Migalhas de Peso

Henryk Sienkiewicz: Quo Vadis?, e a epifania na vida dos que redigem e dos que assinam um contrato

Contrato bem feito é pensado para o presente e para o futuro; caso contrário, choraremos entre parênteses, perder-nos-emos entre aspas, pagaremos com reticências (...)

10/10/2017

Dia desses recebi, de uma imobiliária, em São Paulo, Capital, um contrato de locação que parecia ser uma adaptação fantasmagórica da anterior Lei do Inquilinato, com resíduos do Código de Processo Civil de 1973 e escrito em algum idioma próximo à língua hoje falada no Brasil. A ressalva, ao final do texto, e antes que se elegesse foro: para os casos não previstos neste contrato aplica-se a Lei do Inquilinato ou o Código Civil (...).

Bateu-me uma vontade sanhuda de chorar entre parênteses, perder-me entre aspas, pagar com reticências, sofrer entre colchetes, gritar no claustro, sepultar-me vivo...

Não fosse a lei 8245/91 referta de saudáveis standards que não podem ser postergados, e o contrato teria que ser completamente reescrito, por várias razões. De qualquer forma, conferi o objeto, o valor, o índice de correção, o prazo e dei-me por vencido: não havia muito o que fazer, mas apenas um adro 'refazer', que o momento não comportava.

Pior que isso acontece quando a lei não faz mais que oferecer orientações gerais sobre um tema. Quem ainda não se arrependeu amargamente de haver assinado um contrato e, algum tempo depois, vê-lo entregue a algum Juiz para discussão de cláusulas? É a sina de quem pactue mal. Dificilmente haverá boas demandas se se partir de contratos ruins.

É natural pensar que o melhor contrato já preveja um eventual futuro litígio, embora não o deseje. Por isso, cada cláusula deve ser muito bem pensada, cada conjunto de determinações deve ter a lei por espeque e, em especial, o Código de Processo Civil por alvo.

Pensar em arbitragem e escolher desde logo o tribunal (os preços variam muito)... Isso tudo é como ter air bags no carro: ninguém quer que eles sejam acionados; contudo, é melhor que os haja! Quem escreva e quem assine contratos deve pensá-los vivos daqui a alguns anos e, ainda, que sobreviverão após sua morte oficial (ex: cláusulas de sigilo por tantos anos, reflexos pós-contratuais multifários, como pagamentos de tributos devidos à época do negócio, etc).

Garatujar um contrato sem pensar em suas consequências é algo como imaginar que Narciso vá apenas debruçar-se no espelho lacustre sem querer tocá-lo! O resultado pode ser catastrófico1.

Se houver a possibilidade de resilição, seja pré-avençada ou então porque o contrato já vige por prazo indeterminado, vá lá; caso contrário, quem denuncie o pacto sem motivo fará como Pedro, o Apóstolo, que, no belíssimo romance – Quo Vadis?, ao ver Jesus aproximar-se de Roma, em meio à perseguição aos cristãos, argúi:

"Quo vadis, Domine?" (...)

"If thou desert my people, I am going to Rome to be crucified a second time." 2.

Vamos dizer que Pedro denunciara, unilateralmente, seu 'contrato' com Cristo, ao ver Roma arder em tochas humanas, mas Ele fê-lo rever sua resilição unilateral com um argumento obtundente: o contrato entre Cefas e O Unigênito não estava adimplido, pelo que as perdas e danos poderiam ser imparagonáveis. Sinalagma imperfeito, ainda, impossibilidade de abandonar suas obrigações pactuais assim, de súpito. Mutatis mutandis, temos aqui, por parte de Pedro, má alegação de exceptio non adimpleti contractus, pois o sinalagma vinha de cima - tinha origem Divina; logo, insuplantável3.

Sem querer comparar a metafórica situação descrita por Sienkiewicz com o Código Civil e o Código de Processo Civil atuais, a essência dos contratos sinalagmáticos é, invariavelmente, a mesma:

Código Civil.

"Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais (...)

Art. 391. Pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor.

Art. 394. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer.

Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.

Parágrafo único. Se a prestação, devido à mora, se tornar inútil ao credor, este poderá enjeitá-la, e exigir a satisfação das perdas e danos."

