O direito de reflexão ou arrependimento - disposto no artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) – é uma faculdade do consumidor. Este pode solicitar o cancelamento da compra feita fora do estabelecimento comercial.
Analisando friamente a letra da lei, portanto, qualquer compra feita fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio, pode ser cancelada pelo consumidor dentro do prazo de 7 (sete) dias, a contar da assinatura do contrato ou do recebimento do produto ou serviço.
Mas tal direito é flexível? O direito de reflexão seria aplicável indistintamente a todos os contratos firmados fora do estabelecimento comercial?
Parece-nos que não é tão fácil responder tal questionamento. A lei é de 1990, tempos em que o consumidor era muito mais vulnerável a práticas abusivas frente ao poderio econômico das empresas. O CDC brotou como uma resposta legal protetiva, surgiram diversos órgãos de defesa do consumidor em todo o país.
O destacado art. 49 do CDC, vale lembrar, não mencionou as vendas por e-mails, sites, redes sociais, pois, como dissemos, o CDC é de 1990, são quase 30 anos da data de entrada em vigor, época em que essas ferramentas nem eram usadas.
Com o avanço dos meios tecnológicos de compra e venda e a necessidade de ter um regramento especial para as relações eletrônicas, foi editado, em 2013, o decreto 7.962, que veio a regulamentar o comércio eletrônico, também contemplando o direito de arrependimento em seu artigo 5º.
Porém, nenhum dos dispositivos menciona casos de vendas longe do estabelecimento comercial em que o consumidor tem a oportunidade de ver, testar, analisar o produto etc. Ainda, casos em que a empresa, após receber contato do consumidor, comparece em seu domicílio e apresenta o produto ou serviço/faz demonstração, como é o caso de atividade mercantil de sapatos, cosméticos - inclusive com teste desses bens -, tirar medida para costurar uma camisa, um terno e mostrar tantos outros produtos. Teria o consumidor direito de reflexão nessas hipóteses de venda presencial a domicílio?
Pois bem. O direito de reflexão tem como objetivo proteger o consumidor vulnerável de "compra de impulso, efetuada sob forte influência da publicidade sem que o produto esteja sendo visto de perto, concretamente, ou sem que o serviço possa ser mais bem examinado". Sergio Cavalieri Filho, em sua obra Programa de Direito da consumidora. Editora Atlas. São Paulo, p. 134.
Nas palavras do professor e defensor público, titular da Defensoria do Consumidor do DF, Antonio Carlos Fontes Cintra "a intenção do legislador inicialmente era a proteção das vendas feitas por catálogos, as chamadas vendas de 'porta em porta' (door to door), quando o consumidor é abordado em sua residência. A doutrina se divide sobre a ratio legis. Uns dizem que a razão do tratamento diferenciado é a não possibilidade de ver o produto, de tocá-lo, de testá-lo, de saber exatamente seu formato, tamanho, aparência, funcionalidade etc. Afinal, fotos comumente traduzem uma ideia distorcida da realidade".
O professor prossegue afirmando que "diverso é o caso do consumidor que procura o estabelecimento comercial e se mostra decidido pela aquisição da mercadoria ao ter demonstrado no próprio comparecimento suas intenções". CINTRA, Antonio Carlos Fontes. Direito do Consumidor. 1ª edição, Niterói: Impetus, p. 165.
Ao que parece, a melhor doutrina compartilha da ideia de que o direito de reflexão ou de arrependimento somente é aplicável aos casos de venda fora do estabelecimento comercial quando o consumidor não vê o produto, não toque, não teste o equipamento ou não tenha uma demonstração do serviço.
Em recentíssima decisão, a Justiça Paulista, em caso de venda a domicílio, compartilhou desse entendimento e julgou improcedente pleito de rescisão contratual e devolução de valor pago pela aquisição do produto. O magistrado destacou ser flagrante caso - apesar de a venda ter sido fora do estabelecimento - de "venda presencial, em que a autora testou o produto antes de comprar, inaplicável no caso o art. 49, CDC, não havendo como amparar o pedido de rescisão contratual". Proc. 0002015-84.2017.8.26.0441 - Juizado Especial Cível da Comarca de Caieiras/SP - Sentença publicada em 21/11/17.
Parece-nos, portanto, que o direito de reflexão não é aplicável aos casos em que o consumidor solicita a presença de um representante para lhe mostrar o produto ou fazer uma demonstração do serviço a ser contratado, mesmo que, nesses casos, a contratação se dê fora do estabelecimento comercial.
Porém, trazemos caso análogo ao citado acima que teve um desfecho diverso. A Justiça Fluminense aplicou a letra cega da lei, tendo decidido pelo cancelamento da compra sustentando que "em que pese o alegado pelo réu, o Art. 49 do CDC é claro ao afirmar que o consumidor tem direito de arrependimento sempre que a compra foi realizada fora do estabelecimento comercial, sendo indiferente o fato da ré ter mandado um consultor à casa do autor para a finalização da compra". Proc. autos 0028940-47.2017.8.19.0204 - JEC do Foro Regional de Bangu/RJ - Sentença publicada em 30/10/17.
Ainda, destacamos que a maioria dos Órgão de Defesa do Consumidor (PROCON’S) prosseguem com reclamações de consumidores, inclusive com imputação de multa às empresas que não desfazem compras com tal peculiaridade.
Talvez caiba melhor "reflexão" acerca da real intenção do legislador e até um acréscimo ao dispositivo 49 do CDC, pois não é aceitável a aplicação de penalidades em decorrência do não cancelamento de compra em casos de venda fora do estabelecimento comercial quando ela é "presencial" com demonstração e uso do produto ou serviço pelo consumidor antes de adquiri-lo.
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*Ezequiel Frandoloso é advogado em São Paulo, especialista em Direito do Consumidor, Civil, Empresarial e Constitucional de Frandoloso Sociedade de Advogados.