Migalhas de Peso

A celeuma do julgamento parcial do mérito

O julgamento parcial do mérito tem sido alvo de muitas críticas. Ainda assim, esta aposta do legislador merece crédito, pois tem o condão de tornar o processo mais célere.

20/10/2017

Determina o art. 356 do NCPC, ''O juiz decidirá parcialmente o mérito quando um ou mais dos pedidos formulados ou parcela deles: I - mostrar-se incontroverso; II - estiver em condições de imediato julgamento, nos termos do art. 355.'' São, portanto, duas as hipóteses a ensejar o julgamento parcial do mérito.

Na primeira delas, a questão será incontroversa quando seu conteúdo não for objeto de discussão entre as partes. A incontrovérsia é consequência do não desempenho pela defesa do seu ônus de impugnação específica das alegações fáticas do autor (art. 341 do NCPC), da transação parcial, do reconhecimento do pedido parcial, da admissão em audiência de alegações de fato incontroversas e, em geral, da existência no processo de alegações de fato que não dependam de prova (art. 374 NCPC).1

Se a incontrovérsia fática for suficiente para caracterizar a incontrovérsia do pedido ou de parcela do pedido, autorizado está o imediato julgamento de parcela do pedido ou de um dos pedidos cumulados em caso de cumulação simples. É dizer, cabe o julgamento parcial do mérito.

Todavia, essa interpretação do inciso I do art. 356 do NCPC, que a princípio parece óbvia, é questionada por Wanderley José Federighi. Com perspicácia, indaga o autor: o que é exatamente incontroverso hoje? Em seu entendimento, nada é incontroverso nos dias atuais. Tudo é questionável, tudo é discutível, tudo é recorrível. Defende que a jurisprudência das Cortes sofre com marchas e contramarchas, muitas vezes em razão das interpretações feitas pelos Tribunais superiores, que alteram toda a sistemática adotada pelos tribunais locais.2

Tem-se a segunda hipótese autorizadora do julgamento parcial do mérito nas situações em que um ou mais dos pedidos formulados ou parcela deles estiver em condições de imediato julgamento, nos termos do art. 355 NCPC. Cumpre dizer que a condição para aplicação do art. 355 é estar o processo bem instruído, ou seja, não se cogita insuficiência probatória.

Cumpre esclarecer, a decisão que julga parcela do mérito não é sentença, mas sim decisão interlocutória e, por conseguinte, impugnável mediante agravo de instrumento (art. 356, § 5º). Em caso de interposição de apelação, o recurso não será conhecido ante a ausência de requisito de admissibilidade, qual seja, adequação da via eleita (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Apelação nº 0420676-08.2014.8.19.0001, Relatora: Maria da Glória Oliveira Bandeira de Mello, data do julgamento: 13 de setembro de 2017).

Ademais, a liquidação e o cumprimento da decisão que julgar parcialmente o mérito poderão ser processados em autos suplementares, a requerimento da parte ou a critério do juiz. Dessa maneira, demarca-se com maior nitidez aquilo que pertence à fase de conhecimento e aquilo que já superou essa etapa.

Por sua vez, Wanderley José Federighi põe em dúvida a intenção do legislador de proporcionar uma rápida execução da decisão. Salienta que, por se tratar de decisão não terminativa do feito e, desta feita, sujeita a agravo de instrumento, caberá, em tese, efeito suspensivo da decisão não terminativa, a critério do relator, retardando a entrega da parcial tutela jurisdicional pretendida pela parte.3

Deveras, Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero lembram que o direito de ação tem que promover a tutela jurisdicional tempestiva, consumindo só o tempo estritamente necessário ao conhecimento da demanda e execução do julgado. Sustentam que se estiverem presentes as hipóteses autorizadoras do julgamento parcial do mérito, seria uma má gestão do tempo do processo deixar de decidir parte incontroversa da demanda ou um dos seus pedidos que se afigure incontroverso tão somente para decidir o litígio como um todo ao mesmo tempo. Uma vez que a parte tem direito à tutela tempestiva, constitui violação a esse direito fazê-la esperar o desfecho de seu pedido – ou de parcela dele – para além do tempo necessário à maturação do julgamento.4

Outro é o entendimento de Wanderley José Federighi. Diz que o julgamento de parte da demanda em nada contribui para a rápida solução da mesma. Vislumbra que o dispositivo que o prescreve trará muito mais problemas do que soluções. Primeiro, porque aduz que o juiz ''decidirá'' parcialmente o mérito. É dizer, é imposta uma obrigação ao juiz, ao invés de mera alternativa. Além disso, ao pretender a celeridade processual, o legislador errou o alvo. Esqueceu-se de que atualmente tudo é recorrível e, não raro, recorre-se mesmo sem qualquer razão.5

Os tribunais, ao seu turno, vêm se posicionando favoravelmente ao julgamento parcial do mérito, aplicando o, notadamente, nos casos de afetação de teses pelos Tribunais Superiores em recursos repetitivos ou de repercussão geral, bem assim no incidente de resolução de demandas repetitivas pela Justiça Estadual. É dizer, o julgamento parcial do mérito ocorrerá se dentre as matérias devolvidas ao Tribunal houver questão estranha aos recursos repetitivos a merecer apreciação com fulcro no art. 356 do novo Código (Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação nº 3000786-55.2013.8.26.0416, da Comarca de Panorama, Relator: Silveira Paulilo, data do julgamento: 24 de julho de 2017; Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação nº 1000828-67.2015.8.26.0320, da Comarca de Limeira, Relator: Silveira Paulilo, data do julgamento: 7 de agosto de 2017; Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Apelação nº 0032942-28.2015.8.19.0205, da Comarca de Campo Grande, Relatora: Natacha Nascimento Gomes Tostes Gonçalves de Oliveira, data do julgamento: 16 de fevereiro de 2017).

Por certo, o dispositivo que prevê o julgamento parcial do mérito trará problemas aos operadores do direito, à doutrina e à jurisprudência. Ainda assim, acreditamos nesta aposta do legislador. Pois bem, se a parte possui direito exercível de plano, incontroverso ou em condições de imediato julgamento, não faz sentido fazê-la esperar e retardar a entrega de parcela do seu pedido ou de um dos pedidos cumulados, impondo-lhe maior sofrimento e desgaste, com o único pretexto de se aguardar o momento apropriado para julgamento de todo o pedido ou de todos os pedidos cumulados.

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1 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel, O Novo Processo Civil, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2015, p. 258.

2 FEDERIGHI, Wanderley José, Notas sobre o Projeto do Novo CPC: solução ou mais problemas?, Cadernos Jurídicos, ano 16, nº 41, São Paulo, Julho-Setembro de 2015, p. 144.

3 FEDERIGHI, Wanderley José, Notas sobre o Projeto do Novo CPC: solução ou mais problemas?, Cadernos Jurídicos, ano 16, nº 41, São Paulo, Julho-Setembro de 2015, p. 144.

4 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel, O Novo Processo Civil, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2015, p. 258.

5 FEDERIGHI, Wanderley José, Notas sobre o Projeto do Novo CPC: solução ou mais problemas?, Cadernos Jurídicos, ano 16, nº 41, São Paulo, Julho-Setembro de 2015, p. 144.

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*Reinaldo Marques da Silva é doutorando em Direito e Ciências Sociais, mestrando em Direito Comparado, especialista em Direito Tributário.

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