A lei 13.491/17 alterou a competência das Justiças Militares Federal e Estadual, promovendo sua ampliação.
O intento deste trabalho é traçar, despretensiosamente, as primeiras linhas interpretativas da alteração legal, inclusive abrindo espaço para alguns questionamentos que ainda podem ser objeto de acesa polêmica doutrinária e jurisprudencial.
Uma primeira alteração de monta diz respeito ao afastamento da Justiça Comum dos crimes dolosos contra a vida praticados por militares das forças armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) contra civis. A competência agora passa a ser da Justiça Militar Federal. Isso porque a legislação sob comento alterou o conceito de "crime militar" para abranger os casos previstos agora no artigo 9º., § 2º., incisos I a III do CPM.1 Portanto, algum caso de suposto homicídio de civil ocorrido em ações das Forças Armadas, em apoio às forças de Segurança Pública dos Estados, por exemplo, como tem ocorrido, será de competência da Justiça Militar Federal.
Não há inconstitucionalidade na alteração, vez que a Constituição Federal, quanto aos Militares da União, apenas dispõe em seu artigo 124 que cabe à Justiça Militar "processar e julgar os crimes militares definidos em lei". Assim sendo, no campo da Justiça Militar Federal, a competência está atrelada ao conceito do que seja "crime militar" e esse conceito é atribuído, pela própria CF, à lei ordinária. Quando o Código Penal Militar define como crime militar, mesmo o homicídio de civil por militar em dadas circunstâncias, apenas cumpre o mandamento constitucional de proceder à definição de crime militar e, por reflexo, delimitar a competência da Justiça Militar Federal. Observe-se que quando se trata na CF da competência da Justiça Militar Federal, não existe previsão de ressalva quanto aos crimes dolosos contra a vida de civil (vide artigos 122 a 124, CF).
Essa limitação se dá, somente no caso da Justiça Militar Estadual, nos termos do artigo 125, § 4º., CF. Ali se estabelece a competência da Justiça Militar Estadual para o julgamento dos "militares dos Estados" nos "crimes militares definidos em lei". Entretanto, existe a ressalva da competência do júri quando a vítima for civil, o que demonstra que a competência nos crimes dolosos contra a vida de civil, perpetrados, em tese, por militares, ainda que no exercício da função, será da competência da Justiça Comum Estadual (Tribunal do Júri).
Dessa forma a Lei 13.491/17 não poderia, sob pena de inconstitucionalidade, retirar a competência do Júri e atribuir à Justiça Militar Estadual o processo e julgamento de crimes dolosos contra a vida perpetrados, em tese, por Policiais Militares contra civis, ainda que no exercício da função. Tal alteração somente seria possível por meio de emenda constitucional.
Então, a legislação em destaque manteve, em seu artigo 9º., § 1º., a competência da Justiça Comum Estadual (Tribunal do Júri) para processar e julgar os crimes dolosos contra a vida praticados por militar contra civil. A alegação de que se estaria fazendo referência a um suposto "Tribunal do Júri" da Justiça Militar soa absolutamente absurda. A uma porque simplesmente não existe tal previsão sequer no Código de Processo Penal Militar, o qual somente prevê os procedimentos ordinário ou comum e procedimentos especiais, inexistindo sequer menção à instituição do Tribunal do Júri.2 A duas, porque é notório que a Constituição Federal ao tratar do "júri" no artigo 125, § 4º., somente poderia se referir àquele afeto à Justiça Comum, mesmo porque inexistente Tribunal do Júri no âmbito da Justiça Militar, conforme antes exposto. Além disso, pretender distorcer o texto constitucional e agora o legal para falar de um fantástico Tribunal do Júri Militar é pretender tapar o sol com peneira, como popularmente se diz, quanto às motivações da emenda constitucional que retiraram da Justiça Militar os crimes dolosos contra a vida perpetrados por Policiais Militares, devido a pressões internacionais e tratados sobre Direitos Humanos de que o país é signatário, tendo em vista a alta letalidade em confrontos (e aqui não se discute a questão da legalidade ou não das mortes, já que se trata de uma competência para processo e julgamento, quando prevalece, até prova em contrário, a presunção de inocência). Não obstante, é uma "cegueira deliberada" pretender ocultar as circunstâncias em que a Emenda Constitucional 45/04 se construiu no que tange a essa guinada da competência da Justiça Militar Estadual para o Tribunal do Júri, obvia e notoriamente, da Justiça Comum Estadual, jamais militar. Como dito, era mesmo impossível que o legislador constituinte fizesse referência a um suposto "Tribunal do Júri Militar" inexistente, uma espécie de espectro fantasmagórico jurídico inventado "ad hoc" e "a posteriori" em atividade tipicamente corporativista. Se pretendesse sua criação, o constituinte derivado o faria expressamente, jamais procedendo a simples alusão do júri, na clara intenção de excepcionar e afastar a Justiça Militar.3
