Uma questão interessante e que atravessa gerações é como são produzidas as decisões judiciais. Uma fórmula clássica a ser seguida é o que chamamos de silogismo, quando encaixamos uma premissa maior (norma) numa premissa menor (fatos) para obter uma conclusão.
Entretanto, existem os chamados casos difíceis em que esse sistema não oferece uma resposta única, e o juiz adotará a solução que se adeque mais à sua conveniência, de acordo com a tese do livre convencimento motivado.
A ciência do Direito Processual destaca que a imparcialidade do magistrado não se trata de ele ter ou não uma preconcepção sobre determinado tema. Isso não seria trabalhar com a realidade, afinal, o ser humano que julga está inserido na sociedade e tem suas experiências de vida, sua criação e suas opiniões. Portanto, de alguma forma isso influenciará no resultado do processo.
E como poderíamos tentar controlar eventuais abusos e desvios?
Através do dever de fundamentar suas decisões e do princípio da publicidade. Quando se justifica determinado posicionamento abertamente, abre-se a possibilidade de diálogo na construção de uma solução justa ao litígio levado ao Judiciário. Além disso, é preciso que o juiz conceda todas as oportunidades para que as partes possam apresentar seus argumentos e, na justificação da decisão, é preciso levá-los em consideração, seja para adotá-los, seja para refutá-los. É direito da parte ver seus argumentos enfrentados e considerados pelo órgão jurisdicional. Dessa maneira, diminui o risco de questões pessoais interferirem no desfecho do caso.
Todavia, como havíamos antecipado, há casos em que o resultado final depende única e exclusivamente na visão de mundo da pessoa que irá julgar o caso. Assim, qual o processo cognitivo pelo qual o juiz irá passar? A fundamentação escrita necessariamente irá retratar a forma como se desenvolveu a sentença? Será que primeiramente se decide e depois se justifica? Em que medida as preconcepções da pessoa realmente irão influenciar? Dentre essas e outras tantas perguntas, iremos, por ora, nesta pequena reflexão, tratar da última.
A estrutura do Poder Judiciário nacional se dá da seguinte forma, segundo Censo Judiciário Nacional de 2013.1
Vemos que a ampla maioria dos membros do Poder Judiciário são homens brancos. Como isso poderia influenciar no julgamento de questões raciais e de gênero, como racismo, cotas, violência doméstica e abuso sexual?
A psicologia pode nos ajudar nesse sentido!
A Teoria das Representações Sociais, conforme compreendida no Brasil e na América Latina, estabelece que os pensamentos e conceitos individuais são fruto da relação com experiências e acontecimentos sociais. Por consequência, assim nasce o processo de construção do conhecimento, valores e dimensões identitárias e ideológicas, inclusive percepções estigmatizadas sobre determinado grupo de indivíduos.
Nesse sentido, a Representação Social possui uma dupla dimensão: sujeito e sociedade. Entretanto, é preciso atentar que as representações não são apenas fatos sociais coletivos, mas sim representações sociais construídas especificamente no âmbito das interações dos sujeitos.
O pensamento individual seria um fenômeno puramente psíquico, mas que não se reduziria à atividade cerebral, e o pensamento social não se resumiria à soma dos pensamentos individuais. Portanto, é interessante destacar que as representações individuais são influenciadas pelas sociais, construindo a visão de mundo e particularidades dos valores internalizados dos indivíduos.2
O historiador e sociólogo Rafael Sêga reforça que as representações individuais se apresentam como "a maneira de interpretar e pensar a realidade cotidiana, uma forma de conhecimento da atividade mental desenvolvida pelos indivíduos e pelos grupos para fixar suas posições em relação a situações que lhes concernem".3
Na teoria Psicossocial da vertente americana, não é somente o meio externo que constrói o indivíduo, porquanto ele nasce com características próprias que irão interferir nesse processo.4
O que se extrai de ambas as correntes é que o meio externo tem, indubitavelmente, influência direta na construção do indivíduo, restando a diferença tão somente no grau de extensão dessa inter-relação.