Neste parágrafo único do art. 395 do CC encontra-se o simbólico "momento" em que mora se transforma em inadimplemento absoluto: aquele átimo em que a prestação se torna inútil para o credor, permitindo-lhe enjeitá-la. Pudéramos voltar para Sienkiewicz, e diríamos que se Pedro (em mora) não houvesse voltado para Roma (já que Jesus disse algo como 'voltarei eu mesmo'), sua prestação teria perdido a utilidade.

Jesus precisou interpelar Pedro4, mas

"Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor5."

E como se purga a mora?

"Art. 401. Purga-se a mora:

I - por parte do devedor, oferecendo este a prestação mais a importância dos prejuízos decorrentes do dia da oferta;

II - por parte do credor, oferecendo-se este a receber o pagamento e sujeitando-se aos efeitos da mora até a mesma data."

Ainda no Código Civil, as ‘perdas e danos’:

"Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.

Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual.

Art. 404. As perdas e danos, nas obrigações de pagamento em dinheiro, serão pagas com atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, abrangendo juros, custas e honorários de advogado, sem prejuízo da pena convencional.

Parágrafo único. Provado que os juros da mora não cobrem o prejuízo, e não havendo pena convencional, pode o juiz conceder ao credor indenização suplementar.

Art. 405. Contam-se os juros de mora desde a citação inicial."

Sobre a pena convencional, não se perca de vista que (art. 412) o valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal e que (art. 413) a penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio.

Um pouco de Código de Processo Civil, para o caso de o descumprimento obrigacional ser submetido ao Judiciário:

"Art. 240. A citação válida, ainda quando ordenada por juízo incompetente, induz litispendência, torna litigiosa a coisa e constitui em mora o devedor, ressalvado o disposto nos arts. 397 e 398 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).

§ 1º A interrupção da prescrição, operada pelo despacho que ordena a citação, ainda que proferido por juízo incompetente, retroagirá à data de propositura da ação.

§ 2º Incumbe ao autor adotar, no prazo de 10 (dez) dias, as providências necessárias para viabilizar a citação, sob pena de não se aplicar o disposto no § 1o.

§ 3º A parte não será prejudicada pela demora imputável exclusivamente ao serviço judiciário.

§ 4º O efeito retroativo a que se refere o § 1o aplica-se à decadência e aos demais prazos extintivos previstos em lei."

Se em Sienkiewicz Pedro foi interpelado na estrada, e se nos Atos dos Apóstolos Paulo também, a caminho de Damasco, e se Cleophas (e talvez sua esposa) foram alcançados em seu itinerário, enquanto caminhavam,

"Art. 243. A citação poderá ser feita em qualquer lugar em que se encontre o réu, o executado ou o interessado."

Uma vez posta em Juízo a demanda, pode haver pedido de tutelas emergenciais a qualquer momento, obedecidos os requisitos legais.

Vamos supor que o processo tramite pelo rito comum: haverá uma contestação (arts. 335 e ss do Codex); eventualmente, uma réplica; se for o caso, o réu reconvirá (arts. 343 e ss); nas hipóteses da lei, pode haver agravo, se alguma decisão judicial estiver afeta aos arts. 1015 e ss do CPC (será que eles esgotam as hipóteses de agravo de instrumento ou voltaremos ao velho sistema do mandado de segurança ou sucedâneo, para acolhimento de pedido contra decisão interlocutória que reclame análise imediata? O tempo dirá).

E por falar em tempo, não vou resumir aqui o rito ordinário e suas questões cerne e orbitais; porém, só o Livro II, "Do Processo de Execução", conta com mais de 150 artigos (se não computarmos os títulos extrajudiciais), e não é possível deixar de levar em conta que em vários momentos caberão recursos que aumentarão o trajeto do processo, muitas vezes levando-o a caminhar quase a esmo, por décadas. Oxalá não faleça alguma das partes, pois a habilitação dos herdeiros é outra história das Mil e Uma Noites (ou bem mais que isso?).

Ousar determinados contratos sem conhecer bem a lei que o rege ou as leis que o regem é entrar num dédalo sem o fio de Ariadne, para eventualmente dar-se com o Minotauro sem ao menos uma espada erguida. Do Livro de Genesis ao de Apocalypsis pode haver uma distância cronológica muito grande, mas uma coisa é certa: quem conhecer bem o Antigo e o Novo Testamento, o Evangelho de João, sua vida, os dias na Ilha de Patmos, quando chegar à chamada Revelação, há-de entendê-la com mais profundidade do que os que abrirem a Bíblia pela primeira vez e forem logo a seu último escrito.

