Migalhas de Peso

Vem aí novo crime contra a liberdade sexual

O Direito Penal precisa atingir os anseios da sociedade e, como tal, deve se adaptar aos fatos que causam repulsa não só às vítimas, mas a toda coletividade.

15/10/2017

Virtus in medio, assim preconizava Aristóteles, ponderando que os extremos são perigosos e o mediano é sempre o sensor ideal para se estabelecer o equilíbrio entre dois pontos. É interessante observar, tanto histórica como culturalmente, que o capítulo do Código Penal referente aos crimes contra a dignidade sexual, assim denominados após a lei 10.015/2009, no afã de descrever de forma mais abrangente o tipo penal do crime de estupro, acabou por nele inserir a conduta do atentado violento ao pudor, provocando, em consequência, reiteradas colidências interpretativas, com sérias e péssimas repercussões sociais.

Isto porque o manejo do tipo penal do estupro pende, por um lado, para uma conduta de constrangimento da vítima, mediante violência ou grave ameaça para a conjunção carnal e, de outro, com gravidade reduzida, a praticar ou permitir que com ela se pratique outro ato libidinoso.

É o momento da própria lei fazer a correta distinção das figuras delituosas inseridas no tipo penal em questão. O projeto de lei 5.452/16, de autoria da senadora Vanessa Graziotin (PCdoB-AM), foi aprovado no Senado Federal em maio de 2016 e acrescenta os arts. 218-C e 225-A ao decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para tipificar o crime de divulgação de cena de estupro e prever causa de aumento de pena para o crime de estupro cometido por duas ou mais pessoas.

Seguindo o trâmite constitucionalmente previsto, este projeto seguiu para a Câmara dos Deputados, oportunidade em que o Deputado Fábio Ramalho (PMDB/MG) apresentou uma proposta de alteração, nos seguintes termos, in verbis:

"(...)

Além dessas propostas de alteração legislativa, que já constavam da proposição principal, incluímos no substitutivo as seguintes modificações, com a finalidade de aprimorar a legislação sobre a temática:

a) Inserção, no Código penal, do crime específico de incitação ou apologia ao estupro, dada a necessidade de tutela penal sobre a ofensa à liberdade sexual em forma de incitação, indução ou instigação, perpetradas em âmbito público ou privado, em regra envolvendo ideologias de gênero ou de orientação sexual;

b) Previsão de causa de diminuição de pena nos casos em que a conduta não implica graves danos (físicos ou psicológicos), não raros de ocorrer. Isso porque, com frequência, muitas agressões, destinadas à satisfação da lascívia e consistentes em atos libidinosos diversos da conjunção carnal, são, realmente, fugazes e praticadas sem grave violência ou ameaça, em circunstâncias que não geram profundas consequências negativas;

c) Previsão de novas causas de aumento de pena: aos arts. 213, caput e § 1º, 215, 216-A, 217-A, 218, 218-A e 218-B são acrescidas causas de aumento da reprimenda (se os respectivos delitos são praticados durante a noite, em lugar ermo, com emprego de arma, em veículo de transporte público, se houver gravação e compartilhamento de imagens, etc.), tendo em vista a maior reprovabilidade da conduta praticada nessas circunstâncias;

d) Alteração do art. 234-A do Código Penal, para, incluir nesse dispositivo, causas de aumento de pena em relação a todos os delitos contidos no Título VI do referido estatuto (dos crimes contra a dignidade sexual), inclusive ampliando as hipóteses hoje previstas no art. 226, inc. II., para abarcar maior número de hipóteses de vínculo entre vítima e agressor que ensejam a majoração da reprimenda penal;

e) Inclusão do estupro coletivo no rol dos crimes hediondos, dada a gravidade/reprovabilidade desse delito;

f) Alteração da regra referente ao segredo de justiça dos processos em que se apuram crimes contra a dignidade sexual, pois a redação vigente do art. 234-B do Código Penal gera a ocultação, em regra, da identidade do réu, o que acaba por trazer-lhe um benefício, criando um privilégio inexistente aos acusados por crimes em geral, somente admissível se o objetivo for proteger a identidade da vítima, verdadeira destinatária da norma de exceção à regra da publicidade dos atos processuais; e

g) Previsão de causa de diminuição de pena para o crime de estupro de vulnerável nas hipóteses em que a conduta consistir em ato libidinoso diverso de conjunção carnal e de menor gravidade" (grifo nosso).

Percebe-se, assim, que nosso legislador identificou que as condutas tipificadas nos artigos 213 e seguintes, do Código Penal, não tutelam, com a eficiência exigida, o bem jurídico que deveriam proteger: a dignidade sexual da vítima.

Nesse passo, não se pode perder de vista o que nossa doutrina entende por Garantismo Positivo, que se traduz na proibição da proteção insuficiente (ou deficiente) do bem jurídico (O garantismo positivo nada mais é do que uma faceta do princípio da proporcionalidade )1.