Correto o ensinamento de Rosa:
"No Brasil, o Júri é uma instituição da Justiça Comum dos Estados e excepcionalmente poderá existir no âmbito da Justiça Federal quando envolver interesses da União, como ocorre, por exemplo, quando um funcionário federal em serviço seja vítima de homicídio praticado por um cidadão, este será processado e julgado na Justiça Federal. Portanto, com base nos preceitos constitucionais e nas disposições estabelecidas na legislação infraconstitucional não é possível a existência do Tribunal do Júri no âmbito da Justiça Militar dos Estados, Distrito Federal e União".4
Porém, no que tange aos demais crimes, o inciso II, do artigo 9º., ganhou nova redação, ampliando sobremaneira a competência da Justiça Militar Estadual. Agora todos os crimes, previstos no CPM ou mesmo sem previsão neste e somente na Legislação Penal Comum (Código Penal e Leis Esparsas), serão julgados pela Justiça Militar, desde que, em resumo, sejam praticados por Policial Militar em serviço, no exercício da função.5 Crimes como os de Abuso de Autoridade (lei 4898/65) ou de Tortura (lei 9455/97), embora sem previsão expressa no CPM, passam a ser de competência da Justiça Militar Estadual, desde que perpetrados por Policiais Militares no exercício das funções.
Observe-se que quanto aos crimes de abuso de autoridade praticados por militar contra civil, existe a Súmula 172, STJ, determinando a competência da Justiça Comum. Da mesma forma, há a Súmula 6 do STJ, afirmando que no caso de acidente de trânsito com viatura da Polícia Militar, se houver vítima civil , a competência também seria da Justiça Comum. Há ainda a Súmula 75, STJ, estabelecendo a competência da Justiça Comum para o julgamento de policial militar no crime de promoção ou facilitação de fuga de preso de estabelecimento penal. Além disso, no caso de desacato que não seja praticado "contra superior, militar ou assemelhado ou funcionário civil no exercício de função ou em razão dela, em lugar sujeito à administração militar", tem sido considerada a competência da Justiça Comum, ainda que "praticado por militar em serviço". 6 No entanto, à vista da nova redação legal explícita, tais mandamentos jurisprudenciais podem ser revistos.
Uma questão que pode, talvez, manter a competência da Justiça Comum nestes casos, é o fato de que a atividade de policiamento ostensivo – preventivo não é considerada "militar", mas civil. Isso porque a atividade policial não tem natureza originalmente militar. Ela é integrante das atividades civis. Mir é enfático ao afirmar que "o policial está inserido em contexto diametralmente oposto ao do militar". 7 Dessa forma, considerando que o Policial Militar no exercício de policiamento ostensivo – preventivo não estaria em atividade de natureza militar, realmente a competência permaneceria na Justiça Comum. Essa é uma possibilidade interpretativa, mas não há como saber, no momento, qual será o posicionamento dos Tribunais. Arriscando uma opinião, entende-se que a tendência seja a de atribuir à Justiça Militar todo o qualquer suposto delito perpetrado por Policial Militar em serviço, após o advento da lei 13.491/17. Contudo esse não será o melhor direcionamento interpretativo, vez que submeteria militares a uma espécie de foro privilegiado quando cometem, em tese, crimes contra civis e em atividade tipicamente civil (atividade policial). É de entender que a norma trazida pela lei 13.491/17 não é inconstitucional em si, mas pode ser inquinada desse vício de acordo com a interpretação e aplicação que se lhe empreste na prática forense.
Loureiro Neto, por exemplo, tem uma visão ampla do seria um militar em serviço. Afirma o autor que "a expressão 'em serviço' deve ser entendida como qualquer atividade de natureza militar ou policial militar praticada pelo militar em cumprimento a determinação superior" (grifo nosso). 8
Outro problema interessante diz respeito ao direito intertemporal. Como ficarão os casos que atualmente estão na Justiça Comum Estadual e Federal e que passaram a ser de competência da Justiça Militar?
