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Constituição e mudança social

Os debates acadêmicos em torno de temáticas constitucionais não raro são enxergados como sem aplicabilidade prática. De fato a regra é que as conclusões a que se chega quando das discussões acerca de problemas constitucionais não transbordam para a realidade fática, o que só aumenta a crença na inaplicabilidade das discussões teóricas.

9/8/2006

 

Constituição e mudança social

 

Alcimor A. Rocha Neto*

 

Os debates acadêmicos em torno de temáticas constitucionais não raro são enxergados como sem aplicabilidade prática. De fato a regra é que as conclusões a que se chega quando das discussões acerca de problemas constitucionais não transbordam para a realidade fática, o que só aumenta a crença na inaplicabilidade das discussões teóricas.

 

Ocorre que a academia – e aqui trato da parte preocupada com o estudo do Direito Constitucional – existe para pôr em discussão temas controvertidos e para apresentar soluções para os mais diversos problemas jurídicos, políticos e sociais. Sua precípua função não é a de aplicar na outra ponta da “cadeia produtiva” da intelectualidade as conclusões de seus estudos.

 

Mas é fato que precisamos todos nos engajar por uma aplicabilidade prática dos estudos acadêmicos. Sobretudo quando se tem em conta que é da possibilidade de aplicação de estudos teóricos na prática que nasce e renasce, a cada dia, uma nova esperança em se ver o mundo mudado e uma sociedade diferente, para melhor, da que atualmente se enxerga.

 

A maneira como se lhe dá com a Constituição – e o modo como enxerga a ela – permite que se a utilize tanto para a mudança da vida de milhares de pessoas que ainda vivem desabrigadas pelas instituições públicas e privadas quanto para a mera discussão de problemáticas que, em que pese tenham sua importância teórica, de quando em vez – e parece, mesmo ser a regra – não se vêem concretizadas.

 

Preocupado com exatamente esse problema Konrad Hesse escreveu que a Constituição compõe-se de normas e nelas aparecem albergadas determinadas exigências à conduta humana, ainda não a essa conduta mesma1.  As exigências à conduta humana permanecem letra morta e nada produzem se os seus conteúdos não transbordam do texto normativo para a realidade. O “Direito Constitucional não se deixa, nesse aspecto, desatar da atuação humana. Somente quando ele é por ela e nela ‘realizado’ ganha ele a realidade da ordem vivida, formativa e configuradora da realidade histórica e ele é capaz de cumprir sua função na vida da coletividade”2.

 

Daí porque não se pode destacar o Direito Constitucional da Política. Friedrich Müller chega mesmo a afirma – coberto de razão – que “Direito Constitucional é o direito do político”, e alude ao Contrato Social de Rousseau cujo subtítulo é “Princípios de Direito Político” (Principles du Droit Politique)3.  É ela que irá pôr em prática tudo aquilo que em teoria está consagrado pela Constituição. A Constituição é o instrumento jurídico – por quê não político, também? – a disposição do governo4  para implementar todas as mudanças necessárias ao bom desenvolvimento da sociedade – e não apenas do Estado. Aliás, bom que se deixe claro que não basta que venha o Estado a se desenvolver, com crescimento econômico que salta aos olhos, por exemplo, sem que este seu desenvolvimento se reflita na melhora da vida de todos os cidadãos.

 

Quando do exercício da Política deparar-se-ão todos aqueles que a ela se dedicam com um quadro social assustador e que reclama – ou melhor, GRITA – por uma atenção maior por parte daqueles à frente das rédeas do poder. Direito Constitucional não pode ser destacado da política. Em última instância, espera a sociedade a aplicação da Constituição, efetivando-se os direitos humanos, em seu sentido mais amplo – individuais, políticos e sociais. Não chego à radicalizar como o fez Woodward5  ao dizer que “não faz sentido falar em direitos humanos numa sociedade materialista. Não podemos negar que a sociedade brasileira é materialista, mas esse fato não nos impede de implementar direitos consagrados pela Constituição. Mas que a algema que acorrenta o individuo à matéria realmente dificulta determinadas concretizações normativas.

 

Pagamos mais juros do que os gastos com educação e saúde. Dívida liquida do setor publico: 956 (novecentos e cinqüenta e seis bilhões) – cada um de nós já nasce devendo 5 500 (cinco mil e quinhentos reais).

