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Tribunal Constitucional Alemão admite a existência de um terceiro gênero

O Tribunal Constitucional, reconhecendo legalmente a existência de um terceiro gênero, fixou prazo até o final de 2018 para que o legislador alemão regule a matéria por meio de lei.

2/1/2018

Recentemente, o Tribunal Constitucional da Alemanha (Bundesverfassungsgericht – BVerfG) proferiu decisão que vem sendo considerada histórica pela mídia, órgãos e associações de defesa da identidade de gênero: a decisão do terceiro gênero (drittes Geschlecht-Entscheidung). Na sentença, o Tribunal reconheceu, pela primeira vez, a existência jurídica de uma terceira categoria de gênero, paralelamente ao masculino e feminino: o intergênero1.

A decisão, prolatada nos autos do processo 1 BvR 2019/16, foi publicada em 08/11/17 e recebida como uma vitória pelo movimento em prol da identidade de gênero e do reconhecimento de pessoas intersexuais. Até a Anistia Internacional2 aplaudiu o julgado como um importante passo em direção à igualdade de gênero e ao reconhecimento de milhares de pessoas que geneticamente não possuem um alinhamento de todas as características sexuais por um só gênero, ou seja, não são totalmente masculinas, nem femininas, mas, ao contrário, se reconhecem como pessoas ambíguas, portadoras de caracteres masculinos e femininos.

Em razão de sua heterogeneidade genética, os especialistas falam em um terceiro gênero, autônomo em relação aos outros dois. Segundo a ciência, várias são as síndromes androgênicas que podem indicar o fenômeno da intersexualidade, dentre as quais destaca-se a síndrome de Turner, da qual a autora da queixa constitucional é portadora, caracterizada por uma anomalia cromossômica em pessoas do sexo feminino, resultante da perda parcial ou total de um cromossomo x.

Da mesma forma, a síndrome de Klinefelter, marcada pela presença de dois ou mais cromossomos x em pessoas do sexo masculino (xxy), indica a existência de uma gama de variações entre os sexos masculinos e feminino que torna difícil definir a qual dos dois gêneros a pessoa pertence. De qualquer forma, há de se distinguir, segundo os especialistas, o fenômeno da intersexualidade da transexualidade, que é a sensação de ter nascido com o sexo errado.

No caso concreto, Vanja, nascida em 1989, foi registrada pelos pais como pertencente ao gênero feminino, mas se considera intersexual, porque não possui características definidas nem como masculinas, nem como femininas. Por isso, entrou com ação pedindo a averbação de seu registro de nascimento a fim de mudar seu gênero para a categoria "intersexual" ou "diverso".

A pretensão da autora foi negada em todas as instâncias, inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça alemão, o Bundesgerichtshof (BGH). Motivo: o direito registral não permite o registro positivo de uma terceira categoria de gênero, diversa do masculino/feminino. No máximo, ela poderia optar por cancelar o registro feminino e deixar em branco o campo da indicação do gênero, pois o § 22, inc. 3 da lei do Estado Pessoal (Personenstandsgesetz – PStG/07, com redação dada por lei de 2017) permite que não se designe o gênero de uma criança quando esse não puder ser identificado com clareza.

O Tribunal Constitucional, reconhecendo legalmente a existência de um terceiro gênero, fixou prazo até o final de 2018 para que o legislador alemão regule a matéria por meio de lei. Segundo o BVerfG, a lógica binária do direito registral, que só reconhece positivamente duas categorias de gênero – masculino e feminino – viola a Lei Fundamental alemã, pois, por um lado, exige a indicação do gênero, mas, por outro, não permite que pessoas intergênero indiquem positivamente seu gênero, mas apenas omitam essa informação no registro civil. E um registro em branco não tem o mesmo significado que a indicação positiva de um terceiro gênero. Ao contrário, sugere ausência de gênero.

