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Futebol brasileiro e seu arcabouço jurídico

O futebol - notadamente em épocas de Copa do Mundo - é uma “hipinótica distração coletiva” onde até as bolhas d´água no calcanhar esquerdo de Ronaldo ou as nádegas do Ronaldinho Gaúcho machucadas por um elástico rompido durante um treino de arranque ganha espaços generosos em toda a mídia mundial. Destaque-se que este “jogo universal” (“mais universal que a democracia, a Internet ou a economia de mercado”), categorizando-se como um fato social total e transversal na “sociedade desportivizada”, em razão de sua mediatização, profissionalização e mercantilização.

19/6/2006


Futebol brasileiro e seu arcabouço jurídico


Álvaro Melo Filho*

“O futebol não é questão de vida ou de morte. É muito mais que isso.”

Bill Shankly


O futebol - notadamente em épocas de Copa do Mundo - é uma “hipinótica distração coletiva” onde até as bolhas d'água no calcanhar esquerdo de Ronaldo ou as nádegas do Ronaldinho Gaúcho machucadas por um elástico rompido durante um treino de arranque ganha espaços generosos em toda a mídia mundial. Destaque-se que este “jogo universal” (“mais universal que a democracia, a Internet ou a economia de mercado”), categorizando-se como um fato social total e transversal na “sociedade desportivizada”, em razão de sua mediatização, profissionalização e mercantilização.


Induvidosamente, o futebol ao abolir fronteiras e limites possibilitou a simbiose entre a globalização unificadora e as resistências identitárias do mundo de hoje, até porque não há fenômeno mais global que equilibre a identidade nacional e a diversidade planetária. À evidência, o futebol transfundiu-se num idioma universal, apesar de não ser uma língua, sendo que sua popularidade e “mobilização massiva” decorrem da regras simples, claras e praticamente imutáveis que garantem liberdade e igualdade efetiva dentro do campo, valendo para todos, em todo o mundo, a ponto de cogitar-se do surgimento de uma novo conceito de homem, o “homo futbolisticus”. Por isso mesmo, amando-se ou odiando-se o futebol, este jogo global não é indiferente a ninguém, até porque o futebol é uma metáfora da sociedade contemporânea, ora reproduzindo as condições de sucesso na atualidade, ora expressando nos estádios as alegrias, tristezas, sonhos e frustrações de cada um de nós. Em suma, o lugar que o futebol ocupa no mundo de hoje ultrapassa a racionalidade, porquanto a emoção industrializada do futebol como espetáculo lúdico e quase circense marca o ritmo de adeptos e não adeptos, sem possibilidade de fuga.


O futebol que a todos contamina e contagia como autêntica epidemia ou “vírus sem vacina à vista” recebeu, nos últimos anos, um tratamento sem precedentes na esfera jurídica, como decorrência da “necesaria acomodación del Derecho al fenómeno deportivo”. De fato, o futebol tem vínculos estreitos e indissociados com o direito, na medida em que não pode subsistir sem regras de jogo e sem leis, ou seja, alheio à “reglès du droit pour dire qui gagne et qui perdu”. Com efeito, sem o direito, o futebol carece de sentido como exemplificam os estatutos de clubes e entes dirigentes, os códigos de justiça desportiva, os regulamentos das competições, as “leis de transferência de atletas”, os normativos sobre dopping, etc. Nesse diapasão pode afirmar-se que o desporto, com realce para o futebol, talvez seja dentre todas as atividades humanas aquela em que a regra jurídica ocupa um lugar de maior relevo, sem olvidar que “futebol e direito realizam-se sob os mesmos signos: o da lei e o do juiz”. E a convergência entre futebol e direito é tão expressiva e transcendente que já há quem proponha a criação de um “derecho futbolístico”.


Por sugestão e redação nossa, foi inserido o vigente art. 217 na Constituição Federal de 1988 que outorgou ao desporto o status constitucional e condensou os postulados que constituem a estrutura de concreto armado da legislação desportiva brasileira. Nesse mister, o dever do Estado de fomentar as práticas desportivas como “direito de cada um”, de garantir a autonomia desportiva das entidades de administração e de prática desportiva e de reconhecer da Justiça Desportiva, tornaram-se princípios cardeais desportivos cristalizados na Carta Magna. Reponte-se, dentre estes postulados, com sede constitucional, que o princípio da autonomia desportiva, no plano do Legislativo, impõe limites à elaboração das leis versando sobre desporto, na esfera do Executivo estabelece o parâmetro delimitador de sua discricionariedade e, no tocante ao Judiciário, condiciona a interpretação das normas do ordenamento jus-desportivo. Pontue-se, ainda, que esta consagração autonomia dos entes desportivos dirigentes e de prática quanto a sua organização e funcionamento - como cláusula pétrea da lex sportiva - buscou exatamente preservar o desporto, destacadamente o futebol, “das paixões exacerbadas e das injunções políticas circunstanciais”. Por isso mesmo, aos contumazes retóricos de plantão que fazem uso blogs e sites na Internet para, patologicamente, satanizar e demonizar os dirigentes desportivos como fundamento principal para implodir e fraudar o postulado constitucional da autonomia desportiva, lembra-se que esta saída é um salto rumo a um passado sombrio, marcado pelo autoritarismo e intervencionismo estatal, inclusive no desporto. E mais, não é vilipendiando-se com imposições pirotécnicas nem diluindo-se com artifícios hermenêuticos os princípios desportivos constantes do Texto Constitucional que se vai melhorar o futebol brasileiro.


