Frequentemente a sociedade é confrontada por novas leis que causam severo desconforto – comecemos usando um termo não jurídico e pouco técnico antes de entrar em algumas questões conceituais um tanto espinhosas.
Não raro, tem-se a sensação de que algumas normas não se prestam a serem aplicadas de modo uniforme a todos, atendendo àquele antigo e consagrado princípio do liberalismo político. Afinal, como justificar um benefício fiscal acessível a todos, mas que, por sua especificidade, só alcança uma ou duas empresas? Ou uma regra ambiental, geral e abstrata, que cria facilidades apenas para uma parcela de algum setor produtivo?
Em tempos recentes, na sequência de um sem número de revelações acerca de como funciona o processo decisório no Estado brasileiro, entranhado por negociações escusas, veio à tona um dado que não deixou de causar algum espanto: as leis feitas por encomenda de algum grupo empresarial em troca, naturalmente, de generosos ganhos financeiros para seus autores e apoiadores.
Tais situações fazem muitos bradarem pela inconstitucionalidade destas leis. O desconforto por ter que conviver com semelhantes normas é evidente, mas traz junto uma questão: qual seria o fundamento desta inconstitucionalidade? Afinal, se o processo legislativo foi respeitado, a vontade da maioria prevaleceu, e se não se encontra dispositivo constitucional diretamente afrontado, qual seria o vício em uma lei feita por encomenda?
Discutir se uma norma jurídica é válida à luz da Constituição implica em analisar diversos aspectos, formais e materiais, que a circundam. Tradicionalmente, o tema se assentava em uma lógica pautada no conceito de hierarquia vertical, o que sempre trazia à mente o desenho da pirâmide normativa de Hans Kelsen. Já o modelo constitucional contemporâneo obriga a todos os envolvidos na realização da jurisdição constitucional a enfrentar o tema sob uma outra perspectiva. Isto porque a própria lógica das Constituições adquiriu um sentido diverso, quando comparadas aos textos clássicos, com seus fundamentos herdados do Século XIX.
De fato, o pós-Segunda Guerra trouxe a lume todo um amplo conjunto de valores que, reunidos, resultaram em um novo paradigma constitucional, centrado na valorização e defesa dos direitos fundamentais, cujo papel se desloca de uma posição secundária para o centro do universo constitucional.
A teoria constitucional contemporânea, base da Constituição Federal de 1988, confere significado diferenciado aos direitos fundamentais, o que tem por consequência uma mudança nos próprios alicerces do constitucionalismo. Historicamente o reconhecimento do caráter de norma suprema à Constituição se devia a convenção formal, consoante a concepção formalista prevalente na doutrina do Positivismo, especialmente de matiz kelseniana.1 Agora, a sua supremacia se afirma em função do conteúdo material e da carga valorativa que carrega.
No instante em que se reconhece como tarefa prioritária das Constituições funcionar como espaço para materializar os valores sociais mais relevantes, o próprio alicerce sobre o qual se assenta a estrutura hierárquica do ordenamento jurídico é alterado. Isto permite afirmar que a Constituição se situa no topo da ordem legislativa devido à força normativa de seus comandos, em especial os direitos fundamentais.
A centralidade reconhecida aos direitos fundamentais lhes confere relevância prática e aplicabilidade ampla e imediata, fazendo com que seja difícil identificar alguma questão jurídica medianamente complexa que não se encontre contemplada pela normativa constitucional.2 A amplitude do rol de direitos fundamentais positivados faz com que poucos espaços restem alheios à autoridade de tais normas, que influenciam não apenas o processo legislativo ordinário, mas também a interpretação e aplicação de todo o sistema jurídico positivo, o que realça a busca pela compatibilidade material das leis com a Constituição.3
A ideia de hierarquia formal que orientava o ordenamento positivo cede espaço a uma interligação material e valorativa, funcionando os direitos fundamentais como pilar central do sistema, de cuja necessidade de preservação se extrai o fundamento último de validade para todas as demais normas. Assim é que Luigi Ferrajoli sustenta que a validade do direito infraconstitucional deixa de depender apenas de sua estrutura formal de produção, entrando neste lugar a coerência de seu conteúdo com o plano normativo constitucional.4
Adquirindo os valores sociais caráter positivo, configurados como direitos fundamentais, qualquer discussão acerca de sua validade abandona uma dimensão etérea e se converte em um problema interpretativo, cuja solução reside em definir os conteúdos possíveis aos textos nos quais se assentam, sempre na tentativa de que as normas construídas efetivamente possam atender aos interesses de seus destinatários. O papel de quem interpreta e aplica o Direito (e isso não é tarefa apenas dos juízes!), portanto, é garantir que o horizonte normativo constitucional se materialize.5
Consequência direta destes fundamentos conceituais é a forma como se opera a análise quanto à (in)constitucionalidade das normas jurídicas. E agora passa-se à aplicação das noções até aqui desenhadas.
É possível afirmar que um dispositivo legal só é válido quando se conecta diretamente a um (ou um conjunto de) direito fundamental, assegurando, assim, sua efetivação. Logo, o fundamento material de validade de qualquer norma infraconstitucional é sua capacidade de conferir proteção/efetividade a algum direito fundamental que, por seu turno, funciona como seu alicerce e fonte de vida.
