Meléagro era filho de Eneus e Altéia, estes o Rei e a Rainha de Cálidon1, da Mitologia Grega.
Quando ele nasceu, as Parcas (Clotho, Athropos e Láquesis) apareceram para a mãe do menino e informaram a ela que a vida de nosso herói duraria enquanto uma acha de lenha, no fogão do Palácio Real, não fosse consumida pelo fogo.
Clotho, Athropos e Láquesis eram responsáveis por tecer, enovelar/desenovelar e dobar o fio da vida, pelo que seu aviso correspondia à realidade.
Altéia, preocupadíssima com o possível decesso de seu filho em poucas horas, tirou a madeira crepitante do fogo, apagou as chamas, resfriou a lenha e pô-la em lugar seguro, para que não queimasse de forma alguma. Assim, Meléagro pôde crescer normalmente e seus feitos são relatados na obra de Thomas Bulfinch e em outras.
Eneus, por motivos que desconheço, deixou de prestar suas reverências e favores à deusa Diana, que se enfureceu e quis mostrar isso: enviou um enorme javali para devastar os campos de Cálidon.
Os danos eram de monta, mas Meléagro reuniu um grupo de heróis, conhecidos seus (e nossos), para matarem o monstro; entre eles, estava uma mulher: Atalanta. E o pecado de Meléagro foi haver-se apaixonado por ela.
Quando o javali foi morto, pelo esforço comum, o fato de Meléagro haver sido quem desferiu os golpes fatais no terrível animal levou-o a crer que pudesse ficar com a pele e a cabeça do monstro, e mais: entregá-lo a Atalanta. Isso descontentou seus tios maternos, Pléxipo e Toxeu, que, sem tir-te nem guar-te, "assaltaram" a moça, subtraindo-lhe o galardão.
Meléagro, ao ver tal cena, tomado dum ímpeto de fúria, desembainhou sua espada e, fincando-a no coração dos irmãos da mãe (que lhe poupara a vida), matou-os.
Quando a notícia chegou a Altéia, esta sentiu, talvez, a maior dor de sua existência; tentou, e não pôde conter sua ira. Em sua mente, seu filho só pôde chegar a ser o que era graças a ela; porém, ele matara seus dois irmãos queridos. Ela não fincaria uma espada no peito do filho, mas deixaria que o fado2 se cumprisse: devolveu a acha de lenha, tão bem guardada, ao fogo, e este simplesmente a consumiu: Meléagro "pagou", com seu destino, seu crime.
Esta é uma síntese bastante superficial e despretensiosa (e assim também a tradução) de uma parva parte do mito de Altéia e Meléagro. Isto porque Altéia tinha em mão um instrumento de mandato (!).
Vamos ao Código de Processo Civil, art. 105. Assim como o art. 38 do antigo Codex tinha uma divisão bem clara dos poderes para o Juízo e dos poderes extraordinários, o atual também tem. Basta analisarmos a primeira parte do dispositivo, que diz: "a procuração geral para o foro, outorgada por instrumento público ou particular assinado pela parte, habilita o advogado a praticar todos os atos do processo, (...)"
Se pararmos na palavra processo, eis que encontraremos, ali, os poderes gerais de todo advogado. Os poderes para os atos de tanger o feito. É o que se chama "procuração ad judicia".
Até este momento, servindo-nos do mito acima, o advogado não tem nenhum aviso de Clotho, Áthropos e Láquesis sobre um pedaço de lenha que, uma vez consumido, poderá dar conta da vida de alguém.
Após a preposição "exceto", vêm poderes que implicam pegar a lenha, lanhá-la, arremessá-la ao bel-prazer, ou talvez talhá-la, lixá-la, acepilhá-la e transformá-la em obra de arte. Tudo conforme a confiança que se deposite no advogado e a necessidade idiossincrásica de cada processo.
Tão normal quanto um advogado usar aquelas procurações padronizadas, que são chamadas apenas "ad judicia", mas que já vêm com todos os poderes extraordinários incluídos, é seu cliente assinar o instrumento do mandato sem ler.
A que advogado se dá o poder de receber citação? E o de confessar? E o de reconhecer a procedência do pedido, transigir, desistir, renunciar ao direito sobre que se funda a ação, dar quitação, firmar compromisso, a menos que eles sejam imprescindíveis ao desfecho da demanda?
Firmar declaração de hipossuficiência era poder que não constava expressamente do caput do art. 38 do Código Buzaid, mas há uma série de circunstâncias, com a normatividade hodierna de assistência judiciária gratuita, que justificam o acréscimo, no Código atual; porém, em comparação com os outros poderes extraordinários, este é bem menos grave.
Assim, o que se recomenda a quem vá assinar uma procuração, é que pergunte àquele que constituirá seu mandatário se tal ou qual poder extraordinário é mesmo necessário, e qual não é, pois, se há, felizmente, imensa maioria de advogados honestos, e de boa-fé, infelizmente, como estamos a falar do gênero humano, há também aqueles profissionais que desmerecem a categoria e abusam dos direitos que promanam da procuração que lhes foi outorgada.
Não entregue, a menos que o poder extraordinário seja imprescindível, uma acha incandescente às mãos de uma Altéia enfurecida, pois a vontade das Parcas já havia "transitado em julgado" antes que a lenha houvesse começado a crepitar.
Como dizia meu querido Augusto dos Anjos, "a mão que afaga é a mesma que apedreja". Ou, se não é, pode ser.
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1 Consulto agora versão eletrônica, em Inglês, do livro de Thomas Bulfinch, cujo acesso é gratuito: (Clique aqui) - cap. XVIII.
2 Nenhum fadista com quem eu haja conversado pôde afirmar que o nome Fado talvez tenha sido inspirado pelo título "Parcas", em Grego, que é "Fates".
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*Renato Maluf é advogado do escritório Amaral Gurgel Advogados.