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Direito dos empregados à propriedade industrial

Os direitos intelectuais dos empregados estão previstos em regramentos específicos, que geram controvérsias doutrinárias quando confrontados com os princípios do Direito do Trabalho.

21/6/2006


Direito dos empregados à propriedade industrial

Adriano Cury Borges*

Os direitos intelectuais dos empregados estão previstos em regramentos específicos, que geram controvérsias doutrinárias quando confrontados com os princípios do Direito do Trabalho.

Para facilitar o estudo do tema, convém, à guisa de introdução, tecer algumas considerações. Sílvio de Salvo Venosa1 ensina que “todo direito tem um objeto sobre o qual repousa” e tal objeto pode “recair sobre coisas corpóreas e incorpóreas”. São considerados bens incorpóreos aqueles que não têm existência física, como os direitos intelectuais.

Dentro do estudo dos direitos intelectuais, tidos como gênero, encontram-se duas espécies: (i) direitos autorais – de que são exemplos a propriedade de obras científicas, artísticas, literárias e outras – e (ii) direitos industriais, constituídos pela invenção, pelo modelo de utilidade, pelo desenho industrial e pela marca.

Importa a este breve estudo, o direito à propriedade industrial dos empregados, mais especificamente as invenções e os modelos de utilidade.

Cite-se apenas como parâmetro que os direitos de autor são disciplinados pela Lei nº 9.610/98 (clique aqui), que não prescreveu expressamente quem deverá explorá-los no caso de autor empregado, em contraposição à norma anterior (Lei nº 5.988/73), que previa a co-autoria para as obras produzidas em cumprimento a dever funcional ou a contrato de trabalho ou de prestação de serviços.

Já a Lei nº 9.609/98 (clique aqui), também relacionada a direitos autorais, mas que regula em especial a proteção da propriedade intelectual sobre programas de computador (softwares), estabelece que, salvo estipulação em contrário, pertencerão exclusivamente ao empregador os direitos relativos ao programa de computador criado por seu empregado, desde que desenvolvido e elaborado durante a vigência de contrato de trabalho destinado precisamente à pesquisa e ao desenvolvimento deste tipo de material ou quando a criação decorre das atividades do trabalhador.

Ressalva o mesmo texto legal que os direitos relativos a software desenvolvido pelo empregado fora da empresa e sem a utilização de recursos, informações, materiais, instalações ou equipamentos do empregador são exclusivos do trabalhador, não tendo a empresa qualquer participação.

A situação intermediária, do empregado que desenvolve programas de computador no local de trabalho ou utilizando recursos do empregador sem ter sido contratado para este fim ou para o exercício de tarefa que com ele se relacione (invenções mistas), não tem qualquer previsão legal.

A Lei de Patentes (Lei nº 9.279/96 - clique aqui) dá tratamento semelhante ao previsto pela Lei de Softwares à matéria, em relação aos direitos de propriedade industrial (invenções ou modelos de utilidade). Com efeito, o invento do trabalhador contratado para realizá-lo, mais conhecido como invento de serviço, pertence exclusivamente ao empregador, enquanto que a inovação industrial desenvolvida pelo empregado fora do trabalho e sem utilizar os recursos do empregador (invenção livre) é exclusiva do trabalhador.

Em relação à propriedade industrial, porém, a norma jurídica vai além.

Primeiro, porque dispõe, no caso do trabalho intelectual como objeto do contrato de trabalho, que, salvo prova em contrário, consideram-se desenvolvidos na vigência do contrato, a invenção ou o modelo de utilidade cuja patente seja requerida pelo empregado até 1 (um) ano após a extinção do vínculo empregatício.

Segundo, porque edita regra específica para a hipótese do empregado que desenvolve sua criação com o auxílio do empregador, sem ter sido contratado para esta finalidade. Neste caso, o invento ou o modelo de utilidade serão de propriedade comum do empregado e do empregador.

Pois bem. Esclarecidos os parâmetros legislativos relativos ao tema, convém analisar se os dispositivos legais que disciplinam a questão compatibilizam-se com o Direito do Trabalho, sobretudo levando-se em conta o princípio primordial deste: a elevação sócio-econômica dos trabalhadores.

