Migalhas de Peso

Sísifo e o processo administrativo sancionador do BCB e CVM (Tem ladeira em que somente se sobe)

Estamos falando de uma tarefa que nunca termina e parece que os comentários que eu já fiz sobre o tema em pauta têm um pouco a cara de obra de Sísifo. Já escrevi mais de meia dúzia de artigos e espero que, contrariamente ao destino do nosso infeliz inspirador, o assunto termine por aqui.

1/12/2017

Quem conhece um pouco da mitologia grega já ouviu falar de Sísifo. Quem não sabe favor procurar na wikipedia. Segundo a lenda, ele foi o mais astuto dos mortais, mas no fim se deu mal. Depois de várias peripécias, nas quais enganou muitos, o nosso anti-herói terminou condenado a rolar morro acima até o topo com suas mãos, por toda a eternidade, uma pesada pedra de mármore. Toda vez que Sísifo estava quase chegando ao alto, a pedra rolava de volta até o ponto de partida. E o seu trabalho começava novamente. E dele não podia pedir demissão.

Conforme visto acima, estamos falando de uma tarefa que nunca termina e parece que os comentários que eu já fiz sobre o tema em pauta têm um pouco a cara de obra de Sísifo. Já escrevi mais de meia dúzia de artigos e espero que, contrariamente ao destino do nosso infeliz inspirador, o assunto termine por aqui.

Tudo começou quanto saiu a MP 784/17, a qual terminou morrendo porque, contrariamente ao casulo da larva, ela não se transformou em uma linda borboleta jurídica por sua conversão em lei. Se tivesse acontecido, teria sido uma borboleta de asas defeituosas porque o material original era cheio de imperfeições. De suas cinzas nasceu um projeto de lei, objeto de mais dois textos da minha autoria e, quando menos se esperava, ele se tornou rapidamente na lei 13.506, de 13.11.2017. Quem disse que o Congresso não trabalha depressa, quando quer? Quanto à qualidade, vejamos em seguida.

A lei em pauta regula os instrumentos velhos e novos relativos ao processo administrativo sancionador que o BCB e a CVM podem instaurar nas áreas de suas competências. Segundo o disposto no art. 2º ela se volta para as infrações, as penalidades, as medidas coercitivas e meios alternativos de solução de controvérsias.

I – O campo do BCB

No que diz respeito à qualificação das infrações (art. 3º) já havíamos anotado diversas imprecisões da MP 784/17, que não foram aclaradas. Por exemplo, não se pode aquilatar com precisão, certeza e segurança o que são os preços destoantes do mercado, referidos no inciso VIII do art. 3º. Isto porque vigora no mercado a liberdade da fixação de taxas e do preço de serviços e, claro, muito raramente uma operação de credito será idêntica à outra, variando o seu preço em função de diversos fatores (risco particular do tomador; prazo; inexistência ou existência de garantias e sua qualidade; tributação; etc.).

Outros conceitos abertos estão no art. 4º, quando se refere a: (i) risco incompatível com a estrutura patrimonial; (ii) indisciplina, estabilidade ou funcionamento regular do Sistema Financeiro Nacional; (iii) afetar severamente a finalidade e a continuidade das atividades ou das operações no mesmo sistema. Dada a sua elasticidade, a consideração do BCB como infração relativamente a determinada prática corre o risco de ficar no campo do arbítrio e não da discricionariedade.

No tocante às penalidades algumas estranhezas se colocam, entre as quais a admoestação pública. Eu já havia mencionado nos artigos anteriores sobre esta matéria que, como bem sabem os que operam no mercado financeiro, a confiança é o seu elemento mais importante, até mesmo do que o capital de uma instituição financeira. Ora, o conhecimento público de que uma delas sofreu uma admoestação pública pode levar os depositantes e investidores a avaliarem se vale a pena continuar com os seus recursos mantidos em tal instituição.

A confiança é um elemento imponderável. Tanto ela pode ser mantida como perdida de um momento par ao outo. No caso do estabelecimento do Regime de Administração Temporária – RAET quanto ao antigo Banespa não houve corrida dos depositantes e investidores. Ao que tudo indica, acreditava-se que o BCB, juntamente com o Governo Federal, não permitiria que aquele banco quebrasse e causasse prejuízos aos seus clientes. Essa confiança foi positivamente atendida a partir do momento em que o Santander o adquiriu em leilão público. Mas em uma situação muito mais favorável, quando foi decretada a intervenção do BCB nos bancos Auxiliar, Comind, Sul Brasileiro e Maisonnave em 1985, deu-se uma corrida outras instituições que nada tinha a ver com os problemas daquelas, o que causou um pouco de trauma, felizmente controlado, não tendo havido os efeitos de um risco sistêmico.

