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Um novo ponto de vista sobre o affectio societatis

A verificação da existência do conceito de affectio societatis entre os acionistas e a companhia reforça a natureza da personalidade jurídica e fortalece as possibilidades de ganhos mútuos.

11/8/2017

1. Introdução

O presente artigo tem como objetivo inicial contextualizar a teoria geral do direito societário sob a ótica do affectio societatis e da pessoa jurídica.

Além disso, busca introduzir um novo ponto de referência sobre o conceito de affectio societatis, não mais apenas, por exemplo, como o ânimo de associação entre os sócios de uma sociedade limitada, e sim, também, destes sócios com a própria sociedade limitada, inclusive quando esta relação for contextualizada em razão de atos relacionados à lei 12.846/131, chamada de Lei Anticorrupção.

Por fim, cabe um desafio, o de analisar a aplicabilidade do conceito de affectio societatis entre os acionistas e a sociedade anônima na qual possuem participação.

2. O affectio societatis e a pessoa jurídica

Os conceitos do affectio societatis e da pessoa jurídica a serem abordados neste momento do texto buscam retratar a coexistência necessária de ambos no cenário empresarial, sendo elementos estruturais e inseparáveis do direito societário. A união dos dois conceitos dá origem, por exemplo, ao conceito do interesse societário, que será analisado individualmente no decorrer do presente artigo.

O affectio societatis, com base na etimologia da palavra, representa a possibilidade de se associar e, mesmo com posições doutrinárias sobre a subjetividade do conceito, encontra fundamento expresso na Constituição Federal, no seu artigo 5, inciso XVII2, que versa sobre o direito da livre associação. A consequência dessa livre associação é um cenário de ganhos mútuos, posto que dessa relação criar-se-ão ganhos tanto para os sócios quanto para a própria pessoa jurídica que nasce dessa união.

A pessoa jurídica, nas palavras de Hansmann3, nasceu com o objetivo de ser um centro independente de direitos e deveres, constituída com um patrimônio separado e com o objetivo de prevenir conflitos existentes entre as os sócios e terceiros. Além disso, a criação da pessoa jurídica buscou unir interesses comuns de seus sócios, o que Wiedemann4 denominou de interesse societário, sendo o elemento capaz de fortalecer as relações e delimitar os interesses entre os sócios.

As sociedades, nas palavras de Hauriou5 , são formas institucionais de adesão, pelas quais as partes não declaram suas vontades, mas sim explicitam seus interesses societários.

De acordo com as posições doutrinárias apresentadas nos parágrafos anteriores, a análise conceitual recai, em primeiro lugar, sobre a necessidade de determinar critérios legais e operacionais, o elemento objetivo, e, em segundo lugar, para normatizar o exercício de uma faculdade de se associar, o elemento subjetivo. Apesar da existência de elementos objetivos, o elemento subjetivo, ou o interesse societário, se apresenta como ponto estrutural da gestão e do desenvolvimento das atividades das pessoas jurídicas.

Dessa forma, independentemente de uma sociedade de pessoas ou de capital, o interesse societário é o elemento que dá origem às demais relações interpessoais dentro das próprias pessoas jurídicas, que naturalmente, nas suas devidas singularidades, utilizam da forma da lei e da estrutura institucional para operacionalizar suas atividades.

3. Sociedades limitadas e affectio societatis

As sociedades limitadas são por natureza sociedades de pessoas que buscam unir esforços6 em nome de um interesse societário em comum.

A premissa anterior reflete um cenário que pode ter como consequência algumas confusões entre as pessoas dos sócios e a
própria pessoa jurídica, seja pela existência de uma eventual confusão patrimonial seja pela confusão entre as responsabilidades e deveres dos sócios e dos administradores. A última hipótese encontra fundamento na realidade principalmente quando as funções, de naturezas distintas, se concentram na mesma pessoa física.

Contudo, cabe ressaltar que muitos doutrinadores, dentre eles o Professor Erasmo Valladão7, entendem que o affectio societatis é um conceito subjetivo e, até mesmo, superado no direito societário moderno. A base da argumentação recai sobre dois elementos centrais: (i) o fato do affectio societatis não ser um interesse em se associar e, sim, um interesse voluntário de contribuir de forma ativa e igualitária; e (ii) o fato de o principal vínculo entre os sócios da sociedade ser o interesse societário, representado pelo fim social das sociedades.

Além disso, é importante destacar que o presente texto não busca discutir a aplicabilidade do affectio societatis como elemento central da relação entre os sócios, ou como elemento central da constituição de uma sociedade ou, até mesmo, como causa para sustentar, por exemplo, a exclusão de um sócio ou o direito de retirada. O objetivo central é analisar a possibilidade da aplicação do affectio societatis não como tradicionalmente analisado entre os sócios e, sim, em relação a própria sociedade, especialmente se inseridos em contextos específicos.

4. Lei Anticorrupção

A Lei Anticorrupção, por exemplo, tem como um dos seus elementos centrais a responsabilização de forma objetiva das pessoas jurídicas que cometerem atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira.

Em comentário breve sobre a referida lei, cabe ressaltar que esta também trata das organizações criminosas, conceituando-as como a associação organizada e estruturada de pessoas, com caráter estável e duradouro, para o fim de praticar infrações penais, com clara divisão de tarefas8. Sendo possível verificar que a estrutura apresentada se assemelha consideravelmente com a estrutura de uma sociedade
empresarial, claro que mantidas as diferenças evidentes nos interesses e fins sociais de cada uma.

