A daninha “garra” política
Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues*
Para mim, entretanto, essa palavra sempre esteve associada a “cafajestada”, auto-elogio, vulgaridade, ausência de auto-crítica, cabotinismo e exibição de valentia (sempre em relação a pessoas mais fracas, no físico ou no temperamento).
Quando, décadas atrás, eu ia a cinemas e a sala de exibição, no intervalo, estava com poucos lugares disponíveis, parecia-me ridícula e vulgar a disputa de dois casais correndo de lado, feito caranguejos — pisando nos calos dos sentados —, cada qual procurando colocar primeiro seus conspícuos traseiros nos dois assentos vagos. Ainda adolescente, achava que os lugares deveriam ser alcançados com certa naturalidade e compostura. No entanto, os donos dos fundilhos vencedores sempre exibiam um indisfarçável ar de campeões. Tinham comprovado a “garra”. Talvez, ao chegar em casa, fizessem amor, porque tais triunfos excitam.
Escritores — escritores! que deveriam ver as coisas com mais distanciamento — costumam disputar, na saliva, com elogios, visitas e jantares — as vagas deixadas por acadêmicos falecidos. Não se acanham de visitar, um por um, os acadêmicos em exercício, tentando “reforçar”, na base da simpatia, seus méritos literários. Se morre um acadêmico, logo um aspirante à sua vaga aparece em letra de forma com elogios diretos ao falecido e indiretos aos que ainda estão de pé e lhe podem dar o voto. Uma verdadeira “garra” não poderia deixar passar essa oportunidade fornecida pelo sistema natural de substituição da vida no planeta. No folclore de uma academia de letras de um determinado país houve um caso curioso: um candidato a acadêmico, de méritos certamente discutíveis, tentava e tentava, sem êxito, penetrar no respeitado panteão. Como suas chances eram mínimas, sua esposa, mulher atraente, resolveu arregaçar as mangas — ou outras parte de sua indumentária — e visitou um por um os acadêmicos. O que aconteceu nessas visitas, não se sabe, mas o resultado é que o marido acabou sendo eleito com surpreendente votação. Cada acadêmico, após votar, espantava-se ao ouvir que outro acadêmico também votara igual a ele. Pensava que só ele recebera a visita agradável e disposta a tudo. Como o mau literato não se elegeria com apenas um voto a academia não ficaria rebaixada no seu nível intelectual. Esquecia que a mulher, por vezes, não confessa tudo e, quando quer, tem também muita garra, e tudo faz, ou dá, pelo marido. O presidente da academia, deduzindo o que se passara, recusou-se a conferir a vaga ao eleito. Passou a presidência dos trabalhos a seu substituto e abandonou a sala, pisando forte, dizendo uma frase que não ficaria bem repetir aqui.
Átila, o “flagelo de Deus”, também tinha muita “garra”. Foi espantosa a área territorial conquistada por um povo de cultura tão primitiva. Depois de ocupar uma cidade, ou aldeia, matando todos os moradores do sexo masculino — Átila presumia que o medo paralisava futuros inimigos — o conquistador mongol “abandonava” ostensivamente o local. Na verdade, era um jogo de cena: ele deixava, escondidos, um bom número de arqueiros. Sabia que, entre os moradores caídos alguns fingiam de mortos, ou se escondiam. Quando esses sobreviventes pensavam que o perigo havia passado, saíam de seus esconderijos, eram mortos a flechadas. Átila tinha muita garra.
Como se vê, a “garra” — prefiro o termo, menos primitivo, de persistência — só é uma qualidade útil à humanidade, ou pelo menos à coletividade, quando seu portador, o “garrento” tem outras qualidades, tais como a compaixão, a solidariedade e, principalmente, uma inteligência ou bom senso acima da média. Do contrário, a “garra” é algo funesto, só útil a seu titular. Útil é, porque o “trator”, mesmo bronco, avança, esmagando tudo o que estiver à frente e, principalmente, em baixo. Quando a inteligência é pouca e a “garra, muita, saiam de baixo que lá vem desgraça, inafastável quando o “garrento” conquista o poder político.
Um outro problema relacionado com a “garra” está na “compensação psicológica”. Sentindo que sua capacidade mental é fraca, em desacordo com suas imensas ambições, o “garrento” tenta impressionar os circunstantes — em nível local ou internacional —, com a suposta qualidade da “coragem”. Torna-se imensamente agressivo, “valentão”. No fundo de sua mente, jaz o seguinte sentimento, jamais confessado: “Sei que sou burro, sei, mas ninguém é mais macho do que eu!”
Assim, paciente leitor, antes de elogiar a “garra” de alguém, verifique quais as outras qualidades, mentais e morais, que acompanham essa energia que, tanto serve para o bem quanto para o mal. E não elogiem antes de investigar isso porque sua aprovação pode aumentar a salivação dele.
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*Escritor, Desembargador aposentado e Membro do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo
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