Quando ocorre alteração de competência territorial, há discussão sobre a aplicação da chamada "perpetuatio juridicionis", ou seja, a manutenção da competência original, mesmo com a mudança territorial. Esse é o entendimento majoritário (no caso de alteração de competência territorial – "ratione loci"), por aplicação por integração do artigo 43, CPC, nos termos do artigo 3º., CPP. Há, contudo, entendimento de que o processo deve deslocar-se para o novo juízo competente, já que, ao reverso do CPC, o CPP não contém regra para esse tipo de situação (posição minoritária).
Ocorre que no caso da alteração da competência da Justiça Comum para a Militar, não se trata de competência territorial relativa ("ratione loci"), mas sim de competências absolutas em razão da matéria ("ratione materiae" – crimes militares) e em razão do cargo ("ratione personae" – militares). Esses casos são excepcionados até mesmo pelo artigo 43, CPC de forma expressa. A "perpetuatio jurisdicionis" ali é determinada apenas quanto à competência territorial, excetuando-se as alterações de "competência absoluta". Portanto, pode-se dizer que à unanimidade o entendimento será de que os feitos em andamento deverão ser remetidos à Justiça Militar para prosseguimento. Isso deve ser aplicado também com relação aos Inquéritos Policiais em andamento na Polícia Civil que versem sobre casos onde houve alteração da competência, pois, em se tratando agora de crimes militares, passam a ser de atribuição da Polícia Judiciária Militar.
Doutra banda, permanecendo os crimes dolosos contra a vida praticados, em tese, por Policiais Militares contra civis, quando em serviço, de competência da Justiça Comum, perdeu o legislador uma preciosa oportunidade de por fim à celeuma acerca da atribuição de Polícia Judiciária Civil ou Militar para sua apuração na fase de Inquérito. Isso porque, embora se possa concluir pela atribuição da Polícia Civil, já que a competência é da Justiça Comum, conforme norma constitucional (artigo 125, § 4º., CF e mesmo do CPM, artigo 9º., § 1º.), permanece em vigor (há que discutir a validade), o artigo 82, § 2º., do CPPM, o qual dispõe que: Nos crimes dolosos contra a vida, praticados contra civil, a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à justiça comum". Este último dispositivo, desde que não se o considere inconstitucional frente ao disposto no artigo 125, § 4º., CF, atribuiria à Polícia Judiciária Militar a condução das investigações, mesmo em caso de crimes dolosos contra a vida de civil, supostamente perpetrados por Policiais Militares. Somente depois de concluída a fase investigatória e remetido o feito à Justiça Militar, esta o enviaria à Justiça Comum. A questão gera controvérsia e isso poderia ter sido solvido pelo legislador, a nosso ver, estabelecendo claramente a atribuição da Polícia Civil para essas apurações, ou então, o que nos parece incoerente com a intenção da norma constitucional, atribuindo de maneira clara a atribuição à Polícia Judiciária Militar e afastando expressamente a atuação da Polícia Civil. De qualquer forma, teríamos maior segurança jurídica e sairíamos do atoleiro de interpretações díspares em que nos encontramos. Obviamente, quanto aos crimes dolosos contra a vida perpetrados por militares das Forças Armadas, a atribuição somente pode ser da Polícia Judiciária Militar respectiva, pois que atualmente passam a ser também da competência da Justiça Militar Federal.
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1 A redação é a seguinte: Art. 9º., § 2º. Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares das Forças Armadas contra civil, serão da competência da Justiça Militar da União, se praticados no contexto: I- do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa; II – de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante; ou III – de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas conforme o disposto no art. 142 da Constituição Federal e na forma dos seguintes diplomas legais (...).
2 Cf. LOBÃO, Célio. Direito Processual Penal Militar. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 449.
3 Essa tese de pretender que o "júri" previsto na CF e agora no artigo 9º., § 1º., CPM, seja um "Tribunal do Júri Militar", é defendida de forma esdrúxula por Campanini em artigo jurídico, jamais tendo sido acatada desde a Emenda 45/04. Cf. CAMPANINI, João Carlos. A criação do Tribunal do Júri na Justiça Militar. Disponível em
Banca especializada em Direito Militar e Segurança Pública , acesso em 16.10.2017.
4 ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. Tribunal do Júri na Justiça Militar – Impossibilidade Jurídica. Disponível em Tribunal do Júri na Justiça Militar - Impossibilidade Jurídica , acesso em 16.10.2017.
5 Artigo 9º., II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados"...
6 BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. 11ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 311.
7 MIR, Luís. Guerra Civil. São Paulo: Geração Editorial, 2004, p. 417.
8 LOUREIRO NETO, José da Silva. Direito Penal Militar. 5ª. ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 23.
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*Eduardo Luiz Santos Cabette é Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.