O mundo gira de forma estranha. De um instante para outro, os discursos vão se amoldando, buscando encaixe em situações que antes seriam, para o seu emissor, uma abominação. Ferrenhos defensores do empoderamento feminino, que há pouco recriminavam o fato de nunca ter ocorrido escolha de uma mulher para o cargo de procuradora geral da República, agora questionam essa mesma escolha — de uma mulher. Saltitam do argumento-empoderamento, para o argumento-lista tríplice. Este último tema (a "lista") que fora usado, antes, por aqueles que nunca nomearam uma mulher — apesar de em oito dessas Listas, haver pelo menos uma mulher em sete ocasiões, e na lista de 2013 haver duas mulheres e apenas um homem.
Em um sistema de recrutamento inter pares, deveras estranho tem sido a não escolha de procuradoras. Se há tradição, esta é a opção masculina. Esta sim deve acabar. É preciso romper o glass ceiling.
Ainda hoje, mulheres lutam por igualdade de condições. No mundo jurídico a questão evolui a passos lentos — mas às vezes regride. Recentemente o TRF da 5ª região, que possuía uma única desembargadora (egressa do Quinto Constitucional), com sua aposentadoria passou a ter uma composição exclusivamente masculina,1 nada obstante o currículo invejável de uma candidata, dentre os três componentes da Lista Tríplice prevista constitucionalmente, e curiosamente também a mais votada.2
Mulheres ainda disputam ferrenhamente a isonomia com os homens no mercado de trabalho, especialmente nos campos de "dominação masculina". Um desses campos, a PGR, em toda sua história, jamais teve uma mulher na condição de procuradora geral. Basta acessar o sítio eletrônico da PGR para vermos a linhagem exclusivamente masculina dos ocupantes do referido cargo.3 Não é possível esquecer que por seis vezes — em sete ocasiões até então existentes — a Drª. Ela Wieco Wolkmer de Castilho4 de sólida formação, figurou nas listas tríplices.5 Numa outra vez (a sétima), a lista de 2013 estava composta por duas procuradoras (Drª. Ela Wieco e a Drª. Raquel Dodge). Ainda assim a opção fora por um procurador.
Recentemente fora escolhida a Drª. Raquel Elias Ferreira Dodge, que compartilhava a Lista Tríplice com o Dr. Nicolao Dino e o Dr. Mario Bonsaglia.
De um dia para o outro, quando uma profissional, de altíssima formação intelectual e moral é conduzida ao posto de procuradora geral da República, toda sua trajetória de vida, de lutas acadêmicas e profissionais, é deixada de lado para dar lugar à indagação: "não se respeitou a tradição do mais votado na Lista Tríplice".
Não vamos falar de tradição. A PGR não nasceu em 20016 A instituição é mais que centenária. Ela é maior que as pessoas que ocupam nela cargos e maior que entidades associativas. Respeitemo-la, portanto. Em 2001, por sugestão de uma associação — privada — dos procuradores, lançou-se mão de uma lista sugestiva, a exemplo daquilo que se dá com as Listas para Composição de Tribunais. Não entremos no engano de falar em violação de tradição. Infelizmente esse mantra será repetido à exaustão, e poderá ofuscar a quebra do paradigma patriarcal na ocupação do posto de PGR.
Se analisadas estas listas, a tão falada lista tríplice para PGR não possui sequer previsão legal ou constitucional. Limita-se a uma aspiração de classe. Esta é a verdade, por melhores que sejam as intenções. E são mesmo boas as intenções.
Vamos além. Façamos a análise das chamadas listas de seleção — sejam elas tríplices ou sêxtuplas — que têm previsão Constitucional e que existem para alguns casos de recrutamento de agentes públicos no Brasil. O caso clássico é o recrutamento de magistrados de Tribunais através do Quinto Constitucional. O MP e a advocacia escolhem uma Lista Sêxtupla. Essa lista de seis nomes é a aquela que diz — em tese — a pretensão do órgão, e que seria a representativa da autonomia de cada carreira em indicar seus representantes para ocupação da vaga em questão. Afinal, é escolhida no órgão de origem, não em alguma entidade privada, externa. Essas listas têm previsão Constitucional, p.ex., art. 94 da Carta Magna.