Pensando graficamente, pode-se conceber o sistema jurídico como um modelo de círculos concêntricos, cujo núcleo gravitacional é formado pelos direitos fundamentais. Em torno destes orbitam todas as demais normas jurídicas, atraídas pela força que deles emana.
Assim, seja no momento em que são produzidas, interpretadas ou aplicadas, as normas jurídicas – e os juristas, por óbvio – precisam ter em mira a necessidade de assegurar que o elo que as mantem unidas a seu centro gravitacional não seja rompido. Se uma norma jurídica se mostra incapaz de assegurar a integridade e a plena aplicação de um direito fundamental, a consequência inevitável é sua inconstitucionalidade.
Conectando estas ilações conceituais com o complexo cenário que se tem desenhado no Brasil, em especial no que tange às leis aprovadas por ‘encomenda’ de certos grupos ou empresas, nota-se a possibilidade de discutir, seriamente e de forma teoricamente sustentável, sua constitucionalidade. Mesmo que não haja defeito formal ou, aparentemente, vício material.
Isto porque, se o papel do sistema jurídico é assegurar a integridade e a plena efetividade dos direitos fundamentais e estes, por seu turno, existem para atender a interesses sociais (que, mesmo usufruídos de forma individual, seguem tendo uma natureza coletiva), quando se tem uma lei concebida para atender a um interesse privado, a lógica que sustenta o sistema normativo se despedaça. E com ela se vai a força que mantém uma norma jurídica conectada com seu eixo gravitacional.
Uma lei que não traga em si o objetivo de proteger uma coletividade, visando proporcionar um ganho coletivo e assegurar algum direito fundamental, é naturalmente incompatível com o modelo constitucional adotado no Brasil e com a lógica da centralidade dos direitos fundamentais. Como sustenta Luigi Ferrajoli,6 o sistema atual é pautado pela subordinação das leis aos direitos fundamentais do homem positivados nas Constituições, o que introduz uma dimensão substancial não apenas no que tange às suas condições de validade, mas também na natureza do sistema democrático, posto que aqueles representam um limite para a amplitude da atividade legislativa. E aqui reside o ponto nodal da questão.
O que assegura validade a uma lei é sua capacidade de dar vida a direitos fundamentais, como demonstrado. E estes, por seu turno, mesmo quando aplicados a indivíduos, jamais perdem sua natureza coletiva e abrangente. Assim, normas jurídicas que viram as costas à coletividade e tutelam interesses privados, sem que haja qualquer contrapartida social tangível, não se encaixam na lógica sistêmica incorporada pelo constitucionalismo nacional.
Nenhuma maioria parlamentar é capaz de fazer com que leis assim nascidas venham a expressar um princípio democrático e se conectar com algum direito fundamental, permitindo sua plena expressão em busca de um bem coletivo. São leis que já nascem desgarradas do campo gravitacional que emana dos direitos fundamentais, dada sua falta de conexão com o núcleo essencial das Constituições. A conclusão quanto à inconstitucionalidade das leis feitas sob encomenda acaba se mostrando não apenas possível, como necessária, sendo premente que se amplie o espaço de debate sobre este tipo de vício e que o Supremo Tribunal Federal aceite analisar a questão sob tal prisma.
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1 Veja-se, a propósito, passagem da obra de Kelsen na qual o autor explica a estrutura escalonada da ordem jurídica, destacando que a hierarquia normativa reside nos mecanismos de produção legislativa: “A norma que regula a produção é norma superior, a norma produzida segundo as determinações daquela é norma inferior. (...) A sua unidade [do ordenamento jurídico] é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por sua vez, é determinada por outra; e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental - pressuposta.” Ao que acrescenta que a Constituição, neste aspecto, é entendida “(...) em sentido material, quer dizer: com esta palavra significa-se a norma positiva ou as normas positivas através das quais é regulada a produção das normas jurídicas gerais.” KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 247.
2 SANCHÍS, Luis Prieto. Justicia Constitucional y Derechos Fundamentales. Madrid: Trotta, 2003, p. 116.
3 ARIZA, Santiago Sastre. La Ciencia Jurídica ante el Neoconstitucionalismo. in CARBONELL, Miguel. (org.) Neoconstitucionalismo(s). 2. ed. Madrid: Trotta, 2005, p. 240.
4 FERRAJOLI, Luigi. Pasado y Futuro del Estado de Derecho. in CARBONELL, Miguel (org.). Neoconstitucionalismo(s). 2. ed. Madrid: Trotta, 2005. p. 18.
5 ALEXY, Robert. Tres Escritos sobre los Derechos Fundamentales y la Teoría de los Principios. Trad. Carlos Bernal Pulido. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2003. p. 34-35.
6 FERRAJOLI, Luigi. Pasado y Futuro del Estado de Derecho. Op. cit., p. 19.
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*Marcus Firmino Santiago é doutor em Direito do Estado. Professor do Curso de Mestrado em Direito do Centro Universitário do Distrito Federal – UDF. Advogado especialista em Direito e Jurisdição Constitucional.