Além do mais, esse quadro está provocando no homem médio uma verdadeira aversão ao direito de defesa e também aos seus agentes, os advogados, assim como vem criando um desinteresse e um quase menosprezo pela verdade. Deseja-se que prevaleça a verdade que corrobore a punição, mesmo que não esteja de acordo com a realidade dos fatos.
O direito de defesa emana do próprio direito natural e, assim, acompanha a humanidade desde os seus primórdios. Corresponde a uma necessidade indeclinável do ser humano, como portador dos atributos da honra e da dignidade, que devem ser preservados e defendidos.
Toda agressão ou ameaça a esses valores causa o sentimento de injustiça e provoca um natural impulso reativo da parte do atingido. Como se reage licitamente a uma injusta agressão física, reage-se à violência de uma acusação indevida ou excedente à responsabilidade pessoal.
O processo, como instrumento de distribuição da justiça penal, tem um forte conteúdo ético e moral. No entanto, todo o sistema penal vem sofrendo estranha e indesejável metamorfose.
A já referida cultura punitiva, contudo, está atingindo os seus responsáveis, provocando a perda da imparcialidade e da isenção, que deveriam comandar o exercício de suas respectivas funções.
Está havendo uma perigosa inversão conceitual quanto à natureza das missões: juiz e promotor não combatem o crime. Um julga e o outro é o fiscal do cumprimento da lei, não o acusador obstinado. Ambos devem examinar os fatos e as provas com isenção, desprovidos de prévia posição a respeito da culpa. O promotor, ao acusar, e só nessa hora, deve tomar posição. O juiz, apenas ao proferir a sentença.
A verdade é que na pugna judiciária se assiste a uma quebra de regras e a um extrapolar dos limites éticos sobremodo inconvenientes e que põem em risco a segurança jurídica e a própria credibilidade do Poder Judiciário.
Como pano de fundo desse cenário nós temos a deturpação – por vezes ostensiva, por vezes sutil – da verdade. Sim, a verdade passou a ter uma importância relativizada em nome de imputações e de decisões que se imagina serem do agrado da mídia e da opinião pública, e calcadas em ilações e criações mentais, portanto, com alto grau de subjetivismo.
Por vezes a mentira é propagada pela imprensa e utilizada por acusadores e juízes não de forma consciente e dolosa, mas por açodamento, ao se aceitarem como verdadeiros fatos ainda não verificados e comprovados.
Nesse cenário, em que a verdade perdeu a relevância, o protagonismo de juízes e de promotores atingiu níveis inimagináveis. Instaurou-se um conflito que ultrapassa os limites do processo e envolve, de um lado, acusadores e juízes e, de outro, os advogados.
Uma observação: os advogados na área penal não impulsionam a máquina do Judiciário. Quem o faz são os promotores, ao acusarem.
Os juízes julgam e nós, advogados, defendemos os direitos, as garantias, e somos os transmissores da verdade dos clientes.
Não somos apologistas do crime. Sem o exercício da defesa não há possibilidade de haver processo, condenação ou absolvição.
A verdade para nós, advogados, é a que nos é posta pelo cliente e a haurida dos autos.
Para juízes e promotores a verdade deveria ser a refletida pelas provas, e somente por elas, e apenas quando obtidas legalmente. Não pode a verdade, para fundamentar uma acusação e uma condenação, ser fruto de ficção ou hipóteses cerebrinas. Alguma flexibilidade é admitida para a formulação da imputação. Mas não para o desfecho do processo.
Esse panorama reflete, também, por parte da sociedade, uma expectativa voltada sempre para a acusação e para a condenação. Não se esperam a absolvição e a inocência. Qualquer acusação, ainda que embrionária e precária, desde que divulgada, coloca o mero suspeito como culpado. A existência ou não de provas pouco importa. Vale dizer, deve-se condenar com provas, sem provas ou mesmo contra as provas.
Na realidade, vem ocorrendo uma mudança de natureza ética com reflexos processuais graves. Aceitasse a mentira e esta se nutre da simulação e da criação de fatos e de situações fictícias. A opinião pública satisfaz-se com a ilusão da verdade e distancia-se da verdade real. Manipulação de narrativas, invencionices e adulterações fáticas fazem, lamentavelmente, parte do cotidiano processual.
Conforme afirmou Hanna Arendt, após Platão, com o mito da caverna, o ser humano prefere a ilusão à verdade. No âmbito do processo esse mito não pode vigorar. Espera-se que não prospere a sanha punitiva e se volte a ter um respeito sagrada pela verdade e pelo direito de defesa. Não podemos permitir que haja a derrogação da verdade pela aceitação da mentira, como alertou a filósofa alemã.
Nada justifica o abandono dos valores éticos e morais, bem como dos princípios constitucionais, mesmo que em nome do combate ao crime. Aliás, o verdadeiro combate ao crime deveria ser realizado desde as suas causas. A punição é pós-crime e, portanto, não evita o delito, embora seja necessária.
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