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Deveres fiduciários dos administradores (Importação ou Contrabando?)

Deve ser afastado com toda a ênfase o errôneo entendimento de que os administradores de sociedades no direito brasileiro exercem a sua função sob o manto de uma relação fiduciária.

8/12/2017

"Será que existem deveres fiduciários ao sul do Equador?"
(De um compositor virtual)

Muito já se falou sobre um tal complexo de vira-latas, que afetaria o brasileiro quando ele se compara e ao seu país com outras pessoas e nações. Tudo o que é de fora é melhor do que o que se faz aqui dentro é o dito que corre por aí. E isto tem acontecido também com institutos jurídicos originados de outros ordenamentos jurídicos, enfiados goela abaixo do direito brasileiro e um dos casos diz respeito, precisamente à pretensa natureza dos deveres dos administradores de sociedades, classificados como de natureza fiduciária: fiduciary duties, dizem nossos jus-psitacídeos, procurando caprichar na pronúncia alienígena.

Vamos por partes, como diz o Governo quando deseja fazer alguma coisa e não pode.

É claro que o intercâmbio científico é uma necessidade imperiosa para que a ciência progrida e isto envolve o direito. No campo de Direito e Economia (Law and Economics), por exemplo, há cerca de duas décadas pouco ou nada se conhecia nos cursos jurídicos pátrios a respeito de certos princípios, que hoje já se tornaram voz corrente ao menos no âmbito dos cursos de pós-graduação das melhores faculdades de direito. Seu conhecimento se deve a pesquisas pioneiras em nossas universidades, tendo sido a professora Rachel Sztajn uma das principais influenciadoras da nossa doutrina nessa área. Neste sentido, recorrer às noções do dilema do prisioneiro (Olá, povo do Lava-a-jato!), da informação assimétrica, dos custos de transação, das externalidades (positivas e negativas), dos efeitos de segunda ordem, da captura, etc, tem se tornado bastante comum em trabalhos de final de curso, dissertações e teses e, em algumas vezes, já se tem encontrado referências em peças judiciais e em sentenças dos tribunais. Nestes casos, às vezes parece que não foi entendido bem o espírito da coisa.

Mas quanto à ciência econômica, trata-se de fenômenos universais, raramente (se é que existem) encontrando-se alguma realidade econômica que seja própria de determinada economia e que não possa ser encontrada ou reproduzida em outra. Mas quando nos voltamos para o direito, a coisa é muito outra porque existem ordenamentos jurídicos que têm índole e princípios bem diferentes entre si e, até mesmo, incompatíveis. Vejamos o que se pode falar a respeito dos chamados deveres fiduciários.

Como se disse, uma coisa é o enriquecimento progressivo e cabível segundo a natureza de cada ordenamento jurídico, a partir da experiência de outros países e outra muito diferente – e altamente reprovável pela sua inadequação e elevada ineficiência – decorrente de transplantes jurídicos forçados entre organismos incompatíveis ou menos próximos uns dos outros. E pode ser dito que de algum tempo a esta parte o abuso desse transplante forçado tem sido uma nota dominante nas relações jurídicas de Direito Comercial, especialmente no campo do contrato e das sociedades. O resultado tem sido altamente negativo, com elevado aumento dos custos de transação nos negócios mercantis.

A esse respeito minha ex-orientanda Muriel Waksman dedicou um capítulo inteiro ao tema no seu texto "Os Limites ao Poder Intervencionista da CVM"1, no qual estão demonstrados os problemas inerentes a essa questão. Com apoio em Alam Watson ("Legal Transplantation: An approach to Comparative Law", Athens, University of Georgia, 1993): superficialidade, erro legislativo, dificuldade/impossibilidade de sistematização, inexistência de similaridade entre os ordenamentos jurídicos doador e donatário, como poderiam ser chamados, em nossa visão.

Uma das falhas mais comuns em relação aos transplantes indevidos está na importação direta de leis ou, como mais comumente acontece de partes delas ou de seus princípios fundamentais, esquecendo-se os que assim agem que uma determinada norma de direito positivo jamais poderá ser tomada em sua individualidade e inserida em outro ordenamento. Isto porque ela não é um ente jurídico autônomo, mas faz parte de um conjunto de princípios e de normas jurídicas, concatenados em vista de um determinado fim. E isto acontece com grande ênfase no Brasil no qual, diferentemente do modelo da common law, todo o direito está construído debaixo das normas constitucionais, de conteúdo obrigatório em todo o país, quando se trata daquelas de natureza cogente e em relação ao qual o juiz não cria o direito, apenas o identifica e interpreta (essa revelou-se nossa frustrada esperança diante de um Judiciário pró-ativo, que usurpa papel alheio, tal como faz o cavalo que toma o freio nos dentes e deixa o cavaleiro legislador a reboque).

