Migalhas de Peso

O novo processo administrativo sancionador do BCB e da CVM - MP 784/17 - (Um samba bem doido) - Parte III - As infrações (II)

Evidentemente a existência de registros verdadeiros e exatos são uma condição essencial para que o BCB possa realizar de forma adequada e eficiente o seu trabalho de fiscalização junto às instituições financeiras.

31/7/2017

Passamos a completar neste texto o exame do restante das infrações estabelecidas pela MP 784/17.

XI - inserir ou manter registros ou informações falsos ou inexatos em demonstrações contábeis, financeiras ou em relatórios de auditoria de pessoa mencionada no caput do art. 2º

Evidentemente a existência de registros verdadeiros e exatos são uma condição essencial para que o BCB possa realizar de forma adequada e eficiente o seu trabalho de fiscalização junto às instituições financeiras. Exatidão não significa perfeição, mas adequação do registro aos documentos sobre os quais estão fundados. Anote-se que o tipo aqui é objetivo desligado do elemento subjetivo.

XII - distribuir dividendos, pagar juros sobre capital próprio ou, de qualquer outra forma, remunerar os acionistas, os administradores ou os membros de órgãos previstos no estatuto ou no contrato social de pessoa mencionada no caput do art. 2º com base em resultados apurados a partir de demonstrações contábeis ou financeiras falsas ou inexatas

Entende-se que as demonstrações contábeis ou financeiras falsas ou inexatas apresentam um resultado positivo não verdadeiro, sobre o qual aquelas vantagens são indevidamente atribuídas aos beneficiários em prejuízo ao patrimônio da instituição financeira e, consequentemente, com perda patrimonial e surgimento de risco para os seus credores e para o mercado.

Essa infração se coloca no plano administrativo sem afastar aquelas próprias das previstas na lei 6.404/76 e de outras de natureza puramente penal.

XIII - deixar de atuar com diligência e prudência na condução dos interesses de pessoa mencionada no caput do art. 2º

Ficou criado por esse inciso um tipo específico cujo descumprimento corresponde a uma das modalidades de responsabilização dos administradores de sociedades em geral, colocado no plano da culpa ou do dolo, o que é no caso indiferente. Tratando-se o sujeito ativo de administrador de instituição financeira a gravidade da conduta se acentua, tendo em conta as características próprias do mercado financeiro, no qual o risco para credores é maior do que em outros.

Em todo o caso, a construção do tipo, mais uma vez, padece do preenchimento do requisito da boa técnica legislativa, uma vez que o termo interesse nele presente não apresenta a necessária precisão. Para circunscreve-lo será preciso construir uma interpretação no sentido de que o interesse interno da instituição financeira corresponde ao preenchimento do seu objeto social, a par de um interesse externo – subjacente – do atendimento ao interesse do SFN no qual era se insere. Em termos de norma penal essa imprecisão a prejudica na sua compreensão e consequente aplicação.

XIV - deixar de segregar as atividades de pessoa mencionada no caput do art. 2º das atividades de outras sociedades, controladas e coligadas, incluídas ou não nas consolidações de demonstrações contábeis e financeiras determinadas pelo Banco Central do Brasil, de modo a gerar ou contribuir para gerar confusão patrimonial

O BCB tem competência para determinar que demonstrações contábeis e financeiras sejam consolidadas no âmbito de grupos econômico/financeiros, do que resulta a possiblidade da apreciação global de sua situação, para fins da verificação da presença de riscos oriundos de outras empresas do mesmo grupo, que possam contaminar uma ou mais instituições financeiras do qual façam parte. Essa segregação é fundamental para que o BCB possa compreender o quadro como um todo e ele em sua particularidade no tocante a uma instituição financeira que componha o grupo de forma individualizada.

Entende-se, por outro lado, que as próprias atividades das sociedades componentes do grupo devem ser realizadas e segregadas segundo o objeto social de cada uma delas.

XV - deixar de fiscalizar os atos dos órgãos de administração de pessoa mencionada no caput do art. 2º, quando obrigado a tal

Sabemos que os administradores das sociedades anônimas são obrigados a agir no sentido de uma fiscalização recíproca de suas atividades, na forma do art. 158 da lei 6.404/76, de forma a que seja afastada uma eventual responsabilização decorrente de prejuízo causado pelos atos de um ou mais administradores. Para esse fim o administrador inocente deve adotar uma posição expressa em contrário ao ato ou atividade irregular1.

O tipo é objetivo (deixar de fiscalizar), mas deve-se entender que essa atitude dos administradores, presente de forma genérica, deve ser examinada a partir da possibilidade efetiva de sua atuação como agente fiscalizador dos atos dos demais membros do corpo administrativo da sociedade. Isto porque em companhias de grande porte (o que vale para instituições financeiras em condição semelhante) nas quais as atividades dos administradores são segregadas em departamentos específicos, torna-se extremamente custoso (ou mesmo praticamente impossível) para um administrador que exerça a sua função, em situação distante do núcleo operacional onde uma ilicitude esteja sendo praticada.

Não pode o legislador penalizar um administrador por ter deixado de fiscalizar quando no caso concreto ele não tem condições para tanto.