Mesmo nesses casos de previsão constitucional, a Lista não pode ser vista como mero interesse cartorial. E mais: não pode ser vista sequer como uma aspiração dos "componentes da lista". Para que seja republicanamente válida, só teria sentido se — e somente se — após inserção na Lista de todos os candidatos ali consignados passassem a ter — pois de fato têm — idêntica posição em termos de dignidade de tratamento e possibilidade de elegibilidade nas fases posteriores de recrutamento.
Todos os integrantes das Listas são isonomicamente considerados em termos de dignidade e capacidade. E, por isso, nas fases seguintes de recrutamento, devem ser respeitados na condição de candidatos (com o mesmo grau de atenção) e terem a mesma possibilidade de serem recebedores da escolha. Tal só será possível quando a Lista Sêxtupla for convertida em Lista Tríplice pelo Tribunal, mediante votação livre, sem qualquer dever e manutenção de ordem de votação precedente; e quando da escolha final, a partir da Lista Tríplice, o Chefe do Poder Executivo tiver a liberdade de seleção de um dos três nomes. O candidato que compuser a Lista Sêxtupla — seja oriunda do MP, ou da advocacia — na posição de mais votado, acaso não seja escolhido ao final, não poderá alegar qualquer "preterição".
A lista tem uma função, que excede à pretensão "corporativa", e excede à aspiração dos próprios candidatos. Sua função é gerar pluralidade de partícipes no preenchimento de uma vaga referida na Constituição.
Irônico é ouvir e ler os argumentos de pessoas que comentam a seleção da Drª. Raquel Dodge para o posto de procuradora geral da República. Boa parte dos comentadores não sabe sequer como se opera o sistema de escolha; e certamente não tiveram o cuidado de olhar o currículo profissional e acadêmico da candidata.
Irônico é ver que a tal lista tríplice nada tem de tradição. Muito menos de previsão constitucional. Fora iniciada por uma associação. Como é sabido, a liberdade associativa permite a existência de outras entidades e, especialmente, não vincula a nenhum integrante da carreira a ser afiliado. Portanto, temos uma percepção de proximidade da Lista com as aspirações de uma carreira e não do órgão necessariamente.
Sejamos francos: se a noção de lista, seja tríplice ou sêxtupla fosse vinculante para as fases posteriores de recrutamento e nomeação, não haveria a mínima razão de se compor lista alguma.
Por fim, cabe saldar as palavras postas pelo dr. Paulo Abrão, profissional seríssimo, incansável defensor dos direitos humanos que — pela honradez que lhe é peculiar — não cede a caprichos de extremismos políticos, e recepciona a notícia da escolha: "Saúdo e comemoro uma PGR mulher, Raquel Dodge. Minha experiência profissional com Raquel é integralmente positiva. Além de tecnicamente rigorosa, é fortemente ativa e preparada nos temas vinculados à luta contra a corrupção, além de demonstrar compromisso profundo com os direitos humanos. Foi Raquel quem, por exemplo, instalou o GT Justiça de Transição na PGR, abrindo as portas para uma resposta institucional articulada para as iniciativas de ações criminais sobre a ditadura. Desejo sorte, porque competência sobra para o tamanho do desafio que ela tem pela frente".
Com as palavras do dr. Paulo Abrão, encerro esta pequena observação sobre a pauperização do debate sobre a escolha da nova PGR. Descemos para abaixo da rés do chão, no influxo de buscar demonizar toda escolha vinda do atual ocupante do Palácio do Planalto, ainda que para tanto, não estejamos medindo esforços para sacrificar histórias de vida de terceiros e, além de tudo, ofuscando que se está diante da PRIMEIRA MULHER A OCUPAR A POSIÇÃO DE PROCURADORA GERAL DA REPÚBLICA.
__________
1 TRF5.
2 Migalhas nº 3.990.
3 Procuradoria-Geral da República.
4 Não ingressaremos na formação sólida da Dr. Ela Wieko pois o Lattes fala eloquentemente.
5 Lista Tríplice para PGR.
6 Publicação Eletrônica Trimestral – Ano I – nº1, Brasília, 20 de maio de 2008.
__________