Deslocamento de trabalhadores em empresas gigantes
Mário Gonçalves Júnior*
Isto porque nos tempos em que o Estado não intervinha na regulamentação do trabalho, ficava ao encargo dos interlocutores sociais, com base na liberdade de manifestação da vontade, estabelecer quanto se trabalharia (jornada) e por qual preço (salário). Entregues à própria vontade, a do poder econômico (patrão) sobrepujava a do mais fraco (trabalhador), diante do impacto de necessidades desproporcionais; afinal sempre houve bem menos patrões do que empregados, resultado do caráter milenar da concentração de renda. “Quem pode, manda; que (só) tem juízo, obedece”, eis um ditado popular de aplicação universal.
Para reequilibrar forças tão desproporcionadas é que surgiu a intervenção do Estado nas relações entre capital e trabalho, objetivando frear explorações desmedidas.
Por jornada de trabalho, entre nós, entendeu-se o tempo em que o empregado estiver efetivamente trabalhando ou simplesmente à disposição do patrão, aguardando ordens (artigo 4o. da CLT), cabendo ao empresário comandar os fatores produtivos, responsável que é pelos riscos econômicos do seu empreendimento (artigo 2o. da CLT).
Por razões das mais variadas e imponderáveis, todavia, empresas se instalaram em localidades de difícil acesso, ou seja, longe dos grandes centros urbanos, em prejuízo do acesso dos trabalhadores em razão da inexistência ou insuficiência de transporte público regular no trajeto residência/trabalho. Muito tempo, várias conduções seriam necessárias para que o trabalhador conseguisse chegar ao local de trabalho, se conseguisse.
A superação dessa dificuldade exigiu das empresas que fornecessem transporte aos seus trabalhadores. Era isto, ou não ter a mão de obra indispensável ao empreendimento. Mesmo assim, por se situarem as empresas em locais relativamente distantes, demorava fazer chegar os trabalhadores, consumindo horas de trajeto que se somavam ao desgaste físico do tempo efetivo de trabalho.
Alguém explorou convenientemente aquele conceito previsto no artigo 4o. da CLT (“Considera-se como de serviço efetivo o período em que o empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens, salvo disposição especial expressamente consignada”) e passou a sustentar que o tempo despendido no trajeto residência/trabalho, situando-se a empresa em local de difícil acesso não servido por transporte público regular, “coberto” por outros meios custeados pelo empregador, agregar-se-ia à jornada uma vez que também estaria o trabalhador “à disposição” do patrão. Tal entendimento foi acatado pela jurisprudência uniforme do Tribunal Superior do Trabalho através do Enunciado 90 (“O tempo despendido pelo empregado, em condução fornecida pelo empregador, até o local do trabalho de difícil acesso, ou não servido por transporte regular público, e para o seu retorno, é computável na jornada de trabalho”).
Uma “mina de ouro”: sendo estipulada a jornada de efetivo trabalho no máximo permitido em lei, todo o tempo de percurso, por essa corrente, seria necessariamente extraordinário, traduzindo-se não apenas em salário como em adicional de horas extras!
Uma singela indagação, entretanto, não foi, ao menos para nós, respondida ate hoje: ninguém é obrigado a aceitar proposta de emprego se não lhe convier. Assim, quando aceita trabalhar numa empresa distante de sua residência, já não terá implicitamente levado em consideração o tempo de percurso até o local de trabalho?
Com efeito, é preciso reconhecer que há empresas gigantes, cuja propriedade se compara, guardadas as devidas proporções, a alguns pequenos municípios. São quilômetros de extensão, inúmeros galpões distantes uns dos outros e da portaria, havendo até mesmo ônibus “circulares” para que o trabalhador possa chegar até o seu efetivo local de trabalho.
Não só o tempo consumido entre a portaria e o local de trabalho, como deste até o refeitório da empresa, já tem sido também somado à jornada do trabalhador por decisões de alguns Tribunais Regionais, como por exemplo o de Campinas (proc. TRT 32064/2000-ROS-0), baseadas em orientação jurisprudencial (de n. 98) do Tribunal Superior do Trabalho sedimentada com base nos casos de uma determinada empresa gigante (Açominas).
Há Turmas de certos Tribunais Regionais que resistem a aderir a essa corrente, no que diz respeito ao tempo entre o local de trabalho e o refeitório, como por exemplo a 2a. e a 3a. Turmas do Tribunal Regional de Santa Catarina (proc. TRT/SC/RO-V 746/2001, TRT/SC/RO-V-A 3173/2001, TRT/SC/RO-V 8854/2000 e TRT/SC/RO-V 745/2001). Numa dessas decisões, a motivação é bastante convidativa: “o fato do autor se utilizar de parte do tempo destinado ao intervalo para descanso e alimentação para se deslocar até o local do refeitório, ou aguardar na fila para comer não justifica a condenação ao pagamento de horas extras, uma vez que todo e qualquer trabalhador, de uma forma ou de outra, se desloca do local de seu trabalho até sua residência, restaurante ou lanchonete para se alimentar, e nem por isto se cogita que em tal tempo esteja o obreiro à disposição do empregador. Por outro lado, importante destacar que o obreiro paralisava seu labor por uma hora, tempo que era destinado ao descanso e alimentação e, se estava dentro do ônibus indo ou voltando do refeitório, em filas para se alimentar, se alimentando ou descansado, certo é que não estava trabalhando” (acórdão 11646/01 – 2a. Turma).
Caberá ao Tribunal Superior do Trabalho, portanto, dar a palavra final sobre mais esta polêmica: o tempo de deslocamento entre o local de trabalho e o refeitório também se agrega à jornada para efeito de horas extras? Com a palavra, os Meritíssimos.
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* Advogado do escritório Demarest e Almeida Advogados
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