Dessa forma, a normativa legal – §§ 21, inc. 1 e 22, inc. 3 da PStG – afronta o direito geral de personalidade, previsto no art. 2, inc. 1 c/c art. 1, inc. 1 da Lei Fundamental, que assegura o livre desenvolvimento da personalidade, o que passa necessariamente pelo reconhecimento e tutela da identidade de gênero, inclusive daqueles que permanentemente não se deixam enquadrar nem no gênero masculino, nem no feminino, pois o gênero tem um significado considerável para a descrição da pessoa e de sua posição jurídica no ordenamento.

E uma das funções do direito geral da personalidade consiste em garantir condições elementares para que uma pessoa possa se desenvolver e defender sua individualidade autonomamente. Isso não significa, contudo, diz o Bundesverfassungsgericht, que o direito geral de personalidade conceda uma tutela contra tudo que possa prejudicar de alguma forma o desenvolvimento autônomo da personalidade. Mas ele abrange, sem dúvida, a tutela da identidade de gênero, que é um aspecto constituinte da própria personalidade, na medida em que o pertencimento a um gênero tem importância marcante para a identidade individual da pessoa.

A identidade de gênero ocupa posição central tanto na auto-percepção da pessoa, como na forma como essa pessoa é percebida pelos outros, além da relevância que adquire no dia-adia, pois não poucos são os direitos e obrigações estabelecidos pela ordem jurídica em razão do gênero. O BVerfG não desconhece, entretanto, que pessoas intergênero poderiam desenvolver sua personalidade sem maiores obstáculos se se atribuísse à imputação de gênero, no geral, uma importância menor.

Segundo o Tribunal Constitucional, a atual regulação legal ofende ainda a proibição de discriminação em razão do gênero (art. 3, inc. 3 da Lei Fundamental), que tutela não apenas homens e mulheres, mas também pessoas intersexuais contra discriminações por causa do seu gênero. Do mandamento da isonomia do art. 3, inc. 2 da Lei Fundamental resulta que se deve afastar as desvantagens sociais existentes entre homens e mulheres.

Embora o fim precípuo da norma seja, em princípio, afastar discriminações, em razão do sexo, em prejuízo de mulheres, o BVerfG entende que a norma não visa excluir uma outra categoria de gênero, ao lado do "masculino" e "feminino". Quando o Tribunal Constitucional formulou uma vez que a ordem jurídica alemã e vida social partiam do princípio de que toda pessoa seria ou do sexo "masculino" ou do "feminino", não se pretendia afirmar que a binariedade sexual era pré-dada pela Constituição, mas apenas exprimir uma compreensão jurídica e social à época reinante.

Para o Bundesverfassungsgericht, a Lei Fundamental não obriga a regular o estado pessoal, no que diz respeito ao gênero, apenas de forma binária. Ela sequer obriga a normatizar o sexo como parte do estado pessoal e, à toda evidência, não se opõe ao reconhecimento jurídico de uma outra identidade sexual paralelamente aos sexos feminino e masculino, ainda quando o art. 3, inc. 2, frase 1 da Lei Fundamental fale em "homens" e "mulheres". Além disso, com a simples possibilidade de inscrição de um terceiro gênero, ninguém fica obrigado a se imputar esse novo sexo. Essa possibilidade apenas aumenta as opções para pessoas com variantes no desenvolvimento sexual, que não são retratadas, de fato, através do registro como homem ou mulher.

No processo, foram ouvidas diversas entidades e associações interessadas, como o Conselho de Ética Alemão, Conselho Federal de Medicina, Instituto Alemão de Direitos Humanos, a Sociedade Alemã de Psicologia, Sociedade Alemã de Pessoas Intersexuais, Sociedade das Lésbicas e Gays da Alemanha, a Associação Nacional Alemã dos Oficiais do Registro Civil, bem como entidades católicas e evangélicas, tendo a maioria se pronunciado a favor da pretensão da autora da queixa constitucional, isto é, a favor do reconhecimento de um terceiro gênero entre o masculino e feminino.

