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Novos investimentos em distribuição de gás: segurança jurídica e planejamento

A expansão das malhas de transporte e distribuição aliada à convergência no uso do gás natural e da energia elétrica compreende uma das diretrizes do programa "Gás para Crescer" e talvez seja o elemento chave para estimular o investimento nas distribuidoras.

10/11/2017

O seminário Privatização das Companhias de Gás: Oportunidades, Investimentos e Desafios, realizado no último dia 20 de outubro, em São Paulo, teve como foco os estudos iniciados pelo BNDES, por iniciativa de alguns estados da federação (Mato Grosso do Sul e Pernambuco), para desestatização das distribuidoras de gás, e também o debate sobre as iniciativas do programa Gás para Crescer, diante do recente encaminhamento do substitutivo do PL 6.407/13 (Novo Marco Legal do Gás Natural) para aprovação pelo Congresso Nacional.

Algumas questões polêmicas sugiram em torno das privatizações das distribuidoras estaduais e do Novo Marco Legal do Gás Natural, com destaque para os temas segurança jurídica e planejamento.

Neste artigo, trago dois aspectos desses temas abordados nas apresentações dos palestrantes e nas perguntas feitas pela plateia.

I – Comercialização de gás natural: invasão da competência estadual?

A Constituição Federal criou um sistema de divisão de competências onde as atividades de exploração (pesquisa e lavra), a importação, exportação e o transporte do gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos constituem monopólio da União, podendo ser exercidas por empresas estatais ou privadas, através de contrato (cf. art. 177, §1º), enquanto os serviços locais de gás canalizado ficaram na esfera exclusiva de atuação dos estados, que podem explorá-los diretamente ou mediante concessão (cf. art. 25, §2º).

A Carta de 1988 não definiu o que são "serviços locais de gás canalizado", tendo sido a questão tratada inicialmente pela lei 9.478, de 06 de agosto de 1997, que dispôs sobre a política energética nacional, as atividades relativas ao monopólio do Petróleo e instituiu o Conselho Nacional de Política Energética e a Agência Nacional do Petróleo (ANP).

Assim, a lei 9.478/97 definiu a atividade de distribuição de gás canalizado como "serviços locais de comercialização de gás canalizado, junto aos usuários finais, explorados com exclusividade pelos Estados, diretamente ou mediante concessão, nos termos do § 2º do art. 25 da Constituição Federal" (cf. art. 6º, XXII).

O STF já se pronunciou, no âmbito da Reclamação 4210-SP1, sobre a competência para regular as atividades que envolvem movimentação de gás (transporte e distribuição), entendendo que a competência da União estaria limitada ao transporte da molécula de gás da empresa produtora até as distribuidoras, restando aos estados regular as relações entre as distribuidoras e seus consumidores.

Com relação à atividade de comercialização de gás natural (compra e venda da molécula), a Lei Federal 11.909, de 04 de março de 2009 (Lei do Gás), regulamentada pelo decreto 7.382/10, atribuiu à União competência privativa para regular as atividades de tratamento, processamento, estocagem, liquefação, regaseificação e comercialização de gás natural (cf. Lei do Gás, art. 1º, §1º) e acrescentou o inciso XXVI ao artigo 8º da lei 9.478/97, estabelecendo a atribuição da ANP para autorizar a prática da atividade de comercialização de gás natural, dentro da esfera de competência da União .

A partir de então, foi pacificado o entendimento de que a comercialização de gás natural estaria englobada na competência da União, enquanto relacionada ao transporte do produto, desde as instalações da empresa produtora ou importadora da molécula de gás até a transferência de titularidade do gás à distribuidora estadual, enquanto que aos estados incumbiria regular os aspectos da comercialização no âmbito da distribuição, assim compreendida como a movimentação do gás natural pelo sistema de dutos operado pela distribuidora até a sua entrega ao usuário final.

Essa não foi a lógica adotada no texto do substitutivo do Projeto de Lei 6.407/13 (Novo Marco Legal do Gás Natural), finalizado na segunda quinzena do mês de outubro passado, a partir das diretrizes do programa "Gás para Crescer", do Ministério de Minas e Energia.

Com efeito, o texto do substitutivo do PL 6407/13 redefine a atividade de distribuição de gás canalizado, retirando o aspecto da comercialização dos serviços locais, e amplia as atribuições da ANP, no âmbito da comercialização de gás natural no mercado livre, para que a Agência Federal estabeleça os critérios de determinação do consumidor livre, o que, no sistema atual, recairia na competência regulatória estadual (cf. art. 3º, XIII, XIV e XVI).

Segundo declarou o presidente da Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás - ABEGÁS2, há riscos de perda de investimento e insegurança jurídica para o setor, o que reflete, sobretudo, a posição oficial das distribuidoras privatizadas do Sudeste, receosas, em menor grau, com o impacto que a regulação federal da comercialização possa ter na tarifa e, em maior grau, com a possibilidade de perda de clientes industriais cativos para o mercado livre.