Por isso a necessidade (i) da advocacia consultiva, (ii) do cuidado com a elaboração do contrato, (iii) da previsão de arbitragem, se cabível e se os valores não forem impeditivos, e de outras cautelas que evitem a ida às barras dos tribunais pátrios, pois, apesar do inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição Federal e de todos os artigos do CPC que falam em celeridade processual, a realidade não conseguiu, ainda, adaptar-se à norma posta.

Contrato bem feito é pensado para o presente e para o futuro; caso contrário, choraremos entre parênteses, perder-nos-emos entre aspas, pagaremos com reticências (...) e quisera não nos fosse necessário, após arguir um – Quo vadis?, ouvir aquela objurgação de Jesus.

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1 "(...) He fell in love with himself. He brought his lips near to take a kiss; he plunged his arms in to embrace the beloved object. It fled at the touch, but returned again after a moment and renewed the fascination. He could not tear himself away; he lost all thought of food or rest, while he hovered over the brink of the fountain gazing upon his own image. He talked with the supposed spirit: "Why, beautiful being, do you shun me? Surely my face is not one to repel you. The nymphs love me, and you yourself look not indifferent upon me. When I stretch forth my arms you do the same; and you smile upon me and answer my beckonings with the like." His tears fell into the water and disturbed the image. As he saw it depart, he exclaimed, "Stay, I entreat you! Let me at least gaze upon you, if I may not touch you." With this, and much more of the same kind, he cherished the flame that consumed him, so that by degrees he lost his color, his vigor, and the beauty which formerly had so charmed the nymph Echo. She kept near him, however, and when he exclaimed, "Alas! alas!" she answered him with the same words. He pined away and died; and when his shade passed the Stygian river, it leaned over the boat to catch a look of itself in the waters. The nymphs mourned for him, especially the water-nymphs; and when they smote their breasts Echo smote hers also. They prepared a funeral pile and would have burned the body, but it was nowhere to be found; but in its place a flower, purple within, and surrounded with white leaves, which bears the name and preserves the memory of Narcissus." Thomas Bulfinch, in

Bulfinch's Mythology by Thomas Bulfinch

2 QUO VADIS A NARRATIVE OF THE TIME OF NERO - Tradução do Polonês para o Inglês feita por Jeremiah Curtin.

3 Jesus era Mestre, mas ainda mestre em interpelar e notificar seus ‘contratados’ nas estradas, como fez com Paulo, a caminho de Damasco:

A.A. 9:

"3 Et cum iter faceret, contigit ut appropinquaret Damasco; et subito circumfulsit eum lux de caelo,

4 et cadens in terram audivit vocem dicentem sibi: " Saul, Saul, quid me persequeris?".

5 Qui dixit: " Quis es, Domine? ". Et ille: " Ego sum Iesus, quem tu persequeris!"

Ou então com os discípulos, na Estrada de Emaús: Lc. 24:

15 Et factum est, dum fabularentur et secum quaererent, et ipse Iesus appropinquans ibat cum illis;

16 oculi autem illorum tenebantur, ne eum agnoscerent. 17 Et ait ad illos: " Qui sunt hi sermones, quos confertis ad invicem ambulantes?". Et steterunt tristes. 18 Et respondens unus, cui nomen Cleophas, dixit ei: "Tu solus peregrinus es in Ierusalem et non cognovisti, quae facta sunt in illa his diebus?". (...) 28 Et appropinquaverunt castello, quo ibant, et ipse se finxit longius ire. 29 Et coegerunt illum dicentes: " Mane nobiscum, quoniam advesperascit, et inclinata est iam dies ". Et intravit, ut maneret cum illis.

30 Et factum est, dum recumberet cum illis, accepit panem et benedixit ac fregit et porrigebat illis.

31 Et aperti sunt oculi eorum, et cognoverunt eum; et ipse evanuit ab eis.

4 Parágrafo único. Não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial.

5 Este o conhecido dies interpelat pro homine.

_______________

*Renato Maluf é advogado do escritório

Amaral Gurgel Advogados.

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