 

Desigualdade maior que a do Brasil só existe na África sub-saariana. Mais de 57% de nossa estrutura agrária é composta por latifúndios. O desemprego cresce a despeito do que a política de pleno emprego da Constituição apregoa. Relativamente ao Índice de Desenvolvimento Humano o que se vê é que perdemos para Argentina, Chile, México, Costa Rica, Panamá. Taxa de alfabetização: 87% o que quer dizer que grande parte dos paises sul-americanos apresentam melhor quadro do que nós na alfabetização. A expectativa de vida, cá, é de 68 anos, o que significa uma pequena melhora, embora abaixo do esperado. Paraguaios, venezuelanos, chilenos, argentinos, vivem mais do que nós. Relativamente à criminalidade: crescemos depois da Constituição de 1988. 25 homicídios por 100 mil habitantes. Índices comparáveis à Colômbia e a Suazilândia que vive em guerra civil desde o seu nascedouro.  

 

Não precisamos de nenhum constitucionalista para interpretar esse quadro como contrário ao que a Constituição busca. Mas tudo isso deve ser assimilado como um desafio para todos aqueles que cultuam a Carta Política Fundamental e que a ela se dedicam como se uma religião civil fosse. Aplicar a Constituição e exigir respeito à ela é trabalhar pela mudança dessa assustadora realidade sócio-política.

 

Apontei aqui apenas alguns problemas pontuais, deixando de mencionar milhares de outros números que depõem contra a aplicação da Carta Magna. Mas como disse: trata-se de um desafio para os que querem implementar a Constituição. A cada momento em que apontamos uma inconstitucionalidade; no instante em que se atua como ativista constitucional está-se a trabalhar pela mudança social.

 

Uma mudança na realidade social, econômica e política do Brasil passa necessariamente pela efetivação não apenas do texto constitucional, mas dos valores que consagra. Devemos constituir uma sociedade calcada nos axiomas impregnados na Constituição e a esse labor só seremos fiéis caso lutemos pelo respeito absoluto à esta norma incrustada no ápice da pirâmide normativa de qualquer Estado Constitucional Democrático.

 

Não basta que os poderes públicos tomem decisões favoráveis à sociedade. Aqueles que são alijados do processo de participação democrática precisam participar de todo o procedimento decisório, ainda que seja apenas através da informação, para que as decisões públicas legitimem-se cada vez mais. Oportunidade e voz são, de quando em vez, mais reconfortantes para alguns do que, mesmo, pão e circo.

 

E para que tudo isso seja realizado necessário se faz que procedamos a uma análise das objeções que normalmente se costuma fazer no que pertine à Constituição de 1988, consistentes – todas essas objeções – em tentativas de se desqualificá-la. A social-burocracia quer uma legitimidade para retirar direitos sem extraí-los da sociedade. A questão é de força. Alguns apostam numa desqualificação do discurso constitucional que vem penalizando o movimento social e judicializando a questão social no Brasil. Ao mesmo tempo, é preciso separar a luta social da luta institucional. As reformas servem muito menos à população e muito mais aos dominantes. Mudanças reais, só com mobilização popular.

 

Os três supostos vícios da Constituição de 1988

 

Vício de Raiz

 

Fala-se que a convocação da Assembléia Nacional Constituinte que viria a elaborar a Constituição Federal de 1988 fora feita por uma emenda constitucional inconstitucional. Diz-se que a constituinte era composta, inclusive, por senadores biônicos. Alegava-se que o fato de não ser uma constituinte exclusiva retirava dela legitimidade.

 

Vale lembrar que se vasculharmos o baú sem fundo da história encontraremos exemplos similares de tais “erros” na convenção da Filadélfia e na França do presidente De Gaulle, por exemplo. Com relação aos vícios jurídicos poderíamos recordar o caso da Alemanha do pós-segunda guerra quando a constituinte foi imposta pelos Aliados, vencedores da II Grande Guerra o que, aliás, veio a ocorrer também no Japão.

 

Costuma-se objetar, ainda, que nossa Constituição foi um grande acordo de elites. E aí me vem a mente que quem estava como convencional na Filadélfia para elaborar a Constituição americana era Madison, um dos grandes proprietários dos Estados Unidos de então. E me ocorre um outro caso, desta vez mais à “esquerda”: o caso russo. Será que quem realmente convocou a constituinte e quem fez a revolução naquele país em 1917 foi mesmo o proletariado? Parece-me que se há este problema com a Constituição brasileira ele não nos é exclusivo.

 

Vício de Forma

 

Os que falam de vícios de forma na construção ou elaboração de nossa Constituição referem-se, normalmente, ao fato de ser ela assistemática e excessivamente detalhada. De fato há excessos. Mas quando se procede à esta crítica e se traz como exemplo ao debate o da Constituição americana a argumentação de quem assim o faz enfraquece. É que as constituições surgem em espécies de ciclos constitucionais, que respeitam as idéias dominantes no pensamento constitucional no mundo. Assim, no fim do século XVIII seria impossível depararmo-nos com uma Constituição consagradora de direitos sociais. É que o ciclo constitucional da época ainda não englobava o pensamento constitucionalizador daqueles direitos de segunda geração que seriam nominados de sociais.