Segundo um provérbio popular, "a pessoa só pode oferecer o que tem; e nós só recebemos o que ela nos dá, se quisermos". Transferindo-o para a esfera do Poder Judiciário, o magistrado procurará interpretar da melhor forma a norma junto ao caso concreto, mas, para tanto, ele terá em seu poder, somente os instrumentos colhidos através de suas experiências vividas, conforme explicitado pela doutrina psicossocial atual. De outro lado, por conta do caráter impositivo da sentença, o jurisdicionado é obrigado a acatar, obedecer e cumprir a decisão jurisdicional.
Daí a necessidade de se procurar heterogeneidade nos membros do Judiciário. É dentro da mesma lógica que, em grau recursal, há uma multiplicidade de julgadores. Todavia, qual a efetividade do colegiado, se sua formação detém características e experiências similares?
Um argumento que se insere no debate é a mudança no procedimento de recorribilidade de acórdãos não unânimes, tendo em vista que uma das razões era a utilização diminuta dos chamados embargos infringentes, tornando-o um instituto ineficiente, conforme foi exposto pelo ministro Luiz Fux e outros grandes processualistas, quando da deliberação da elaboração do novo CPC.5
Por conseguinte, é forçoso concluir que há uma dificuldade e resistência quanto ao julgamento de causas que versem sobre minorias sociais, diante do quadro estatístico apresentado acima. Por esse motivo é que, com todo respeito, discordamos da declaração recente de que "hoje o nosso juiz constitucional não pode ser pautado pelas minorias só. Aliás, eu já vi que quero meus privilégios porque o heterossexual agora está virando minoria. Não tem mais direito nenhum. Estamos criando isso".
Um exemplo de como a diversidade é benéfica para o Judiciário e deve ser buscada é da política adotada pelo ex-presidente Barack Obama na nomeação de juízes federais oriundos de grupos minoritários, sendo o presidente americano que mais democratizou essa seara do Estado.
Por último, cabe transcrever a declaração de Virginia Linder, ex-juíza da Suprema Corte do Oregon, com grande militância na comunidade LGBT, que trata da importância da diversidade nos tribunais:6
O ponto é simples, mas também profundo: Diversidade na corte é importante. É importante para pessoas reais, com verdadeiras disputas, que precisam do nosso sistema judicial para resolver esses litígios. A diversidade garante a todos que atravessam as portas do tribunal ser tratados com dignidade e efetivamente ouvidos. A diversidade, em suma, é fundamental para a promessa de igualdade de justiça para todos. (tradução livre)
No Brasil, a forma de ingresso na magistratura é bastante diferente, mas, nada obsta que sejam oferecidos cursos a seus integrantes com foco nas especificidades de temas tão delicados, lembrando que há cargos de preenchimento por indicação, que poderia se inspirar nessa política de fomento da diversidade, concretizando o ideal de aproximação do jurisdicionado a um Estado mais justo.
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1 Censo do Poder Judiciário.
2 MOSCOVICI, S. A representação social da psicanálise. Tradução de Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
3 SÊGA,Rafael Augustus.O conceito de representação social nas obras de Denise Jodelet e Serge Moscovici,IN.: <clique aqui>
4 Allport, G.W. (1954). The historical background of modern social psychology. In G. Lindzey (Ed.), Handbook of social psychology (Vol. 1, pp. 3-56). Cambridge, MA: Addison-Wesley.
6 Diversity Counts: Why States Should Measure the Diversity of Their Judges and How They Can Do It
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*Irapuã Santana é doutorando e mestre em Direito Processual pela UERJ. Procurador do município de Mauá/SP e assessor de ministro no STF e no TSE.
*Emanuelle Aguiar Pacheco é mestre em Psicologia Social pela UFF. Professora titular das FAMATH e psicóloga voluntária do Projeto Resgate (NUDEDH – Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos – Defensoria Pública RJ).