Entre as penalidades a de multa passou para um patamar máximo bastante elevado, de até R$ 2 bilhões, cuja aplicação deverá necessariamente atender de um lado a gravidade da infração praticado, mas de outro, a capacidade financeira do indiciado no processo administrativo sancionador, sob pena de causar a sua quebra.

No tocante à pena de inabilitação de vinte anos, prevista no art. 5º, § 1º ela se revela, no fundo, uma pena perpétua porque depois de transcurso de todo esse tempo, o agente evidentemente estará completamente sem condições de voltar ao mesmo mercado.

Outro instituto – o do termo de compromisso - também apresenta a possibilidade de causar risco de quebra para as instituições penalizadas, em vista da eventual perda da confiança na instituição financeira penalizada. Veja-se, por exemplo, a adoção de medidas pelo Ministério Público contra a instituição financeira e/ou seus administradores indiciados em um processo administrativo em vista da acusação da alguma prática no campo da competência daquele, que dos fatos é cientificado pelo BCB nos termos do § 2º do art. 13. Aliás, se de crime se trata em determinada situação, não seria o caso de desmerecer a sua gravidade pela celebração de um termo de compromisso na esfera administrativa.

Voltando ao termo de compromisso, o § 2º do art. 11 menciona que a suspensão do processo administrativo se dará somente em relação ao acusado que o firmou. Suponhamos que tal pessoa seja um diretor da instituição financeira indiciada, que seria favorecido em tal situação. No entanto, de acordo com o art. 158 da Lei de Sociedades Anônimas - LSA - todos os administradores devem ser responsabilizados pela prática de atos culposos ou dolosos, sem diferenciação, inclusive quando se trata de negligência na fiscalização dos atos praticados pelos pares. Dessa forma, fundado em um alegado interesse na celebração do Termo de Compromisso, um dos administradores ficará livre de penalidades no âmbito do BCB, enquanto ele e todos os outros remanescem responsáveis nos termos da LSA. Uma contradição, como se pode verificar.

Por sua vez, o acordo de leniência que estava previsto na MP 784/17 recebeu na lei sob comentário a designação de acordo administrativo em processo de supervisão (art. 30 a 32). Mais uma vez se coloca aqui a questão da perda de confiança da instituição financeira acusada diante do mercado. A diferença em relação ao termo de compromisso está no fato de que no caso do acordo administrativo, está presente a confissão da prática de um ilícito, inexistente no primeiro. Portanto, a situação aqui é mais grave. Um dos seus fundamentos é uma espécie de delação premiada, presente no inciso I do art. 30 e nos incisos I e IV do seu parágrafo segundo.

Da mesma forma e com os mesmos contornos negativos que relacionam o termo de compromisso e esse acordo administrativo, é prevista a atuação do Ministério Público e de outros órgãos governamentais (art. 30, § 6º e 31, §§ 2ºe 3º).

II – O campo da CVM

No tocante à CVM algumas disposições especiais foram estabelecidas, tendo em vista o caráter peculiar do mercado de capitais, diferente do mercado financeiro.

No sentido acima, por meio da inclusão do novo parágrafo 4º ao art. 9º da lei 6.385, de 07.12.1976, na apuração de infrações da legislação do mercado de valores mobiliários, a CVM priorizará as infrações de natureza grave, cuja apenação proporcione maior efeito educativo e preventivo para os participantes do mercado. Por outro lado, poderá deixar de instaurar o processo administrativo sancionador, consideradas a pouca relevância da conduta, a baixa expressividade da lesão ao bem jurídico tutelado e a utilização de outros instrumentos e medidas de supervisão que julgar mais efetivos.

Foi determinada mudança na sistemática das penalidades por nova redação ao art. 11 da mesma lei acima, destacando-se: (i) inabilitação temporária até o máximo de vinte anos para o exercício de cargos no âmbito do mercado de capitais: (ii) sistema de multas variável entre R$ 50 milhões ou o dobro no caso de emissão ou operação irregular e o triplo para o caso de reincidência; três vezes o montante da vantagem econômica obtida ou da perda evitada em decorrência de ilícito; ou o dobro causado a investidores.

Também é prevista a possibilidade da assinatura de um termo de compromisso após análise de conveniência e oportunidade, com vistas a atender ao interesse público. Sua celebração poderá fazer com que a CVM deixe de instaurar ou suspender, em qualquer fase que preceda a tomada da decisão de primeira instância, o procedimento administrativo destinado à apuração de infração prevista nas normas legais e regulamentares cujo cumprimento lhe caiba fiscalizar. Aqui não se verificam os problemas de perda de confiança referidos quanto a instituições financeiras, supra referidos.

Conclusão (será?)

Penso que vou ficar aqui, por enquanto. Vejamos com o tempo como essa lei será aplicada e quais as questões que ela levantará para voltarmos ao assunto, a não ser que surja alguma novidade.

Sísifo, adeus, ou ao menos até não muito logo!
_______________

*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor Sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.


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