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MP 774/17: uma análise sobre as alterações nas regras da contribuição previdenciária sobre a receita bruta antes do final do exercício fiscal de 2017

Quando a juridicidade do Direito Tributário é desvirtuada, ela veste-se de andrajos jurídicos e como a Cinderela, num halo de mistério e superstição - foge ao Palácio da Justiça, quando a despesa ultrapassa a Receita.

14/7/2017

A Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta (CPBR), instrumento de desoneração da folha de pagamento, foi instituída a partir da lei 12.546/11, com o propósito de fomentar a criação de postos formais de trabalho, através da redução do custo da mão-de-obra dos empregados.

Inicialmente de adesão obrigatória, a CPRB passou a ser opcional com a lei 13.161/15, isto é, o contribuinte poderia optar pela contribuição social patronal sobre a folha de salário dos empregados ou sobre a receita bruta. Dessa forma, as empresas que planejaram ter um número expressivo de funcionários podem optar pelo recolhimento através da receita bruta, desonerando portanto, sua folha de pagamento.

Inopinadamente, sob a justificativa de redução do déficit da previdência social e equilíbrio da economia, no dia 30 de março de 2017 fora instituída a MP 774, que estabeleceu novo regime tributário sobre a contribuição previdenciária ao revogar os incisos I e II do caput e os § 1 e § 2 do art. 7 da lei 12.546/111, entre outros.

Nessa vereda, a proposição normativa reduziu o rol de pessoas jurídicas autorizadas a substituir a contribuição previdenciária sobre a folha de pagamento pela receita bruta, a exemplo das empresas do setor de Tecnologia da Informação. Nesse ponto, cumpre sublinhar que a partir do primeiro dia de julho de 2017, as empresas dos setores excluídos devem recolher, obrigatoriamente, a Contribuição Previdenciária Patronal (CPP) sobre a folha de pagamento.

Em contrapartida, a novel Medida Provisória não revogou o art. 9, § 13 da lei 12.546/11, permanecendo válida a irretratabilidade prevista no comando, a saber:

§ 13. A opção pela tributação substitutiva prevista nos arts. 7o e 8o será manifestada mediante o pagamento da contribuição incidente sobre a receita bruta relativa a janeiro de cada ano, ou à primeira competência subsequente para a qual haja receita bruta apurada, e será irretratável para todo o ano calendário.(Incluído pela lei 13.161, de 2015).

Em homenagem ao mínimo de rigor e coerência que o sistema deve apresentar e à luz do que proclama o artigo 6, §1 da Lei de Introdução ao Código Civil, a irretratabilidade é cogente para todo o ano de 2017.

Nesse esforço à busca do sentido jurídico, servem bem os institutos do ato jurídico perfeito, direito adquirido e expectativa de direito, conceitos relacionados à eficácia temporal das espécies normativas, que objetivam em última análise, resguardar a estabilidade dos direitos subjetivos, frente ao poder do legislador, no caso sub oculis, do poder Executivo.

Em que pese a indiscutível incompatibilidade com o ordenamento jurídico vigente, a Administração Pública estima uma redução da renúncia fiscal decorrente da presente Medida ainda para o ano de 2017, com um impacto positivo orçado em R$ 4,75 bilho~es de reais, conforme dados constantes na Exposição de motivos da retromencionada MP.

Sucede que as empresas que optaram pelo regime da desoneração da folha, o escolheram com base no seu planejamento financeiro e na expectativa de que o regime escolhido perduraria até o final no ano de 2017, por ter natureza irretratável. Certamente avaliaram a conjuntura econômica, projetaram resultados e estudaram os custos operacionais, notadamente, com contratação de funcionários e gastos diretos e indiretos com salários.

Enfim, adaptaram sua estrutura ao recolhimento de contribuição com base na receita bruta e criaram expectativas legítimas. No entanto, terão seus investimentos e resultados positivos frustrados diante dos abusos por parte da Administração Pública.