XVI - descumprir determinações do Banco Central do Brasil

O tipo é complemente aberto, com campo de aplicação indeterminado, o que é impróprio para a norma penal. De que determinações se trata? Do ponto de vista estrito somente se pode entender cuidar-se do descumprimento de uma norma formal emanada do BCB (circular, carta-circular, comunicado, etc.), dentro da sua esfera de competência sancionadora. Ainda, uma determinação de correção de práticas ilícitas, noticiado ao interessado por meio de uma comunicação formal.

Estamos, portanto, na presença de uma norma defeituosa do ponto de vista do seu conteúdo.

XVII - descumprir normas legais e regulamentares do Sistema Financeiro Nacional e do Sistema de Pagamentos Brasileiro, inclusive as relativas a:

a) contabilidade e auditoria;

b) elaboração, divulgação e publicação de demonstrações contábeis e financeiras;

c) auditoria independente;

d) controles internos e gerenciamento de riscos;

e) governança corporativa;

f) abertura ou movimentação de contas de depósito e de pagamento;

g) limites operacionais;

h) demandas do público por cédulas e moedas e operações com numerário;

i) guarda de documentos e informações exigidos pelo Banco Central do Brasil;

j) capital, fundos de reserva, patrimônios especiais ou de afetação, encaixe, recolhimentos compulsórios e direcionamentos obrigatórios de recursos, operações ou serviços;

k) ouvidoria;

l) concessão, renovação, cessão e classificação de operações de crédito e de arrendamento mercantil e constituição de provisão para perdas nas referidas operações;

m) administração de recursos de terceiros e custódia de títulos e outros ativos e instrumentos financeiros;

n) atividade de depósito centralizado e registro;

o) aplicação de recursos mantidos em contas de pagamento; e

p) utilização de instrumentos de pagamento

Inicialmente, atente-se para o fato de que esse tipo representa um bis in idem em relação a outros da mesma MP 784/17 e de outras fontes normativas emanadas do CMN, do BCB ou da legislação societária.

Por outro lado, ele se mostra parcialmente aberto em seu conteúdo, mas mais particularizado do que o existente no tipo imediatamente anterior.

Note-se que a figura correspondente à alínea "e", governança corporativa, não apresenta a necessária precisão técnica, tratando-se de um instituto não propriamente de natureza jurídica (ainda que encerre elementos afins) e de conteúdo impreciso. Mais uma vez a responsabilização pelo descumprimento dessa obrigação apresenta-se falha no campo penal pela indeterminação do seu conteúdo.

Completando o tratamento das condutas erigidas à condição de infrações à MP 784/17, o seu art. 4º dispõe que constituem infração grave, ainda que não previstas no art. 3º, as condutas que produzam ou possam produzir quaisquer dos seguintes efeitos:

I - causar dano à liquidez, à solvência ou à higidez ou assumir risco incompatível com a estrutura patrimonial de pessoa mencionada no caput do art. 2º;

II - contribuir para gerar indisciplina no mercado financeiro ou para afetar a estabilidade ou o funcionamento regular do Sistema Financeiro Nacional ou do Sistema de Pagamentos Brasileiro;

III - dificultar, por qualquer meio, o conhecimento da real situação patrimonial ou financeira de pessoa mencionada no caput do art. 2º;

IV - afetar severamente a continuidade das atividades ou das operações no âmbito do Sistema de Pagamentos Brasileiro; e

V - causar perda da confiança da população no uso de instrumentos financeiros e de pagamento.

Por sua gravidade, essas condutas receberão penas mais severas quando de sua prática.

Tenha-se em conta que a infração presente no inciso II do art. 4º (indisciplina, instabilidade ou mau funcionamento do mercado) se apresenta de forma aberta, a ser preenchida e justificada pelo BCB durante o processo investigativo.

A infração consistente em afetar severamente a continuidade das atividades ou operações no âmbito do SPB também está construída sobre um patamar de natureza subjetiva. Vê-se que afetar não severamente tal bem jurídico/econômico não configura tal infração, sendo necessário o estabelecimento de critérios objetivos para a identificação da conduta imputável pela norma, sob pena de caracterizar-se abuso do BCB.

Esse afetar severamente seria uma conduta capaz de prejudicar de forma sensível as operações praticadas na esfera do SPB mas aqui, como se percebe, estamos nos utilizando também de um critério subjetivo.

A última das infrações da MP 784/17 mostra um grau de indeterminação e de subjetividade que consideramos de comprovação fática verdadeiramente impossível, a não ser que seja caracterizada por um fato objetivo muito claro. Seria o caso, por exemplo, de uma atitude ilícita ou ruinosa tomada por alguma instituição financeira que viesse a provocar uma corrida generalizada aos bancos para a realização de saques e entesouramento de moeda, dado que a maior parte da população bancarizada teria perdido a confiança no sistema financeiro e na utilização dos instrumentos nele disponíveis. Mas então o estrago teria sido tão grande que a condenação dos agentes não teria qualquer efeito preventivo e, do ponto de vista repressivo, ela se mostraria ineficiente.
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1 A esse respeito vide o item 10.6 do Vol. 3 de nossa Coleção de Direito Comercial.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor Sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

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