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Uma nova espécie de indenização decorrente de erro médico: a perda de uma chance

Cada vez mais, os médicos devem redobrar a cautela para que, no futuro, não sejam alvos de ações judiciais infundadas, de condenações astronômicas e de indenizações por danos hipotéticos que deflagram a falta de seriedade com a legislação brasileira.

2/8/2017

O tema é recorrente e superou, na relação médico-paciente, um dos grandes paradigmas do Direito brasileiro, inaugurando a obrigatoriedade do lesante reparar ao lesado um dano hipotético, incerto ou eventual.

Com o julgamento do Recurso Especial 1.254.141, utilizado como suporte fático para o presente artigo, o Superior Tribunal de Justiça perigosamente recepcionou, também para os casos de erro médico, a “teoria da perda de uma chance”, de origem francesa, possibilitando ao lesado uma nova modalidade de indenização.

Trata-se, em verdade, de uma criação doutrinária referendada pelo Judiciário que, para tanto, atuou como “Juiz Legislador”, figura tão criticada desde o século passado pelo saudoso jurista Mauro Cappelletti e incompatível com o Estado Democrático de Direito, que tem no princípio da separação dos poderes o cerne da autonomia e independência da República.

A ementa da referida decisão demonstra a complexidade, a relevância e a amplitude da matéria:

“DIREITO CIVIL. CÂNCER. TRATAMENTO INADEQUADO. REDUÇÃO DAS POSSIBILIDADES DE CURA. ÓBITO. IMPUTAÇÃO DE CULPA AO MÉDICO. POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA TEORIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE. REDUÇÃO PROPORCIONAL DA INDENIZAÇÃO. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO. 1. O STJ vem enfrentando diversas hipóteses de responsabilidade civil pela perda de uma chance em sua versão tradicional, na qual o agente frustra à vítima uma oportunidade de ganho. Nessas situações, há certeza quanto ao causador do dano e incerteza quanto à respectiva extensão, o que torna aplicável o critério de ponderação característico da referida teoria para a fixação do montante da indenização a ser fixada. Precedentes1. Nas hipóteses em que se discute erro médico, a incerteza não está no dano experimentado, notadamente nas situações em que a vítima vem a óbito. A incerteza está na participação do médico nesse resultado, à medida que, em princípio, o dano é causado por força da doença, e não pela falha de tratamento. 3. Conquanto seja viva a controvérsia, sobretudo no direito francês, acerca da aplicabilidade da teoria da responsabilidade civil pela perda de uma chance nas situações de erro médico, é forçoso reconhecer sua aplicabilidade.

Basta, nesse sentido, notar que a chance, em si, pode ser considerado um bem autônomo, cuja violação pode dar lugar à indenização de seu equivalente econômico, a exemplo do que se defende no direito americano. Prescinde-se, assim, da difícil sustentação da teoria da causalidade proporcional. 4. Admitida a indenização pela chance perdida, o valor do bem deve ser calculado em uma proporção sobre o prejuízo final experimentado pela vítima. A chance, contudo, jamais pode alcançar o valor do bem perdido. É necessária uma redução proporcional. 4. Recurso especial conhecido e provido em parte, para o fim de reduzir a indenização fixada.

Para melhor compreensão do caso e de seus desdobramentos, importante ter claro, de início, que o posicionamento do Judiciário partiu da premissa de que a conduta profissional do médico teria frustrado a chance de cura ao paciente.

Segundo consta da própria decisão “a oportunidade perdida é de um tratamento de saúde que poderia interromper um processo danoso em curso, que levou a paciente à morte”.

Se, por um lado, a postura do médico não provocou o câncer que levou o paciente a óbito, por outro teria frustrado, na ótica do Judiciário, a oportunidade de cura, mesmo que incerta.

A subtração da possibilidade de viver, ou de gozar de uma sobrevida mais confortável, seria o bastante para responsabilizar o médico, cabendo ao Judiciário mensurar a porcentagem de chances retiradas da vítima para que, posteriormente, possa fixar uma indenização.

Justificando a aplicação da teoria da perda de uma chance, o Superior Tribunal de Justiça, baseado em argumentos técnicos subjetivos, fundamentou que (i) o procedimento adotado pelo médico não foi adequado porque a melhor decisão acerca da cirurgia para tratamento do câncer dependeria essencialmente do tamanho do tumor; (ii) segundo a perícia, não era possível afirmar com certeza o tamanho do tumor que vitimava a paciente, de modo que sua classificação deveria ter sido como “tamanho não definido”; (iii) para as hipóteses de tumores de tamanho não definido, a comunidade médica, segundo apurado na perícia, não recomenda a cirurgia de quadrantectomia, mas a mastectomia radical.