Não parece haver dúvidas, destarte, de que a exclusão arbitrária do regime alternativo feriu de morte, dispositivos legais, além dos princípios da segurança jurídica e proteção da confiança legítima. Acerca do assunto, acomoda-se como uma luva os ensinamentos do Professor Heleno Taveira Torres2, que por comodidade didática, oportuna é a transcrição:

“O Princípio da proteção da confiança legítima garante o cidadão contra modificações substanciais inesperadas (...) A administração deve respeitar esse “estado de confiança legítima” e, ao mesmo tempo, controlar os seus atos em conformidade com o respeito à confiança dos indivíduos na ação dos órgãos estatais. No direito administrativo, como no tributário, a proteção da confiança legítima assume caráter de princípio constitucional, como garantia da preservação de direitos e posições judiciais e legislativos, enquanto manifestação subjetiva da segurança jurídica(...) Exige-se da Administração Pública, que não pode agir segundo um critério que lhe é favorável em diversas situações e em outras, quando favorável ao contribuinte, mudando rumos, impondo restrições a direitos largamente reconhecidos, sem que com isso incorra em contrariedade com os princípios da moralidade e da impessoalidade.”

Como visto, o entendimento mais razoável e alinhado com o texto constitucional é que se a legislação insculpe que o regime tributável é optativo, irretratável para todo o ano calendário, a mudança no meio do exercício fiscal para o contribuinte de boa-fé, fere sua legítima expectativa de continuar contribuindo da forma que escolheu.

Não se pretende aqui discutir a Legalidade Tributária das Medida Provisória, que vicejaria extensa discussão, no entanto, apenas para reflexão acadêmica, vale colacionar trecho do artigo "Legalidade Tributária e Medida Provisória: Mel e Veneno", da lavra do Professor José Roberto Vieira3 .

"O Conhecido verso do poeta latino “Impia sub dulci melle venena latente” encontra correspondência, de certo modo, no antigo costume de untar-se com mel as bordas das taças nas quais se serviam remédios às crianças, dissimulando o amargor do medicamento com a suavidade do mel. No estado brasileiro contemporâneo, o doce sabor cívico da Legalidade em geral, e especificamente da Legalidade Tributária, oculta disfarçadamente o gosto amargo da Medida Provisória. (...) Em nosso caso clínico, uma droga que, pelo uso excessivo e descontrolado, provocou vício e dependência, convertendo-se em autêntico veneno"

Outrossim, não se pretende avaliar se a MP 774 será prejudicial ou não ao país, se representa um retrocesso a uma política que se mostrou estruturante até então. O ponto nodal da questão é, pois, a pranteada inconstitucionalide com a ruptura unilateral do regime tributário ao bel prazer da Administração Pública.

Uma lembrança final encerra este arrazoado, que já vai longo. Dignas de nota, vale consignar posição categórica de Benedetto Cocivera4 , "il diritto tributario è apparso ai più una cenerentola", em tradução, “O Direito Tributário, para a maioria, parece uma Cinderela". Interpreta-se: Quando a juridicidade do Direito Tributário é desvirtuada, ela veste-se de andrajos jurídicos e como a Cinderela, num halo de mistério e superstição - foge ao Palácio da Justiça, quando a despesa ultrapassa a Receita. Além disso, palavras mágicas transformam pedidos em realidade, mas à meia noite transforma-se em abóbora, perdendo sua magia e força normativa.

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1 Lei 12.546/11. Art. 7º Poderão contribuir sobre o valor da receita bruta, excluídos as vendas canceladas e os descontos incondicionais concedidos, em substituição às contribuições previstas nos incisos I e III do caput do art. 22 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991:

2 Torres, Heleno Taveira. A boa-fé e a confiança legítima no Código Tributário Nacional. In: Direito Tributário: comemoração dos 50 anos do Código Tributário Nacional: estudos em homenagem a Souto Maior Borges. Recife: Nossa livraria, 2016, p. 182-184.

3 Vieira, José Roberto. Legalidade tributária e medida provisória: mel e veneno. In: Tributos e direitos fundamentais. São Paulo: Dialética, 2014, p. 175.

4 Cocivera, Beneditto. Principî di diritto tributario. Milano A. Giuffrè, 1961, p. 13.

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*Flávio Fernandes Faro Pessino é advogado associado do escritório Bastos-Tigre, Coelho da Rocha e Lopes Advogados; Especialista em Direito Público e Direito Empresarial; Secretário-Geral da Comissão de Tecnologia da Informação da OAB/DF; Representante da OAB na Câmara Temática de Tecnologia da Informação da Fecomércio/DF e membro da Associação Brasileira de Direito da Tecnologia da Informação e das Comunicações.


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