A língua de cada país, por sua vez, cria restrições para o transplante jurídico, pois do ponto de vista do direito, um termo na língua de determinado país não quer dizer a mesma coisa quando traduzida para a de outro. Este é o caso precisamente dos chamados fiduciary duties (deveres fiduciários) porque a fidúcia (confiança) de que se fala na common law e que tem uma ligação fundamental com o instituto jurídico trust no seu sentido estrito nada tem a ver com o termo confiança no direito brasileiro. Uma coisa é ser proprietário de um bem por meio do trust (operação na qual está envolvido um tipo de confiança desconhecida entre nós) e outra coisa é vender um valor mobiliário com carta de recompra, como acontece em nosso mercado de capitais.

No sentido acima, por mais que se fale naquele tipo de confiança, como seria o caso da alienação fiduciária em garantia, a sua introdução no direito brasileiro por meio da lei 4.728/65 e dos institutos similares que a seguiram, se fez de forma incompleta e altamente ineficiente. Isto porque o nosso atual Código Civil não agasalhou o negócio fiduciário, tal como havia sido anteriormente proposto em mudanças legislativas, tendo desaparecido do nosso direito o fideicomisso. Dessa forma as operações fiduciárias foram introduzidas em nosso país de forma desligada do restante do nosso direito.

Voltando à questão dos deveres fiduciários. Há uma profusão infinita de textos sobre a natureza jurídica dos administradores nos ordenamentos jurídicos que operam sob a common law. Para nossos objetivos presentes vamos nos utilizar apenas de um deles, a "The Theory of Fiduciary Liabiliy", de Paul B. Mille2, que fez uma análise horizontal e vertical do instituto no direito comparado.

Observa Paul Miller que o direito fiduciário se desenvolveu de forma natural, ausente um princípio diretor a seu respeito. Dessa forma não existe uma ideia muito clara sobre a natureza da relação fiduciária, cuja identificação é primordial para o fim do entendimento do que sejam os deveres fiduciários. Trata-se de uma relação jurídica de natureza especial, segundo a qual o fiduciário exerce um poder discricionário sobre os interesses de outra pessoa, o beneficiário.

De acordo com a colocação acima já podemos concluir de forma antecipada que o administrador de uma companhia não tem tal poder discricionário para agir em nome dela. O seu poder é inteiramente disciplinado quanto ao seu conteúdo e extensão pela cláusula de objeto, presente no estatuto social e, também, segundo as determinações da lei acionária. Tal cláusula necessita ser interpretada de forma estrita no exercício da função administrativa, uma vez que sua desobediência causa a atribuição ao administrador de responsabilidade pela indenização de qualquer prejuízo que seu ato possa ter causado ao patrimônio social. Além da cláusula de objeto, o estatuto social no mais das vezes estabelece normas mais estritas para a atuação dos administradores, que se traduzem, por exemplo, na necessidade de assinatura conjunta com outro administrador; na obediência a alçadas fixadoras de determinados valores para negócios mais importantes, acima das quais será necessária a autorização expressa do conselho de administração ou da assembleia geral, etc.

É interessante verificar como, segundo Paul B. Mille, as relações fiduciárias têm sido um dos conceitos mais frequentemente invocados nas discussões de questões diversas, ao mesmo tempo em que é pouco entendido. Se assim acontece nos países de origem do instituto, imagine entre nós!

Aquele autor observa que têm sido utilizados dois critérios principais para a identificação de uma relação fiduciária: (i) status-based approachb (visão tomada a partir do status); e (ii) fact-based approach (visão tomada a partir dos fatos).

I – Status based approach

Trata-se do mais tradicional método para identificar relações fiduciárias no âmbito dos tribunais. Confrontado determinado instituto com uma dada relação a corte procurará a sua categorização e determinará se aquele é convencionalmente reconhecido como de natureza fiduciária. São exemplos das bases consideradas as relações "devedor-credor"; as "trustee-cestui que trust"; e as "advogado-cliente". Observa o autor citado que os tribunais da common law têm sido muito relutantes em admitir novas categorias como concernentes a relações fiduciárias, tendo em vista que a sua admissão levaria a um aumento da responsabilidade.

