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Análise comparativa entre os Julgados de Paz em Portugal e os Juizados Especiais no Brasil na área cível

Faremos explanação sobre os princípios, conceito e funcionamento dos Julgados de Paz em Portugal bem como a estrutura, constituição e os Juizados Especiais no Brasil.

31/10/2017

Introdução

O ingresso à justiça de todos os cidadãos e recebimento de resposta de modo célere e a um custo módico é o mínimo que se espera em uma democracia que pretende respeitar o princípio da dignidade da pessoa humana.

Quando os mais vulneráveis não têm acesso à resolução de suas demandas, possivelmente os mais fortes financeiramente mantêm seu status quo e fazem prevalecer suas posições no conflito. Se o Poder judiciário tiver uma organização que se aproxime das pessoas, dando verdadeiro acesso ao direito, é possível que se possa minimizar essas diferenças com a efetiva aplicação da lei.

A partir de um conflito, um entendimento diverso da aplicação da norma entre duas ou mais pessoas, é que é criado o litígio. De um lado, conflito é uma oposição, uma rivalidade que não pode ser transposta a não ser que se leve para ser decidido pelos tribunais. De outro lado, pode ser considerado como uma maneira de crescimento em que a sociedade consegue resolver de modo racional e polido por métodos alternativos com ou sem a utilização direta do Poder Judiciário.

De acordo com Gouveia1 , as resoluções alternativas de litígios – RAL introduz modos de chegar a um entendimento como a conciliação, mediação e arbitragem, que dão uma resposta mais realista, informalizando a justiça, mitigando os conflitos sociais de forma rápida e concreta.

Na linha de ensinamento de Frade2 , diversos motivos podem evitar que um conflito se transforme em litígio. A pessoa pode entender que não há conflito, não sabe do problema ou, se souber, não tiver ânimo de disputar a questão, aceitando-a passivamente. De outro lado, é possível que ela resolva esse embate francamente com a parte contrária, sem intervenção de terceiros.

Se nenhuma das possibilidades forem eficazes e o litígio for inevitável, antes da decisão dos tribunais, pode-se resolver a situação com apoio de profissionais que possam propiciar um acordo onde os interessados sintam que o resultado seja bom para todos, de modo mais simples, direto e principalmente mais célere.

Os estados têm a responsabilidade de entender quais os meios mais apropriados a cada tipo de situação, valor da causa, pessoas envolvidas e natureza do litígio para eleger qual o melhor sistema jurídico a ser aplicado em seus países. A resolução alternativa de litígios é uma saída suplementar à justiça comum porque esta não consegue atingir o desiderato final como resposta aos anseios sociais.

Gouveia entende que os modos de solução alternativa de litígios procuram dar uma solução à crise da justiça no âmbito da qualidade e não da quantidade3 . Isso se verifica porque há importantes ganhos qualitativos nos meios de resoluções consensuais como as soluções integrativas obtidas com a realização apropriada de técnicas por especialistas habilitados que conseguem reunir rapidez com efetividade do acordo entre as partes.

De modo geral, as pessoas de Portugal e do Brasil buscam atendimento de suas pretensões, na área cível, utilizando-se dos tribunais ordinários. Atualmente, com a disseminação de informações pelos diversos canais midiáticos, os cidadãos passaram a ter conhecimentos desse acesso, fazendo com que o número de processos no judiciário aumente sobremaneira inviabilizando seu atendimento regular, em tempo e eficácia.

Isso ocorre em menor ou maior grau em ambos os países, levando seus respectivos Poderes Judiciários a uma situação insustentável, principalmente nos casos onde envolvem litígios sobre pequenos valores.

Para atendimento dessa urgente reivindicação social nesses países, Portugal e Brasil criaram institutos próprios para mitigar o problema, os Julgados de Paz e os Juizados Especiais, respectivamente.