Em complemento, (iv) a recomendação de quimioterapia e radioterapia feita pela réu, antes e depois da cirurgia, não observou o protocolo mais adequado, segundo a literatura médica atualizada; (v) na doença neoplásica a escolha do tratamento ideal se baseia em dados estatísticos, tendo o médico optado por oferecer um tratamento em que a chance de êxito ficou diminuída; (vi) houve culpa no acompanhamento pós-cirúrgico, pois o médico deveria ter solicitado outros exames, como cintilografia óssea, mamografia, ultrassonografia e abdômen, raio-x de tórax, procedimentos não observados.

Por fim, (vii) as chances de melhora foram reconhecidas pela perícia ao estabelecer que “se o tratamento dispensado fosse a mastectomia radical seguida de quimioterapia e radioterapia das dosagens recomendadas, as metástases poderiam ter surgido, mas com probabilidade menor que com o tratamento utilizado”.

Concluindo, a vítima teria “chances de sobreviver, de cura, ou ao menos de uma sobrevida menos sofrida, mais digna, se tomadas algumas medidas embora tardiamente após a recidiva”.

Todavia, ainda que se admitisse, no caso concreto, possíveis falhas do médico responsável, hábeis a caracterizar a sua culpa, o dano efetivo que se pretende ver ressarcido, baseado na perda da chance de viver ou de sobreviver com qualidade, é extremamente discutível, o que fragiliza o seu inequívoco reconhecimento, sua quantificação e a sua utilização como suporte ao necessário nexo de causalidade.

Pelas suas características próprias, a perda de uma chance, ao contrário do que o Superior Tribunal de Justiça sugere, raramente refletirá dano concreto, certo e real.

Esta, aliás, a grande crítica que gravita sobre o tema.

Isto porque a legislação brasileira, com a previsão da responsabilidade objetiva, admite a “indenização sem culpa”, mas não a “indenização sem dano”.

Historicamente, e enquanto a lei brasileira não admitia o ressarcimento do dano moral, conceituava-se o dano como sendo a efetiva diminuição do patrimônio da vítima. Hoje, esse conceito tornou-se insuficiente em face do reconhecimento do dano moral e, ainda, em razão de sua natureza não patrimonial.

Conceitua-se, então, o dano como sendo a subtração ou diminuição de um bem jurídico, quer se trate de um bem patrimonial, quer se trate de um bem integrante da própria personalidade da vítima, como a sua honra, a imagem, a liberdade, etc1.

Ou seja, dano é a lesão a um interesse jurídico tutelado, moral ou material. A sua existência, obrigatoriamente, deve ser certa, palpável e mensurável do ponto de vista

econômico. Os danos hipotéticos, oriundos de mera expectativa de direito, não são, em regra, albergados pela legislação pátria.

Prova disto é que o artigo 403 do Código Civil é claro ao dispor que “as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos [danos emergentes] e os lucros cessantes por efeito dela direito e imediato”.

Em relação ao dano moral (extrapatrimonial), reconhecido pelo artigo 5, X da Constituição Federal, ele afeta os direitos de personalidade e espelha uma modalidade de lesão com maior grau de subjetivismo, mas que também deve ser reconhecida no caso concreto, sob pena de improcedência do pedido.

Portanto, respeitadas as opiniões diversas, a perda de uma chance, por suas especificidades, não se enquadra, conceitualmente, em nenhuma das modalidades de dano material ou moral reconhecidas pelo Código Civil brasileiro. Tanto é assim que o próprio Superior Tribunal de Justiça a tratou como bem jurídico autônomo.

De forma bastante sucinta, até mesmo para não cansar a leitura com questões semânticas, o dano emergente consiste no prejuízo econômico efetivamente sofrido pela vítima e que lhe cause diminuição patrimonial, ao passo que o lucro cessante é a perda financeira comprovada, mais precisamente o valor que o lesado deixou de ganhar como consequência direta do evento danoso.

Diferentemente de tais modalidades, a perda de uma chance possui contornos conjecturais, sendo incerta a sua possibilidade de incorporação ao patrimônio do lesado. Ela goza de um subjetivismo acentuado e temerário, e isto põe em risco a Segurança Jurídica, verdadeiro pilar do Estado Democrático de Direito.

