha, a efetividade se identifica muito mais com o jus suum cuique tribuendi e o nemo laedere, do que com a ladainha de fórmulas prontas e acabadas. Reside em cada pessoa um quê de homo faber mas, também de homo sapiens, numa razão estabelecida pelas atividades diárias que a sobrevivência exige. O homo faber se abebera da tecnologia enquanto o homo sapiens se socorre da ciência. A tecnologia, mais operacional e rotineira, quase que se limita ao saber como (know how), sintetizado em procedimentos padrões.

A ciência mais se preocupa em saber o porquê (know why) e, por tal, demanda maior esforço intelectual dos operadores; Adequar segurança jurídica e efetividade é, pois, tarefa que exige, mutatis mutandi, o tipo de raciocínio sistêmico de que se servem, geômetras, físicos, matemáticos e tantos outros profissionais contemporâneos; vale dizer: malgrado não descartem fórmulas pré - estabelecidas e comprovadas, não se apartam dos Princípios que as acolhem ou as rejeitam em cada caso. A excelência destes profissionais não é aferida pela capacidade de reter ou decorar fórmulas, mas pela maestria com que as interligam ou as lêem nas entrelinhas. O vocábulo inteligência deriva justamente desta capacidade de interler ou de interligar. Contudo, a priorização dos Princípios pelos operadores do Direito ainda encontra grande resistência, principalmente, nos países que perfilham o sistema da civil law, pelo temor da proliferação da figura do “juiz legislador”. Como, então, declinar efetividade – Direito justo - richtiges Recht e segurança jurídica-império da lei? O problema pode ser comparado, analogicamente, ao dos engenheiros chamados a projetar um sistema de controle que deva prover a necessária estabilidade sem abrir mão da sensibilidade.

Um sistema de controle não pode ser tão estável que não se inteire das variantes que demandam uma pronta resposta. Nem pode ser tão sensível que inviabilize os requisitos mínimos de estabilidade. Estabilidade e sensibilidade são componentes antagônicos: o sistema quanto mais estável tende a ser menos sensível; quanto mais sensível, mais instável e sujeito a oscilações. Tome-se, por exemplo, um controle automático do nível d’água de uma caldeira industrial de alta pressão: alterada a demanda de vapor, a resposta do sistema não pode ser tão rápida que faça com que o nível d’água ultrapasse o limite superior máximo, avariando os equipamentos pelo martelo hidráulico, e, tampouco, não pode ser tão lenta que deixe o nível d'água baixar a ponto de secar a caldeira, levando-a a explodir. O comando deve ser sensível para detectar as variações do nível, monitorando, continuamente, o feed back (realimentação) de todo o sistema, pela medição de diversos parâmetros, como vazão, fluxo, pressão, temperatura e outros fatores, que são levados a uma avaliação proporcional, integral e derivativa, de modo a orientar a resposta adequada à estabilização do sistema. A palavra-chave deste processo se chama realimentação (feed back). No caso do Direito como Ciência, a realimentação requerida é a dos fenômenos da realidade social de cada tempo. Desprovidos do guarda-chuva da lei para garantir a aplicação do justo Direito, como, então, prover a proteção do cidadão, em face do mais forte ou do próprio Estado Democrático de Direito ou ainda, ante à tentação do arrastar das esporas e do tilintar dos sabres das ditaduras?

