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As cláusulas de reajuste e de revisão de tarifas face ao princípio da modicidade nos contratos de concessão de serviço público

Como é de conhecimento de todos os que se dedicam ao estudo do Direito Administrativo, os serviços públicos não são prestados exclusivamente pelo Estado. Muitas vezes há que se confiá-los a particulares a fim de se proporcionar maiores comodidades à sociedade, as quais, comumente, o Estado não teria condições de prestar. Por tal motivo, estabeleceu-se um regime de cooperação entre a Administração e a iniciativa privada com o fito de prestar tais serviços mediante um contrato administrativo, com justa remuneração e nos limites da Lei 8987/1995.

11/8/2006


As cláusulas de reajuste e de revisão de tarifas face ao princípio da modicidade nos contratos de concessão de serviço público

Luciano Karlo Pertschi*


 

Como é de conhecimento de todos os que se dedicam ao estudo do Direito Administrativo, os serviços públicos não são prestados exclusivamente pelo Estado. Muitas vezes há que se confiá-los a particulares a fim de se proporcionar maiores comodidades à sociedade, as quais, comumente, o Estado não teria condições de prestar. Por tal motivo, estabeleceu-se um regime de cooperação entre a Administração e a iniciativa privada com o fito de prestar tais serviços mediante um contrato administrativo, com justa remuneração e nos limites da Lei 8987/1995 (clique aqui). Todavia, os usuários de tais serviços públicos por vezes se vêem pressionados por um binômio nada confortável: reajustes / revisões de tarifas absurdas (conduzindo, comumente a altos preços tarifários) e monopólio na prestação de alguns serviços específicos (fato que conduz à submissão do usuário ao regime de tarifação imposto pelo concessionário do serviço público). Longe de se aprofundar sobre o monopólio que se institui algumas vezes na prestação de determinado serviço, o presente trabalho objetiva tão somente analisar o conteúdo das cláusulas de reajustes e de revisões de tarifas e verificar se tais cláusulas são legítimos instrumentos de defesa do usuário contra os altos preços praticados pelos concessionários de serviços públicos e se, pelos fatos acima esposados, o princípio legal da modicidade das tarifas não acaba por ser mitigado.


No ato de concessão de serviço público, enfeixa-se uma determinada relação que determinará, por um lado, as obrigações que assistem ao concessionário e, por outro lado, a remuneração que lhe competirá em virtude da prestação do serviço avençado. Tal relação denomina-se equilíbrio econômico-financeiro (baseado no art. 37 XXI da Constituição Federal e no art. 9º § 4º da Lei 8987/1995) e possui sua formação a partir do ato de estipulação. A partir de tal momento não se torna mais lícita a alteração da equação, porquanto deve haver respeito mútuo de interesses entre as partes, ou seja, o concessionário deve ter assegurada sua remuneração normal, justa, em conformidade com os preços praticados no mercado.

No que tange aos contratos de concessão de serviço público, tal remuneração ocorrerá, predominantemente, através da cobrança de tarifas por parte dos usuários, as quais devem ser módicas (artigo 6° §1°), de forma a não onerar em demasia os usuários, uma vez que se trata de serviços e/ou comodidades destinadas à população em geral.

De acordo com Marçal Justen Filho, sobreditas tarifas terão seus valores representados pela proposta vencedora da licitação efetuada e, obrigatoriamente, constarão no contrato de concessão, acompanhadas das cláusulas e disposições acerca de seus reajustes e revisões.

O reajuste de tarifas, conforme preleciona Celso Antonio Bandeira de Mello, “configura hipótese em que a tarifa substancialmente não muda; altera-se, apenas, o preço que a exprime”. Ou seja, o preço correspondente à tarifa irá sofrer apenas e tão somente atualização, uma vez que não houve, in casu, mudança no equilíbrio econômico-financeiro que enseje mudança da tarifa. O preço apenas será corrigido com base em índices oficiais que resguardem a tarifa pactuada no contrato e de forma a “acompanhar a variação normal do preço dos insumos, sem que se lhe agreguem acréscimos”

Por sua vez, a revisão das tarifas “é uma reconsideração ou reavaliação do próprio valor original”, pactuado no contrato e acordado como razoável para fazer frente aos encargos inerentes e, notadamente, para resguardar o lucro, o qual, segundo Lucia Valle Figueiredo, “é lícito ao concessionário”, é “o objetivo da iniciativa privada”. Ou seja, neste caso há claro desequilíbrio nas condições inicialmente pactuadas, há fatores supervenientes que não foram (e não poderiam ser) previstos e que influem de forma decisiva na formação do preço da tarifa a ser cobrado do usuário. O equilíbrio econômico-financeiro deixa de existir, uma vez que o concessionário se depara com uma realidade adversa (seja em virtude de agravamento dos encargos por parte do Poder Público, seja por ato de autoridade pública que esteja em exercício regular de um direito que lhe assiste).

Mas, toda e qualquer alteração no equilíbrio econômico-financeiro deve redundar em revisão das tarifas praticadas pelo concessionário? Quais riscos serão suportados pelo mesmo?

Para responder a tais perguntas, Bandeira de Mello indica que a doutrina recorre a normas do direito francês, no qual os riscos que envolvem os contratos de concessão são divididos, doutrinariamente, em álea ordinária e álea extraordinária. Esta, por sua vez, divide-se em álea administrativa e álea econômica.

A álea ordinária corresponde aos riscos normais de qualquer empreendimento e que devem ser suportados pelo concessionário. Não ensejam qualquer cobertura por parte do poder concedente.