Diante do exposto, seria plausível criar um cenário hipotético em que um sócio, ciente da ocorrência de um ato ilícito que infringe um dispositivo da Lei Anticorrupção, utiliza-se do elemento do affectio societatis para argumentar seu direito de retirada, seguido da dissolução parcial da sociedade. O cenário hipotético descrito tem como causa da dissolução parcial o próprio ato ilícito, que pautado pelo affectio societatis, tem como consequência a quebra do desejo ativo e voluntário de seguir contribuindo para o desenvolvimento da sociedade. Dessa forma, a quebra do affectio societatis assume um papel institucional e não mais descritivo, como usualmente aplicado.

Sendo assim, a pessoa jurídica que assumiu a responsabilidade objetiva pela prática de um ato ilícito também poderia estar sujeita às implicações diretas a serem sofridas por seus sócios.

5. A função da administração da sociedade

A mediação da relação entre os sócios e a sociedade é uma das obrigações da administração, que sempre deve agir de forma diligente, legal e transparente. Sendo assim, na hipótese da aplicação do affectio societatis entre sócios e a sociedade, à administração seria imputado, como obrigação adicional, o dever de manter proba a atividade da sociedade, para preservação do interesse voluntário dos sócios de seguir com as contribuições na sociedade.

A distinção institucional entre as pessoas e as atribuições dos sócios e dos administradores é o principal elemento para contribuir tanto para a continuidade da vida proba das sociedades quanto para a perpetuidade do affectio societatis entre sócios e a sociedade. Além disso, dentro do contexto do prospecto parte de um IPO (oferta pública de ações), é possível verificar que o mercado através do MD&A (Management Discussion and Analysis) demanda que os administradores das sociedades, que buscam abrir seu capital, apresentem uma descrição completa de suas atividades e principalmente da forma de realização de suas atividades.

Os administradores representam a pessoa jurídica e devem prestar informações ao mercado e aos sócios, ou acionistas dependendo do caso, especialmente de se estes forem profissionais e independentes, como forma de preservar a credibilidade da sociedade para com terceiros.

6. Sociedades anônimas e o affectio societatis

As sociedades anônimas são classificadas pela doutrina como sociedades de capital, que pela sua natureza afastam a existência do affectio societatis entre os seus acionistas9.

Considerando a premissa que o affectio societatis é o interesse voluntário de contribuir de forma ativa e igualitária, seria possível verificar que dentro das companhias esse conceito é potencializado, uma vez que a relação do interesse societário com o capital é clara e indiscutível.

Diante do exposto, é possível visualizarmos a existência de uma relação associativa entre os acionistas e as companhias, especialmente pela verificação do potencial retorno do capital a ser investido por cada acionista, que inclusive prevalece, na maioria das vezes, sobre o próprio fim social de determinada companhia.

A estrutura de adesão apresentada pelas companhias aos acionistas no momento do investimento do capital tem como contra partida o dever de prestação de contas e a preservação do interesse societário entre acionistas e companhia. Caso ocorra qualquer quebra desta relação, como por exemplo, se motivada por ato ilícito objeto da Lei Anticorrupção, seria plausível prever diversos danos à própria companhia e, consequentemente, ao investimento realizado pelos acionistas.

Dessa forma, o affectio societatis entre os acionistas e a companhia seria efetivamente afetado, restando não apenas a administração responsável pelo que lhe couber, mas também a própria companhia a cumprir obrigações para com os seus acionistas. Por sua
vez, do lado dos acionistas, além de uma possível indenização, seria possível que fosse pleiteado seu direito de retirada da companhia, seguido de dissolução parcial, para redução de danos aos próprios acionistas, seja pelo próprio capital seja pela não continuidade da relação com a companhia que se vinculou a atos ilícitos.

A verificação da existência do conceito de affectio societatis entre os acionistas e a companhia reforça a natureza da personalidade jurídica e fortalece as possibilidades de ganhos mútuos, buscando um ambiente profissional e responsável, capaz de auxiliar na preservação da credibilidade e na continuidade das empresas.

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3 HANSMANN, Henry. The Ownership of Enterprise. Harvard University Press: EUA, 2000.

4 WIEDEMANN, Herbert. ‘Excerto de “Direito Societário I – Fundamentos’, trad. Erasmo Valladão A e N. Franca. In: FRANÇA, Erasmo Valladão A. e Novaes (coord.) Direito Societário Contemporâneo I. São Paulo: Quartier Latin, 2009, pp. 11-24.

5 Texto acadêmico do Professor Evandro Fernandes de Pontes, de 2016, chamado “Tradução de “L’Institution et le droit statutaire”, de Maurice Hauriou”.

6 COELHO. Fábio Ulhôa, Curso de Direito Comercial, Editora Saraiva, Ed. 2011

7 Affectio Societatis: Um conceito jurídico superado no moderno direito societário pelo conceito de fim social. Erasmo Valladão e Marcelo Adamek.

8 NUCCI. Guilherme de Souza, Organização Criminosa, Revistas dos Tribunais, Ed. 2013.

9 Affectio Societatis: Um conceito jurídico superado no moderno direito societário pelo conceito de fim social. Erasmo Valladão e Marcelo Adamek.

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*Alexei Weidebach é advogado e especialista em Direito Societário.  

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