O dilema dos garantistas – e aí espraiamos o vocábulo para além do direito criminal - é, exatamente a questão da juridicidade e seu corolário de legisdogmática, estreita corruptela da dogmática jurídica.Tal dilema assume dimensões consideráveis, máxime no que concerne à interpretação dos direitos fundamentais, tarefa que requer uma leitura mais ampla do Direito; esta faina não é das menos difíceis porque ultrapassa “a mera soma das normas” e expande seu objeto de estudo ao ordenamento jurídico nele incluindo a positivação dos princípios. Assim, descartadas as fórmulas prêtes a porter, as receitas de bolo, o dura lex, sed lex, Gordillo Cañas, intui a mudança de atitude da magistratura que não pode mais se comportar como boca da lei ou prolatora de soluções de algibeira. A constitucionalização dos princípios gerais de Direito constitui um importante passo no sentido de sua efetividade, ao espargir claridade sobre o entendimento das questões jurídicas, segundo o competente escólio de Paulo Bonavides. A normatização dos princípios implica, pois, a reflexão sobre a abrangência e efeitos da intelecção dos fatos jurídicos. Os princípios são axiológicos (e não deontológicos) e genéricos. Em sendo mandamentos de otimização são prevalentes, intersecantes, mas, jamais, excludentes.

Quem pretende servir ao Direito não pode curvar-se subserviente e incondicionalmente à Lei – como já prelecionava Francisco Cavalcante Pontes de Miranda: antes, deve buscar sua concreção axiológica fundada, sim, na própria pessoa do juiz, no estofo humano e moral que possua eis que o próprio ordenamento jurídico provê defesas ante a falibilidade destes agente políticos. Se ainda hoje encontramos resistência ao avanço destas idéias, pelo menos ousamos discuti-las sem temer a pecha de quixotesco. Longe vão os anos em que um amigo, então juiz numa grande metrópole, nos relatava que perdera as esperanças de promoção, salvo por antiguidade, eis que sobre si pendiam as acusações veladas de “alternativista”. Razão assiste a Marques Neto quando grava que o jurista não reproduz ou descobre o verdadeiro sentido da lei, mas cria o sentido que mais convém a seus interesses teórico e político. Em outras palavras, o sentido da lei não é autônomo, mas heterônomo. Ele vem de fora e é atribuído pelo intérprete. À medida que os legíslatras forem sucumbindo à leitura holística do Direito como Ciência menos serão admitidas as lesões iminentes albergadas no burocrático indefiro por falta de amparo legal. Reverberando outros preclaros mestres, o Professor Herkenhoff já profetizava nos anos setenta do século passado: "ou se terá um direito mais justo pela atuação do juiz, ou não se terá nada. Em outras palavras: se o juiz falhar na sua missão de humanizar a lei, de descê-la ao homem julgado, de fazer a leitura da lei a partir dos autênticos valores da cultura popular, de explorar as contradições do sistema legal em favor das maiorias deserdadas pela lei, nada restará de útil, socialmente útil, na lei.”

Ao desolado Mestre de Sociologia Jurídica - Membro do Tribunal Federal de importante Região – cujo desencanto nos impressionou a ponto de rabiscarmos estas linhas – resta, pelo menos, um alento: nós todos vamos aprender que não se constrói um País com autômatos ou gorilas amestrados insensíveis ao saber e à dor, incapazes de sonhar, vislumbrar e concretizar o futuro. Se o ensino de Engenharia falhar, as máquinas emperram, os prédios desabam; se o de Medicina, os pacientes adoecem e morrem; mas, se o ensino de Direito falhar, tudo emperra, tudo desaba, todos adoecem e morrem - de morte morrida ou matada - a começar pelo projeto de construir uma sociedade justa, livre, solidária, onde se respeite a igualdade, a segurança, os valores sociais do trabalho, a propriedade, a liberdade, a vida, a dignidade da pessoa humana enfim, todos os vetores indispensáveis à erradicação da miséria moral e material. Um personagem de filme nacional dizia que o sapo pula não é por boniteza, mas por necessidade. Nós vamos aprender, Mestre, menos por observar os outros ou a história dos povos, mas pelo sofrimento que, cada vez mais, começa a atingir, também, as elites. Todos vão ter que aprender, apesar dos que não nos dão ouvidos porque já sabem tudo.
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*Consultor jurídico da Conttmaf - Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transporte Aquavário e Aéreo, na Pesca e nos Portos e da Presidência do SINDMAR - Sindicato Nacional dos Oficiais da Marinha Mercante.





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