O próprio Superior Tribunal de Justiça, num passado não tão longínquo, afastou a aplicação da teoria da perda de uma chance nos casos de erro médico, exatamente pelo fato do pedido estar pautado em dano potencial. Confira-se:

“RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - DANOS MORAIS - ERRO MÉDICO - MORTE DE PACIENTE DECORRENTE DE COMPLICAÇÃO CIRÚRGICA - OBRIGAÇÃO DE MEIO - RESPONSABILIDADE SUBJETIVA DO MÉDICO - ACÓRDÃO RECORRIDO CONCLUSIVO NO SENTIDO DA AUSÊNCIA DE CULPA E DE NEXO DE CAUSALIDADE - FUNDAMENTO SUFICIENTE PARA AFASTAR A CONDENAÇÃO DO PROFISSIONAL DA SAÚDE - TEORIA DA PERDA DA CHANCE - APLICAÇÃO NOS CASOS DE PROBABILIDADE DE DANO REAL, ATUAL E CERTO, INOCORRENTE NO CASO DOS AUTOS, PAUTADO EM MERO JUÍZO DE POSSIBILIDADE - RECURSO ESPECIAL

PROVIDO. (...) A chamada "teoria da perda da chance", de inspiração francesa e citada em matéria de responsabilidade civil, aplica-se aos casos em que o dano seja real, atual e certo, dentro de um juízo de probabilidade, e não de mera possibilidade, porquanto o dano potencial ou incerto, no âmbito da responsabilidade civil, em regra, não é indenizável; IV - In casu, o v. acórdão recorrido concluiu haver mera possibilidade de o resultado morte ter sido evitado caso a paciente tivesse acompanhamento prévio e contínuo do médico no período pós-operatório, sendo inadmissível, pois, a responsabilização do médico com base na aplicação da "teoria da perda da chance"; V - Recurso especial provido” (REsp 1104665/RS, Rel. Min. Massami Uyeda, julgado em 9/6/09, DJe 4/8/09, REVFOR vol. 405 p. 449 RSTJ vol. 216 p. 464)

Ainda que a mudança de posicionamento pelas Cortes Superiores demonstre, em certos casos, louvável flexibilidade na busca da aplicação da Justiça e da paz social, isto evidencia flagrante paradoxo quando tal dissenso não se pauta em qualquer fundamento novo que altere a chamada “razão de decidir”.

Na atualidade, as decisões judiciais estão propiciando imenso grau de imprevisibilidade, mesmo para casos idênticos. Esse quadro de instabilidade é um dos entraves ao crescimento socioeconômico, além de fomentar o enriquecimento ilícito e, igualmente, trazer impacto financeiro de vulto quando se obriga um indivíduo a pagar indenização indevida a um pseudo lesado.

Tal situação se agrava ainda mais nos casos de erro médico, pois a constrição patrimonial se dá em altas quantias e, pela via reflexa, muitas vezes pode aniquilar a credibilidade profissional construída durante toda uma carreira.

Não se pretende, aqui, defender a impunidade. Mas não se pode admitir surpresas processuais ou condenação em descompasso com a legislação em vigor.

De fato, o profissional, autor de erro médico, pode ser condenado ao custeio de medicamentos, de pensão mensal por morte ou invalidez da vítima e de danos morais, mas não por indenização por perda de uma chance, até porque tal teoria, importada da legislação europeia, não pode ser recepcionada no Brasil como a “panaceia tupiniquim” para justificar indenização por dano remoto, incerto ou eventual.

Definitivamente, o médico, ou qualquer outro profissional, não pode ficar a mercê da subjetividade extrema do Judiciário e ao arbítrio de cada Juiz que, com base em convicções pessoais, ignora toda a estrutura de responsabilidade civil para penalizar o lesante com pagamento de dano hipotético ao lesado.

A evolução da sociedade e as características dos novos conflitos, dentre outros fatores, devem ser sopesadas na aplicação da tutela jurisdicional ao caso concreto. O Juiz não pode se furtar à solução dos problemas sociais e o dinamismo do Direito traz consigo, muitas vezes, a necessidade de buscar respostas adequadas e inovadoras, mas que devem ser justificadas de acordo com o Sistema Normativo.

Pode-se até admitir maior amplitude hermenêutica, mas o arcabouço jurídico tem que ser sempre observado.