O método é puramente analógico e tem levado ao reconhecimento de situações consideradas como quase trust (quasi-trust) ou fiduciárias em certa medida (in some respect). Mas isto não as leva para o campo das relações fiduciárias para o fim da aplicação dos efeitos correspondentes. Dessa forma, novas categorias de relações são consideradas de natureza fiduciária simplesmente em virtude de terem sido vistas como suficientemente similares a categorias paradigmáticas.

II – Fact-Based Fiduciary Relationships

Neste caso uma relação poderá ser entendida como fiduciária em virtude de apresentar certas características ou indícios do seu reconhecimento como dessa natureza. A estipulação dos indícios apropriados tem sido um desafio fundamental enfrentado pelas Cortes na aplicação desse método de aproximação. Entre tais indícios podem ser contados: (i) o escopo do exercício de algum tipo de discricionariedade ou de poder em mãos do favorecido; (ii) o fato de que o fiduciário pode exercer unilateralmente o poder ou a discricionariedade para o fim de afetar os interesses legais ou práticos do beneficiário; (iii) o fato de que o beneficiário é particularmente vulnerável ou que está à mercê de quem detém a discricionariedade ou um poder sobre aquele.

Depois de analisar alguns casos importantes discutidos nos tribunais o autor citado chega à conclusão de que nenhum dos dois critérios responde de maneira satisfatória ao objetivo de identificar sem sombra de dúvida uma relação como fiduciária. No caso do status-based approach a dificuldade reside na constatação de que o status tomado em suas variações para o fim de observação, em suas variações, não é conceitualmente estabelecido. E daí vem a falhar a aplicação da analogia.

Por sua vez, o fact-based approach é indefinido. Ele propõe flexibilidade ao custo da previsibilidade. A opacidade do conceito de relação fiduciária é ao mesmo tempo causa e consequência da falta de disciplina legal.

Na commom law o nascimento de relações fiduciárias se dá em virtude: (i) da lei; (ii) do mútuo consentimento das partes; ou (iii) da vontade unilateral do fiduciário. Por exemplo, a natureza fiduciária da relação entre pais e filhos menores se estabelece de direito considerando que os primeiros não precisam assentir positivamente em tal sentido e que os filhos são juridicamente incapazes para tal fim. Por sua vez, as relações de natureza fiduciária entre profissionais e clientes são tipicamente o produto do consentimento mútuo, originado de um contrato. Mas neste caso também podemos dizer que elas são de natureza intrínseca, pois no caso do exercício da advocacia, cabe ao advogado exercer discricionariamente o poder de defender os interesses do cliente, a quem não compete pedir autorizações específicas para adotar os procedimentos regulares.

Considerando o arrazoado acima, deve-se concluir que os deveres fiduciários decorrem necessariamente da pré-existência de uma relação fiduciária, como tal comprovada em cada situação concreta.

Diante de todo o exposto, não se pode de forma alguma considerar que, no direito brasileiro, os administradores de sociedades, especialmente as companhias, têm os seus deveres e responsabilidades fundados em princípios de natureza fiduciária. Não está presente qualquer dos critérios verificados nos ordenamentos jurídicos da common law acima enumerados. Não se trata de mandamento legal, de mútuo consentimento fundado em um contrato e muito menos da vontade de que se submete a uma relação de natureza. E, quanto a este último ponto, de quem se trataria, da sociedade ou dos acionistas, verificando-se que não se aplicaria a qualquer destes?

Portanto, deve ser afastado com toda a ênfase o errôneo entendimento de que os administradores de sociedades no direito brasileiro exercem a sua função sob o manto de uma relação fiduciária. Trata-se de um transplante absolutamente indevido que somente pode levar à morte do paciente, ou seja, a companhia por eles administrada, os seus credores e os seus acionistas. Fiquemos com o bom tratamento da lei 6.404/76 nos dispositivos adequados, sem nos preocupar em enquadrar os deveres e responsabilidades dos administradores em categorias mirabolantes. Eu os acho mais eficazes na sua simplicidade direta.

O tema será mais aprofundado em futuro texto, que fará parte do volume voltado para as companhias na próxima edição de nossa coleção de Direito Comercial. E vamos superar esse complexo de inferioridade. Observemos que a common law não existia enquanto o direito romano já era uma velha realidade.

Estamos, portanto, no campo do puro contrabando. Com a palavra a Aduana Jurídica, que deve pegar os infratores quando desembarcam no Brasil.
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1 Dissertação de Mestrado apresentada no Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP, 2017, pp. 138 e segs.

2 McGill Law Journal - Revue de Droit MacGill (2011) 56:2 McGill LJ 235.
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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor Sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

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