A legitimidade desse pleito das não está isenta de críticas, pois, na prática, a parcela da tarifa de distribuição correspondente à margem de comercialização da molécula é irrelevante em comparação à remuneração cobrada do consumidor pela capacidade ou uso do sistema de dutos operado pela distribuidora, cuja tarifa continuará sendo paga pelos clientes industriais situados na área de jurisdição das distribuidoras sejam eles aderentes ao mercado livre ou cativo.

Ademais, a desvinculação (unbundling) das atividades de comercialização e de operação do sistema de gás canalizado, de fato, poderá promover maior transparência para o consumidor livre de gás natural que, assim, poderá avaliar o custo do energético segregado dos custos de seu transporte e distribuição, que lhe serão cobrados através da tarifa de distribuição local.

Às vésperas das eleições de 2018, a palavra final sobre a constitucionalidade da competência privativa da União para regular o mercado livre de comercialização de gás, no entanto, deve ficar novamente com o STF, trazendo um elemento de insegurança jurídica para o investidor e estados interessados na venda do controle das distribuidoras estatais.

II – Compartilhamento da infraestrutura de transporte e distribuição de gás natural e planejamento integrado da expansão com o setor elétrico como premissas para o desenvolvimento do setor.

Outro aspecto não menos crítico para o investidor privado do setor de gás natural, que foi enfatizado na palestra de Emmanuel Delfosse, da Engie Brasil, é a necessidade de planejamento da oferta de gás natural, desde o produtor ou importador (upstream) até a distribuição local (downstream), o que passa pelo desenvolvimento de um mercado de transporte (midstream) mais eficiente e competitivo.

Nesse sentido, além da desvinculação das atividades de comercialização e de operação dos sistemas de transporte e distribuição, Delfosse apontou ainda três outros requisitos essenciais para esse objetivo seja alcançado, que são (i) a existência de um regulador independente e de uma regulação harmônica entre os estados e União, (ii) a transparência nas revisões tarifárias que garantam a qualidade do serviço e o retorno do investimento e (iii) o acesso à infraestrutura de transporte por terceiros (essential facilities doctrine), com o compartilhamento de infraestrutura essencial (rede, estações de regaseificação, UPGNs e City Gates).

Sobre o terceiro requisito, a doutrina das Essential Facilities, que trata do compartilhamento de bens essenciais, já é conhecida e aplicada no direito concorrencial estrangeiro em casos envolvendo situações de monopólios naturais, onde a duplicação de infraestrutura é inviável, seja por impossibilidade física ou econômica3, e, no Brasil, o CADE tem sido receptivo à essa tese, aplicando-a em casos envolvendo a indústria petroquímica4 e de telecomunicações5.

No caso da infraestrutura de transporte e distribuição de gás, o compartilhamento da rede e de outros bens essenciais pode diversificar as opções para o consumidor final livre, ao mesmo tempo em que estimularia a expansão inorgânica do sistema.

Nesse sentido, conforme observado por Mark MacHugh, no artigo "Brazil’s Midstream Opening Up", publicado em 3.11.17, é fundamental que haja um planejamento integrado de expansão entre o setor elétrico e a rede de transporte de gás, trazendo para essa equação o uso contínuo de térmicas a gás natural, não apenas como alternativa às fontes hídricas em períodos secos, mas como um elemento promoção de demanda de curto prazo e monetização do gás natural extraído nos campos do pré-sal.

A expansão das malhas de transporte e distribuição aliada à convergência no uso do gás natural e da energia elétrica compreende uma das diretrizes do programa "Gás para Crescer" e talvez seja o elemento chave para estimular o investimento nas distribuidoras.

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1 STF, Reclamação 4210/SP – Rel, Min. Cármen Lúcia, DJ 14.11.06.

3 ALEXANDRE, Letícia Frazão. A DOUTRINA DAS ESSENTIAL FACILITIES NO DIREITO CONCORRENCIAL BRASILEIRO. Revista do IBRAC – Direito da Concorrência, Consumo e Comércio Internacional | vol. 12/2005 | p. 205 - 241 | Jan / 05 | DTR\2011\2121

4 Ato de Concentração 54/95. Requerentes: Cia. Petroquímica do Sul – COPESUL; OPP Petroquímica S.A. (Antiga PPH – Cia Industrial de Polipropileno); OPP Polietilenos S.A. (Antiga Polisul – Petroquimica S.A.) e Ipiranga Petroquímica S.A..Ato de Concentração 54/95. Ver CADE, Relatório Anual 1998-1999, p.101.

5 Processo Administrativo 53500.000359-99, TVA Sistema de Televisão S/A – Directv v. TV Ltda e TV Globo São Paulo Ltda. – Globo; Processo Administrativo 53500.005770/2002, Empresa Brasileira de Telecomunicações S/A – Embratel v. Telecomunicações de São Paulo S/A – Telesp.

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*Daniel Gomide é sócio do escritório Carvalho, Machado e Timm Advogados, onde atua com foco nas áreas de direito societário, fusões e aquisições, contratos comerciais e de infraestrutura.


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