Com efeito, existem condutas que, dada sua notória gravidade, devem ser especialmente tuteladas pelo legislador, a fim de melhor individualizar a prática criminosa e, assim, fazer com que o operador do Direito possa realizar o juízo de subsunção do fato à norma de maneira mais eficiente (implementar a adequação típica com a máxima eficiência).

Por outro lado, há condutas que não se revelam de grande gravidade e, sendo assim, não podem receber um tratamento excessivo do Direito Penal.

E, como foi amplamente divulgado pela imprensa, existem condutas que, justamente pela delicada situação em que a vítima é exposta, não se amoldam, com a exatidão que é pelo Direito Penal reclamada, na norma incriminadora.

É claro que não se pretende discutir as condutas dos operadores do direito envolvidos nos detalhes dos casos concretos, que somente podem ser avaliados por quem possui o contato direto com os autos.

De todo modo, parece ser notório que existe, sim, um vácuo legislativo entre condutas tidas como menos graves (como um beijo lascivo, por exemplo) e as mais abjetas (como o estupro individual e o coletivo – este, hoje, sequer possui previsão legal, aplicando-se ao caso as regras do concurso de pessoas). No mesmo diapasão, a conduta amplamente debatida por todos, consistente no ato do agente ejacular na vítima, no interior de um transporte público, por mais repugnante que possa se revelar, parece não se encaixar ao tipo penal de estupro.

Isso porque, como se verifica no disposto do artigo 213 do Código Penal, para que seja configurado o crime de estupro, é necessário o agente constranger a vítima, mediante violência ou grave ameaça, à prática do estupro ou de qualquer outro ato libidinoso.

Ainda que a masturbação seja, claramente, um ato libidinoso, parece claro que, na grande maioria dos casos concretos, o agente não emprega violência ou grave ameaça à vítima; ao contrário, a conduta é praticada às escondidas.

E, como é sabido, não há como equiparar uma conduta (por mais repugnante que seja) à grave ameaça ou violência sem que estas não estejam presentes no caso concreto, sob pena de analogia in malam partem, notoriamente vedada pelo nosso ordenamento.

Então, surge a repulsa social diante do aparente abrandamento da punição do agente, que tem sua conduta enquadrada (juízo de subsunção) em uma norma extremamente branda, quando comparada à exposição e às consequências sofridas pela vítima.

Justamente por esta razão é que parece acertada a posição de nosso legislador. Sem adentrar nas demais propostas, dado o objeto do presente estudo, merecem destaques os itens "b" e "g", da referida alteração legislativa sub studio.

Isso porque, a priori, denota a preocupação do legislador em preencher esta diferença abissal entre os comandos penais, a fim de que seja tipificada uma conduta intermediária (nem tão branda quanto uma mera contravenção penal, nem tão grave quanto o coito vaginal ou anal forçados).

Em outras palavras, poder-se-ia cogitar que nosso legislador estaria trazendo de volta o crime de atentado violento ao pudor?

O antigo artigo 214 previa este crime quando o agente praticava qualquer conduta sexual diversa da conjunção carnal com a vítima (homem ou mulher) e possuía pena menor que a do estupro.

Mas, em razão de uma alteração legislativa em 2009, o tipo penal do artigo 213 (estupro) operou a fusão entre os crimes de estupro e de atentado violento ao pudor, prevendo, em um único tipo penal, ambas as condutas, conforme já salientado.

Deste modo, tecnicamente, não haveria falar no ressurgimento do atentado violento ao pudor (pois sua conduta, hoje, está expressa no artigo 213 do Código Penal), muito embora, na prática, caso o projeto em estudo seja aprovado em sua totalidade, possa se entender como um meio termo, muito semelhante ao revogado artigo 214 do Código Penal, mas que preveja uma gravidade menor da conduta do agente.

Deste modo, ao agente poderia ser aplicada uma sanção penalmente válida, especialmente sob o prisma da repressão e do princípio da proporcionalidade, em seus dois vieses: o garantismo positivo e o negativo.

Mas também não se olvida que, como não poderia deixar de ser, o Direito Penal vive dos fatos que a ele são apresentados e, portanto, está sujeito a enfrentar situações limítrofes entre um dispositivo legal e outro, sobretudo diante da gravidade da conduta e da exposição social, que, muito embora não possa servir de fundamentação válida, provoca grande turbulência na sociedade.

O Direito Penal precisa atingir os anseios da sociedade e, como tal, deve se adaptar aos fatos que causam repulsa não só às vítimas, mas a toda coletividade. Portanto, não seria exagero prever uma conduta que se posicione entre os extremos de uma conduta sexual, a fim de melhor ajustar a repressão penal necessária e que tanto é almejada pela sociedade brasileira.

__________

1 O outro lado do princípio da proporcionalidade é o Garantismo Negativo, que deve ser visto como a proibição do excesso (vedação da punição excessivamente rigorosa).

__________

*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.



 





*Antonelli Antonio Moreira Secanho
é assistente jurídico no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, bacharel em Direito pela PUC/Campinas e pós-graduação "lato sensu" em Direito Penal e Processual Penal pela PUC/SP.



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