Apesar da infinidade de leis e mandamentos jurídicos que nosso Estado possui, a cada ano mais normas integram o ordenamento jurídico, de forma a acompanhar a complexificação das relações que compõe a nossa sociedade. Diante de tantas normas, o aplicador do direito se encontra muitas vezes diante de casos concretos que se subordinam a mais de um mandamento, de forma a ser necessária a utilização de diversas técnicas do direito moderno para a verificação de qual lei será aplicada.
Quando o caso concreto envolve situações fáticas que são normatizadas pelo Direito Internacional Privado, a aplicação da norma se torna ainda mais complexa. Em decisão recente do STF1, foi colocada em voga a utilização das regras de regulação do DIPr em casos de transporte aéreo internacional, que segundo entendimento do Supremo devem ser regulados de acordo com as regras da Convenção de Montreal.
A problemática da decisão se encontra no fato de que a Convenção em seu texto permite ao consumidor o ressarcimento referente aos danos patrimoniais sofridos em uma relação de consumo de transporte aéreo internacional, mas não possibilita o pedido de danos morais, bem como veda a aplicação do Código de Defesa do Consumidor a tais casos, posição que causa de forma evidente danos ao polo mais vulnerável da relação – o consumidor.
A Corte baseou seu posicionamento em uma interpretação extensiva do art. 178 da Constituição, que postula:
“A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade.“
Observar os Tratados Internacionais, não significa aplicá-los sem a devida cautela. Em uma pluralidade de normas que podem abranger um único caso, é necessário modernizar a aplicação legislativa e buscar, assim como diversos países do mundo, a integração do sistema, de forma que observar a Convenção não significa a não aplicação do CDC, mas sim a conversação entre os dois textos legais e a eleição de qual é a mais aplicável ao caso concreto.
A necessidade da revisão de posicionamento se encontra na própria Carta Magna, tendo em vista que os esforços internacionais para a efetiva proteção do consumidor, elo mais vulnerável da economia, culminaram na disposição do art. 5°, inciso XXXII da CF: “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Tal norma Constitucional é classificada tanto na doutrina quanto em decisões anteriores da Suprema Corte2, como clausula pétrea, não podendo ser alterada pelo legislador, muito menos pelo Judiciário.
Verifica-se que a Convenção, enquanto Tratado Internacional que não trata sobre Direitos Humanos, subordina-se a norma Constitucional supracitada, o que evidencia a imprecisão da Corte no tratamento do tema, que com a decisão passou a privilegiar de forma discrepante as empresas fornecedoras de transporte aéreo internacional, que são alvo de milhares de reclamações e ações anualmente por falhas na prestação de serviços.
Tal decisão configura, portanto, um retrocesso nas conquistas que foram alcançadas pelo consumidor nas ultimas décadas, tendo em vista que até mesmo o principio da aplicação da norma mais favorável seria afastado nestes casos, gerando onerosidade excessiva ao polo mais vulnerável da relação de consumo.
É necessário, portanto, para a modernização do direito em todas suas esferas, decisões que prezem pelo dialogo entre normas divergentes, de forma a não comprometer a unidade do sistema jurídico brasileiro, e proporcionar segurança jurídica aos polos de uma relação, principalmente em se tratando de relações de consumo que compõe papel central no desenvolvimento econômico do país.
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1. RE 636.311 e AgRE 766.618.
2. HC 90.450/MG, Rel. Min. CELSO DE MELLO
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GOMES, Luiz Flavio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. “Tratados Internacionais: valor legal, supralegal, constitucional ou supraconstitucional?”. (Revista de Direito, Vol. XII, N°15, Ano 2009). São Paulo: Anhanguera S.A
RAMOS, Fabiana D’Andressa. Normas de transporte aéreo devem favorecer vulneráveis, 2017.
MARQUES, Claudia Lima; SQUEFF, Tatiana de A.F.R. Cardoso. As regras da Convenção de Montreal e o necessário diálogo das fontes com o CDC, 2017.
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*Natália Brotto é advogada com atuação nas áreas de direito Cível, Empresarial, Contratual e sócia fundadora do escritório Brotto Advogados.
*Kamila Okonski Mariano é colaboradora do escritório Brotto Advogados.