Muitos doutrinadores e juízes limitam-se, ao adentrar neste campo, a reproduzir a legislação supracitada, por ser específica à matéria. Argumenta-se que o Direito do Trabalho possui regras gerais de proteção aos empregados, enquanto que as leis de propriedade intelectual propõem-se a regular o tema de forma direta e delimitada, merecendo inequívoca aplicação. A despeito da validade e extrema coerência do argumento, outras digressões podem ser propostas.

A garantia conferida ao empregador de resguardar qualquer invento que venha a ser registrado pelo empregado dentro do prazo de um ano de rompimento do vínculo de emprego também não é abusiva, tendo em vista o direito do empregado de comprovar que a invenção não ocorreu em virtude do contrato de trabalho mantido, situação em que terá pleno direito de registrar e explorar a invenção.

Quanto à propriedade exclusiva do empregado sobre o invento realizado fora do trabalho e sem o auxílio de qualquer instrumento por ele proporcionado, a conclusão da legislação é óbvia. Nada tem o empregador que se imiscuir na vida particular de seus empregados.

Também justa e sem grandes críticas é a co-autoria da invenção por empregado e empregador na circunstância em que o primeiro, que não foi contratado para criá-la, utiliza dos recursos do segundo para tornar possível seu intento. Aliás, idêntica solução poderia ser aplicada analogicamente à situação semelhante em relação a softwares, já que a Lei silencia a respeito.

Os dispositivos mais criticados são os da Lei de Patentes e da Lei de Software relativos à exploração exclusiva pelo empregador das criações dos empregados contratados para desenvolver invenções, modelos de utilidade ou programas de computador. Invoca-se a hipossuficiência do empregado, que, no momento da contratação, não teria condições de recusar a oferta de emprego em razão da presumida diferença econômica existente na relação de trabalho a ser entabulada.

Contudo, não é o que mostra a realidade. Em geral, empregados contratados para criar invenções e softwares são profissionais capacitados, com plenas condições de discernimento no que respeita a uma contratação leonina e usurpadora de seus direitos. Dessa forma, referidos empregados costumam ajustar altíssimos salários em troca da “cessão” de uma valiosa invenção à exploração pelo empregador, ou então, o próprio contrato de trabalho já prevê uma gratificação ao empregado inventor proporcional ao lucro do empregador com o invento.

Negligenciar o pacto estabelecido a esse respeito entre empregado e empregador não servirá de proteção ao primeiro sob a justificativa de que é a parte mais fraca da relação. Pelo contrário. É justamente o excesso de proteção trabalhista que a ninguém protege. Isto, porque quando se retira da empresa a possibilidade de pactuar com seus empregados sem que o acordo seja considerado válido e eficaz, na verdade está-se ensejando a precarização do emprego. Em contrapartida, surgirão inventores eventuais, autônomos, cooperados e, não tardarão, estagiários inventores (máculas constantes na atual prática trabalhista).

As próprias Leis que disciplinam a matéria valorizam sua regulamentação específica por meio do contrato de trabalho, para garantir ao empregado, se for o caso, o direito à propriedade intelectual. Em verdade, as regras que conferem ou negam o direito aos empregados são previstas sempre para o caso de inexistir previsão contratual em sentido diverso.

Saliente-se que a legislação de propriedade intelectual prevê expressamente a possibilidade de o empregador conceder ao empregado participação nos ganhos econômicos resultantes da exploração da patente, quer por negociação com o interessado, quer por disposição contida no regulamento da empresa. E mais. A vantagem não deve incorporar o salário do empregado para nenhum efeito, não refletindo nas demais verbas de natureza trabalhista: 13º salários, férias, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, horas extras etc.

Isto posto, sem dúvida o melhor instrumento que empregados e empregadores têm à mão para resguardar seu direito à propriedade industrial não é outro senão o contrato de trabalho, ao qual, em se tratando deste assunto, deve ser dada a mesma legitimidade e eficácia jurídica de qualquer contrato, só podendo ser desconsiderado se comprovado, em juízo, algum vício insanável.
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1 In Direito civil: parte geral. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 321.
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* Advogado do escritório De Vivo, Whitaker e Castro Advogados

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