 

O fato é que ainda que se optasse por adotar-se uma Constituição eminentemente neoliberal, na época em que estava instalada a Assembléia Nacional Constituinte as constituições tenderam a tomar muito corpo. Daí porque a nossa não poderia escapar do, repito, ciclo constitucional que arrasta a todos para o seu epicentro com ou sem assentimento.

 

O fato da assistematicidade deve-se, a priori, ao fato de ainda não termos conseguido uma deôntica avançada.

 

Vício de Conteúdo

 

A crítica conteudológica que normalmente se formula com relação à Constituição é, em sua maioria, de índole liberalizante. Diz-se dela que consagrou direitos sociais em demasia o que engessaria a economia, prejudicaria o governo do ponto de vista da governabilidade. Fala-se que a reserva orçamentária que instituiu é exagerada e que isso viria, do mesmo modo, a prejudicar a implementação e inovação no que se refere a políticas públicas.

 

Cito, aqui, algumas das críticas mais comuns, não apenas as que têm como alvo os direitos sociais: a) nos preocupamos mais com o direito dos bandidos do que com o das vitimas; b) a Constituição teria criado muitos privilégios; c) constitucionalizou-se o sistema de processo e de direito civil que não precisava estar na Constituição.

 

Mas as constituições não estão imunes à críticas. Veja, por exemplo, as críticas que se formulou e se vem formulando, ao longo dos séculos, no que pertine à Carta Política americana que é seguida como se religião civil fosse: a) Em 1919, as emendas 17 e 18, proibiam a venda de álcool nos Eua e foi alterada em 1933. b) Tinha-se um sistema indireto para o Senado nos Eua, que era totalmente aristocrático; c) Nos Eua costuma-se dizer que o Senado tem deformação representativa, pois, distorcida, o que teria quebrado com o principio do “one man, one vote”.

 

Nos EUA falou-se por muito tempo num Acidente Constitucional esperando por acontecer: a maneira das eleições americanas fatalmente elegeria um presidente que não obtivesse maioria – exatamente o que ocorreu em 2000.

 

Critica-se, ainda: a) o processo de emenda constitucional que exige a ratificação da maioria absoluta dos Estados americanos; b) o federalismo muito descentralizado nos EUA; c) aqui quem preside o Senado nos processos de impeachment é o presidente do STF, nos EUA á o vice, e se ele estiver sendo acusado: tem-se aí uma grande lacuna constitucional; d) a vitaliciedade da Suprema Corte; e) a forma como a Constituição lida com o processo criminal: a redação permitiria ser ele tratado como processo político; f) a separação dos poderes que seria demasiada rígida.

 

As críticas sempre contribuirão para o aperfeiçoamento de sistemas e do conhecimento que se tem sobre determinado algo. O que não pode ocorrer é de virem elas a interferir na própria efetividade da Constituição, o que as tornaria, senão indesejáveis, inoportunas. Porque se faz criticas ao constitucionalismo norte-americano e lá as coisas funcionam a contento? Porque lá a Constituição é uma religião civil. Lá as críticas são motivadas pela vontade de se ver melhorada a Constituição, de vê-la efetivada.

 

Escutei alhures: “Você pode usar idéias como armas e como sementes. Como armas você neutraliza a criatividade, e como sementes você atinge a cabeça e o coração e o objetivo é deixar com que a semente se desenvolva naquela pessoa, sem nenhum mérito de desenvolvimento, mas a colheita será mais farta e rica se meros seguidores fossem”.

 

O caminho é mais ou menos por aí.

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1HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: SAFE,  1998, p. 47.

2Idem.

 

3Em prefácio à obra conjunta de Bercovicci, Mont’alverne Barreto Lima, Pereira Neto e Filomeno Moraes, Teoria da Constituição: Estudos sobre o Lugar da Política no Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.

4Governo aqui tido no seu sentido mais amplo, isto é, tido como o conjunto dos órgãos do Estado encarregados de pôr a funcionar a máquina estatal.

 

5WOODWARD, E. L. citado por Jorge Rizzo em seu Deus não existe, Rio de Janeiro: Jorge Rizzo, 1998.

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*Bacharelando em Direito na Universidade de Fortaleza, 19 anos e autor do livro "Direito Constitucional e Teoria Política".

 

 

 

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