Para se ter uma ideia do impacto da aplicação da teoria da perda de uma chance no caso ora analisado, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, o médico foi condenado, em primeira instância, ao pagamento de R$ 120.000,00, quantia reduzida, em 20%, na esfera recursal.

Com todo respeito, presumir que as circunstâncias descritas no julgado tenham interferido na convalescência da paciente, reduzido sua qualidade de vida ou ocasionado sua morte, seria ignorar, neste caso concreto, as nuances da medicina, sobretudo nos casos de câncer em que determinado resultado do tratamento escolhido depende da compleição física e da resistência do organismo do paciente.

Mesmo na escolha de um tratamento tidos como “correto”, a existência de metástases pode ocorrer. Afirmar que haveria a cura da paciente se outro procedimento tivesse sido adotado é equiparar o Juiz a Deus, sobretudo quando a situação sub judice não possibilita uma conclusão segura sobre a eficiência de um ou outro tratamento.

Não se pode olvidar que a paciente, após a atuação do médico, viveu por 7 anos (quando o tempo de sobrevida previsto era de 5 anos), tendo inclusive engravidado durante este período e dado à luz a uma criança sadia, indicativo de que viveu com qualidade e normalidade.

Num cenário tão delicado e complexo como este, o dano e o nexo de causalidade jamais poderiam ser alvo de presunção ou de mera possibilidade.

A propósito, a leitura atenta da decisão deixa transparecer que a teoria da perda de uma chance foi indevidamente utilizada como sansão civil, de cunho punitivo e que não se alinha com o viés compensatório e característico das reparações de dano.

Nesse particular, deve ser repelido o argumento - ventilado na decisão - de que a não adoção da teoria da perda de uma chance permitiria que os profissionais da área da saúde tivessem pouco cuidado com pacientes terminais ou com poucas chances de vida.

Ora, isso configura omissão profissional na esfera administrativa, cível e criminal. A aplicação da lei, por si só, já viabiliza uma resposta à sociedade. E mesmo que assim não fosse, caberia ao Poder Legislativo adotar as providências necessárias para que um fato pudesse ser definido como típico, antijurídico, culpável e punível.

Não faz parte das atribuições do Judiciário inovar, se valer de construções jurídicas descabidas ou de reprovável esmero para tentar transformar imoralidade em ilegalidade.

O Estado-Juiz não existe para, com a sua estrutura de poder, obrigar o homem a ser melhor, mais generoso, mais temente a Deus, mais carinhoso, afetuoso, altruísta, amoroso, etc. Ele pode proporcionar meios para que o indivíduo alcance ou aprimore bens morais, mas não pode traçar parâmetros morais pelos quais o ser humano deve se guiar. O Estado é mais direção e menos dominação2.

Se as Cortes Superiores não desenvolverem a contento suas atribuições legais, a falência do Direito brasileiro se tornará inescondível. Não se pode legitimar que o Juiz dê à lei o sentido que melhor lhe convenha, prejudicando terceiros. O Direito, como Ciência, não pode ser aquilo que os Juízes e Tribunais dizem que é.

Os princípios basilares do Estado Democrático de Direito não podem ruir por conta da subversão à lei, do paternalismo desmedido e da discricionariedade arbitrária do Judiciário.

A “criação” de novas modalidades de indenização contribui para a judicialização de demandas pelos pacientes, cujo número de ações aumenta a ritmo galopante.

Por incrível que possa parecer, a doutrina e a jurisprudência tendem, atualmente, a reconhecer indenização por “dano existencial”. A que ponto chegamos!

Cada vez mais, os médicos devem redobrar a cautela para que, no futuro, não sejam alvos de ações judiciais infundadas, de condenações astronômicas e de indenizações por danos hipotéticos que deflagram a falta de seriedade com a legislação brasileira.

Haverá um momento em que não mais existirão médicos desenvolvendo determinadas especialidades da medicina, e o Judiciário terá uma forte contribuição para esta triste realidade.

Lamentável, para dizer o menos. Fica o alerta!

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1 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 2ª ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 71
2 SOUZA, Daniel Coelho de. 2. ed. Interpretação e democracia. São Paulo: RT, 1979, p. 64 apud RODRIGUES, João Gaspar. A impossibilidade de reconhecer o abandono afetivo parental como dano passível de indenização. (Clique aqui).

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*Danilo Leme Crespo é advogado da Seguros Unimed, especialista em Responsabilidade Civil Profissional.

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