A álea administrativa corresponde aos atos da Administração não como parte da relação contratual, mas sim como ente no exercício de seu poder extroverso (nos dizeres de Marçal Justen Filho), de imperium. A tais situações se aplica a teoria do fato do príncipe, o que acarreta integral indenização pelo poder concedente, uma vez que por ato da Administração, houve desequilíbrio na equação econômico-financeira, gerando indevido ônus ao concessionário, o qual não deve ser por ele suportado.

A álea econômica corresponde a fatos globalmente considerados, conjunturais, naturais, cuja etiologia acaba por ser desconhecida, tais como as crises econômicas, desastres naturais e oscilações de câmbio. A tais situações se aplica a teoria da imprevisão, ensejando a partilha entre o concedente e o concessionário dos prejuízos decorrentes de tais fatos. São situações às quais os contraentes não hajam dado causa e que provocam profundo desequilíbrio da equação econômico-financeira, acabando por tornar extremamente onerosa a prestação do serviço pelo concessionário.

Todavia, tais teorias, quando transpostas ao Direito brasileiro, sofrem diversas modificações no sentido de conferir maior garantia ao concessionário. No Brasil, a álea ordinária – o risco que deve ser suportado pelo concessionário – é mais restrita. Estão excluídos dela os casos em que há variação de preço dos elementos componentes da tarifa e os casos em que haja medidas econômicas (e, até mesmo, majoração e/ou criação de tributos – art. 9º § 3º) que tenham repercussão na formação da tarifa. A álea econômica, nos casos em que tem aplicação a teoria da imprevisão, é suportada pelo poder concedente (ao invés de ser partilhada entre os contraentes, a exemplo do ocorrente na França). A álea administrativa, assim como na França, é suportada pelo concedente.

Desta forma, a álea ordinária – os riscos que o concessionário deve assumir – abrange os casos em que este inobservar as regras normais de condução de qualquer empreendimento, atuando de forma negligente e ineficaz para atingimento dos fins próprios do negócio. Abarcados aí estão os casos em que o concessionário superestimar o número possível de usuários a serem mantidos/captados na prestação de um determinado serviço ou até mesmo nos casos em que houver errada estimativa dos benefícios a serem obtidos com as fontes alternativas de receita (anexos à obra pública, como, por exemplo, shopping centers, postos de gasolina, postos de serviços, etc.). Tais situações, por certo, devem ser assumidas pelo concessionário na medida em que este exerce um serviço estatal mas está submetido a riscos próprios do negócio, típicos da ordem capitalista, e, como tal, sujeito às flutuações do mercado.

Neste sentido, observa-se no Brasil uma postura que visa a incentivar que um particular coopere com o Poder Público, tendo resguardados seus direitos, e, em última análise, o capital investido. Um exemplo eloqüente desta afirmação é o anteriormente exposto regime de assunção de riscos nos contratos de concessão de serviço público, mais benéfico ao particular em relação à França, por exemplo. Tal fato mostra-se salutar, pois confere maior segurança em tais tipos de investimentos, a qual se objetiva ser alcançada por meio da lei. Entretanto, numerosas vezes governantes imbuídos de índole política acabam, através de ações heterodoxas (tais como encampações irregulares, fraude em licitações, simples inadimplência em suas obrigações, etc.), gerando insegurança jurídica na iniciativa privada. Esta dinâmica nutre certo receio do particular em contratar com o Poder Público. Aquele, quando o faz, adiciona determinado percentual na formação da tarifa, a qual é suportada pelo usuário. Ou seja, este acaba sendo vítima de governantes populistas que sob o pretenso escopo de defender o interesse público descumprem cláusulas de contratos firmados pelos governos anteriores. Esta dinâmica é enfrentada como certa “álea” a ser considerada pelos particulares quando contratam com o Poder Público. Neste sentido, a “politização” dos contratos de concessão penaliza o usuário do serviço e compromete seriamente a observância de diversos princípios legais e constitucionais.

Assim, para que o princípio da modicidade das tarifas seja respeitado torna-se necessário, como acima exposto, que haja menor influência da política na formação e na execução dos contratos de concessão de serviços públicos. No que concerne às cláusulas de reajuste / revisão de tarifas nota-se que são instrumentos idôneos a proteger o usuário desde que sejam acompanhadas de um elemento fundamental: fiscalização. Tanto por parte do Estado quanto por parte dos próprios particulares. Aquele, através dos órgãos competentes (Ministério Público, órgãos de defesa do consumidor, etc.), tem o poder/dever de assegurar o fiel cumprimento da avença e detém os mecanismos (tais como: aplicar sanções – art. 29 – , intervir – art. 32 – Lei 8987/1995) hábeis a conferir ampla defesa do usuário. Estes – os usuários – também podem/devem obter dos concessionários informações para defesa de interesses individuais e coletivos (art. 7º II) e fazer parte do sistema de fiscalização dos serviços concedidos (art. 30). Tais instrumentos são disponibilizados a fim de se auferir se o aumento de tarifa proposto pelo concessionário é lícito, se se trata de causa de revisão ou de reajuste, se o motivo alegado pelo concessionário é válido e se o aumento do preço tarifário é condizente/congruente com a motivação exposta. São iniciativas desta estirpe que efetivamente conferirão ampla legalidade a todo o contrato e que defenderão o usuário do serviço de tarifas abusivas, contribuindo, certamente, para o cumprimento do princípio da modicidade das tarifas.
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*Técnico judiciário do Tribunal regional do Trabalho da 9ª região, bacharelando em Direito nas Faculdades Integradas Curitiba - PR.





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