A seguir apresentaremos ambas as ferramentas jurídicas com suas organizações, atores, critérios de funcionamento e estrutura física. Então faremos uma comparação entre essas com objetivo de apontar os principais desafios a serem ultrapassados na aplicação concreta do direito e satisfação do cidadão nessas estâncias de decisão.

1. Visão geral da solução de litígios em Portugal e no Brasil

1.1. A desjudicialização das relações sociais no Brasil4

Para respeitarmos o princípio da dignidade da pessoa humana definido no Inciso II do Artigo 1.º da Constituição brasileira, há que se promover o acesso democrático à justiça e estruturação jurídica equânime.

Segundo Ives Gandra 5 e outros, essa possibilidade de utilização igualitária da justiça ou, no mínimo, o direito ao acesso ao direito, somente poderá ser atingido quando, a partir da norma em abstrato, empregar-se concretamente a norma legal.

Tradicionalmente, os cidadãos em busca de prestação jurisdicional vão aos fóruns encaminhar suas demandas e necessidades. Nesse momento cria-se a cultura do litígio onde todas os problemas individuais e coletivos são levados para resolução do poder judiciário, aumentando o número de processos de maneira crescente e inviabilizando do atendimento regular aos cidadãos.

O CNJ – Conselho Nacional de Justiça apresenta, em seu site na área Justiça em números6 que o tempo médio para sentença de primeiro grau na justiça estadual é de quatro anos e quatro meses. Soma-se a essa grande espera, em grau recursal, os tribunais de justiça demoram cerca de seis meses em média para resolver as questões a eles solicitadas.

É razoável inferir que, com a modernização da vida atual, o tempo tornou-se ainda mais importante para proveito da vida social e econômica do cidadão. Isso se acentua mais nos casos de processos de jurisdição voluntária, onde não há conflito de interesses e essa espera torna-se ainda mais difícil.

No mesmo site é possível avaliar no painel de processos7 do Poder Judiciário brasileiro a inacreditável marca de 73,9 milhões de processos pendentes em todo o país em 2015 ao passo que no ano de 2011 era de 64,4 milhões. Isso chega a quase 15% de aumento em apenas quatro anos, representando uma crise no Poder Judiciário que se encontra moroso e ineficiente.

Cappeletti e Garth, citados por Norma Jeane Fontenelle Marques8 , defendem que o alcance à justiça não deve ser apenas pelo Poder Judiciário, mas também por outras formas que promovam sua efetividade em um tempo plausível. Os autores classificaram as dificuldades de acesso à justiça em três ondas renovatórias de acesso à justiça, como no texto:

"A primeira onda renovatória se referia à ampliação de acesso ao judiciário, concedendo assistência judiciária aos pobres, por meio de remoção das barreiras econômicas".

Essa onda está representada no Inciso LXXIV do Artigo 2º da Constituição Federal9 brasileira, que define: "O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos".

Incontinenti, a segunda onda prescreve que o Estado se preocupou com a salvaguarda dos interesses difusos, inclusive estabelecendo constitucionalmente, no Artigo 129, como função do Ministério Público a promoção do inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.

Por fim, a terceira onda incorporou e aperfeiçoou as concepções das duas primeiras, mostrando a possibilidade de emprego de novos métodos de soluções de contendas.

O acesso à justiça não pode ser simplesmente a leitura da letra da lei, deixando-se passar anos até que tenham alguma solução para as pessoas, principalmente nos casos onde não há litígio, na chamada jurisdição voluntária. Para que o direito tenha mais efetividade, um dos métodos mais adequados é a chamada desjudicialização. É a autorização por meio de lei, de realização de certos processos por tabeliães, registradores, conciliadores ou árbitros escolhidos livremente pelos interessados, por meio de procedimentos mais simples, sem a constituição de relação jurídica processual, em assuntos que se tratem de direitos disponíveis.

Em suma, é a transferência daquilo que não seja contencioso para profissionais de direito com o fito de diminuir a carga de trabalho do judiciário. Esse dispositivo não diminui o poder dos magistrados pois, de qualquer modo e em qualquer situação, o cidadão pode socorrer-se do Poder Judiciário em qualquer momento que se sentir prejudicado.