A preocupação dos movimentos pela identidade de gênero é que o Parlamento alemão não regule ou não normatize adequadamente a matéria até 2018. Já tramita um projeto de lei apresentado pelo Instituto Alemão de Direitos Humanos, mas não se sabe se o Parlamento aceitará a proposta. Outra sugestão – ventilada na própria decisão do Tribunal Constitucional – seria abolir por completo a indicação do gênero dos registros de nascimento e demais documentos identificadores. Mas, em qualquer caso, necessário se faz uma adaptação em cascata de toda a legislação, que ainda se baseia em uma diferenciação binária (masculino/feminino), o que certamente não será tarefa fácil.

Mas a situação, apesar de delicada, vem sendo regulada em outros países. Na Austrália, as pessoas intersexuais têm a opção de se registrar como "non-specific" e no Nepal, desde 2015, é possível colocar "outro" nos registros de nascimento e demais documentos legais de identificação. Na Inglaterra, o registro pode vir indicado como de sexo indefinido3. Mas a Alemanha pode vir a ser o primeiro país na Europa a permitir a indicação positiva de uma terceira categoria de gênero nos registros pessoais se o legislador acatar a ordem do Bundesverfassungsgericht.

Com isso, o país garantiria sua posição vanguardista no tratamento diferenciado de pessoas intergênero, tendo em vista que a legislação dos estados prussianos, o ALR de 1794, já continha regras para os casos de hermafroditismo: "Quando nascerem hermafroditas, os pais devem determinar em qual sexo eles devem ser educados" (§ 19 I 1 ALR). "Entretanto, essas pessoas, após atingido dezoito anos de idade, têm a livre escolha de determinar sob qual gênero elas querem se portar." (§ 20 I 1 ALR). Após a introdução do registro civil e da regulamentação dos registros de nascimento através da Lei sobre o Registro do Estado Pessoal e de Casamento, de 1875, essas regras foram revogadas sem qualquer substituição, surgindo uma lacuna legal que persistiu até a reforma do direito do estado pessoal.

De qualquer forma, não são as dificuldades, nem os custos de implementação e muito menos interesses de terceiros que devem impedir essa importante alteração, segundo o Tribunal Constitucional. Estima-se que essa medida afetará a vida de cerca de 160.000 pessoas intersexuais na Alemanha, contribuindo para dar-lhes maior dignidade. O Brasil ainda adota um sistema de gênero binário (masculino/feminino) e os transexuais ainda lutam pelo direito de optar por um dos dois gêneros sem necessidade de cirurgia de transgenitalização.

No RE 670.422, com repercussão geral reconhecida, o juiz de primeiro grau tinha admitido a mudança de nome, mas determinado a anotação do termo "transexual" no registro, o que foi visto como discriminatório. No STF, o relator do processo, min. Dias Toffoli, votou pelo provimento do recurso reconhecendo o direito à alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil independentemente da realização de procedimento cirúrgico.

O processo está parado no STF após pedido de vista do min. Marco Aurélio, mas já existem cinco votos a favor da possibilidade do transexual mudar o prenome sem cirurgia, bem como retificar a indicação do gênero para masculino ou feminino, entendimento já esboçado pelo STJ, em caso semelhante4. A discussão posterior, acerca da existência de uma terceira categoria de gênero (intergênero), não foi encarada no processo, permanecendo o debate em torno de um sistema de gênero binário.

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1 Confira-se a decisão na íntegra, traduzida para o português, no número 14/17 da revista eletrônica Civilistica.com.

2 Urteil über drittes Geschlecht – "Bei Toiletten gibt es nur zwei Türen, das darf nicht so bleiben, 8/11/17, Spiegel Online, acesso em 15/12/17.

3 Intersexualität: Bundesverfassungsgericht für drittes Geschlecht im Geburtenregister, Zeit Online, 8/11/17, acesso: 15/12/17.

4 Push, 09/05/17: Transexuais têm direito à alteração do registro civil sem realização de cirurgia. Confira-se ainda: STJ consolida jurisprudência que permite alterar registro civil de transexual, Conjur, 01/12/14.

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*Karina Nunes Fritz é professora, advogada e parecerista.

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