As leis que permitem a desjudicialização assentem que os interessados possam buscar respostas a seus problemas de modo rápido e simples, sem necessitar a interposição do estado-juiz, garantindo esse direito a todas as pessoas, indistintamente.

Para minimizar a sobrecarga de processos do Poder Judiciário, foi pensada em desjudicialização, um instrumento factível e efetivo para auxiliar os cidadãos nos casos em que não há litígio entre as partes, deixando para os magistrados as decisões onde envolvam lide entre duas ou mais pessoas.

Um exemplo de desjudicialização é o caso previsto no Código de Processo Civil10 brasileiro - CPCb, em seu item VII do Artigo 515, onde descreve que a sentença de Arbitragem serve perfeitamente como como título executivo judicial. Juízo arbitral ou arbitragem é um modo facultativo que as partes têm para resolver litígios por meio de escolha consensual de pessoa capacitada para tomar decisão sobre eventual lide, conforme dispõe a lei 9307/96 11. Nesse caso, os procedimentos são mais simples e de menor austeridade com relação à preceitos legais do que no processo judicial, inclusive aceitando a deliberação com a utilização da equidade.

Independente da demanda, quando se tratar de direitos indisponíveis é obrigatória a condução para o judiciário não podendo ser tratado pela via da arbitragem. É entendimento do Supremo Tribunal Federal 12 que, se houve manifestação livre das partes em escolher o árbitro para tratar de demanda sobre bens e direitos disponíveis, não há desrespeito à inafastabilidade da prestação jurisdicional.

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1 GOUVEIA, Mariana França - Curso de resolução alternativa de litígios. 3.ª ed. Almedina, 2014, p.21.

2 FRADE, Catarina - A resolução alternativa de litígios e o acesso à justiça: A mediação do sobreendividamento. Revista Crítica de Ciências Sociais [em linha]. n.º 65, Mai 2003, p. 107-128. [Consult. 27 Jul. 2017]. Disponível em < A resolução alternativa de litígios e o acesso à justiça: A mediação do sobreendividamento)

3 GOUVEIA, Mariana França – Op. Cit., p. 22.

4 SOARES, Matias Gonsales - A usucapião administrativa de imóveis urbanos no Brasil – oportunidades e desafios para uma aplicação eficaz. São Paulo: Faculdade Damásio, 2017. Monografia de Pós-graduação em Direito Notarial e Registral.

5 MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira; NASCIMENTO, Carlos Valder do (Coord.). Tratado de direito constitucional, 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, 9788502090910.

6 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números [em linha]. [Consult. Mai. 2017]. Disponível em <Justiça em números>.

7 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números [em linha]. [Consult. 9 Mai. 2017]. Disponível em: <Justiça em Números>.

8 MARQUES, Norma Jeane Fontenelle. A desjudicialização como forma de acesso à Justiça. In: CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1988, ISBN 9788536254746 p. 36.

9 BRASIL. Constituição Federal do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2012. ISBN 978-85-7018-470-2.

10 NEGRÃO, Theotônio et alii anot. - Código de Processo Civil e Legislação Processual em Vigor. São Paulo: Saraiva, 2016. ISBN 9788502624979.

11 BRASIL. Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996. Dispõe sobre a arbitragem. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, 24.set.1996 [em linha]. Lisboa: PGDL, 1996. [Consult. 14 Ago. 2017]. Disponível em: <  Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996. Dispõe sobre a arbitragem>

12 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na Sentença Estrangeira 5.206/EP. [em linha].Brasília: Diário da Justiça de 30.04.2004. [Consult. 14 Ago. 2017]. Disponível em: < Sentença Estrangeira>

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*Matias Gonsales Soares é advogado, especialista em direito administrativo, civil e processual civil e mestrando em Direito pela Universidade Autônoma de Lisboa - UAL.

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