E no “país do futebol” o interesse e a paixão até desmedidas “monopolizaram” e impuseram uma visão futebolizada à lex sportiva, deixando, em segundo plano, mais de cem modalidades desportivas praticadas de modo profissional ou não profissional, ou seja, o desporto rei tornou-se o rei dos desportos. De fato, cinco (5) anos após ter sido o desporto alçado ao patamar constitucional, foi promulgada a Lei nº 8.672 (clique aqui), de 6 de julho de 1993, promovendo e concretizando a “desintoxicação autoritária” da legislação desportiva. Vale dizer, foi a conhecida “Lei Zico” - elaborada e proposta pelo autor deste artigo - que instituiu normas gerais sobre desporto com diretrizes mais democráticas, reservando espaço para a autonomia desportiva e a liberdade de associação, ambas com sede constitucional, fazendo perpassar por todos os seus 71 dispositivos a filosofia do pode. Com a “Lei Zico” o conceito de desporto, antes adstrito e centrado apenas no rendimento, foi ampliado para compreender o desporto na escola e o desporto de participação e lazer; a Justiça Desportiva ganhou uma estruturação mais consistente; facultou-se o clube profissional transformar-se, constituir-se ou contratar sociedade comercial; em síntese, reduziu-se drasticamente a interferência do Estado fortalecendo a iniciativa privada e o exercício da autonomia no âmbito desportivo, exemplificada, ainda, pela extinção do velho Conselho Nacional de Desportos, criado no Estado Novo e que nunca perdeu o estigma de órgão burocratizado, com atuação cartorial e policialesca no sistema desportivo, além de cumular funções normativas, executivas e judiciais. Ou seja, removeu-se com a “Lei Zico” todo o entulho autoritário desportivo, munindo-se de instrumentos legais que visavam a facilitar a operacionalidade e funcionalidade do ordenamento jurídico-desportivo, onde a proibição cedeu lugar à indução.


Surge, posteriormente, em 24.3.98, a “Lei Pelé” (Lei nº 9.615/98 - clique aqui), dotada de natureza reativa, pontual e errática, que, a par de fazer a “clonagem jurídica” de 58% da “Lei Zico”, trouxe como inovações algumas “contribuições de pioria”: o fim do “passe” dos atletas profissionais resultando numa predatória e promíscua relação empresário/atleta; o reforço ao “bingo” que é jogo, mas não é desporto, constituindo-se em fonte de corrupções e de “lavagem de dinheiro”, geradoras inclusive de CPI; e, a obrigatoriedade de transformação dos clubes em empresas, quando mais importante que a roupagem jurídica formal é a adoção de mentalidade empresarial e profissional dos dirigentes desportivos. Ou seja, a “Lei Pelé”, produto de confronto e não de consenso, com ditames que usaram a exceção para fazer a regra, restabelece, de forma velada e sub-reptícia, o intervencionismo estatal no desporto, dissimulada pela retórica da modernização, da proteção e do “elevado interesse social” da organização desportiva do País. Certamente, em razão dos vícios de inconstitucionalidades e de irrealidades que continha, a Lei nº 9.615/98 foi objeto de várias e sucessivas alterações legislativas decorrentes da Lei nº 9.981/00 (clique aqui), da Lei nº 10.264/01 (clique aqui) e da Lei nº 10.672/03 (clique aqui), que a modificaram, ora minorando efeitos nocivos, ora aumentando danos colaterais, tanto que, da versão original, remanesce apenas 6% “Lei Pelé”, ainda pendente de substanciais reparos e indispensáveis ajustes. Em suma, não se pode olvidar que a Lei nº 9.615/98 (Lei Pelé) na sua versão atual, decantada inicialmente como a panacéia do desporto, especialmente do futebol, prometeu sonhos, mas entregou apenas pesadelos, muitos deles ultrapassando limites e atropelando princípios constitucionais.


Sinale-se, ainda, a Lei nº 10.671 (clique aqui), de 15 de maio de 2003 (Estatuto de Defesa do Torcedor), ou se preferirem, o “código do consumidor desportivo” ou o código do torcedor do futebol, tem sido fonte mais de problemas do que de soluções, a partir do momento em que o desporto deixa de ser concebido como direito e passa a ser considerado serviço ou “produto”. Rica em inconstitucionalidades e atecnias é objeto de ADIN, em curso no Supremo Tribunal Federal, onde apontamos 29 vícios jurídicos tanto indutores da “desobediência desportiva”, quanto ensejadores do denuncismo e da “chantagem desportiva”. Com efeito, o “ET” é um “monstrengo” jurídico-desportivo que afronta o princípio da isonomia ao incidir apenas sobre o desporto profissional (leia-se futebol); “engessa” por dois anos os Regulamentos das competições, vedando alterações mesmo que para corrigir enganos involuntários; impõe o sorteio de árbitros com 48 horas de antecedência das partidas, inibindo a profissionalização ao sujeitar seu exercício à aléa, blindando o árbitro sorteado de substituição ou afastamento mesmo que se venha a constatar que ele “negociou” ou apostou no resultado da partida, além de premiar o “sortudo” e punir o competente; obriga a constituição de órgão formado por torcedores não-sócios e cria a punição de afastamento compulsório para dirigentes desportivos vulnerando os princípios da presunção da inocência, da ampla defesa e do devido processo legal. Ademais, entra em detalhes típicos de regulamentação infralegal quando, por exemplo, obriga que as súmulas tenham 3 vias, sendo a 1º via acondicionada em envelope lacrado, exige “sanitários limpos”, determina o número de ambulâncias, médicos e enfermeiros, e outros quejandos que, à evidência, não se categorizam como normas gerais sobre desporto, sendo, nessa ótica, írritas, e nulas. Enquanto isto, em frente aos estádios assiste-se, impunemente, a venda de camisas pirateadas, de bebidas alcoólicas a menores e de ingressos por cambistas, atestando que o Estatuto do Torcedor é uma lei que, literalmente, “jogou para a platéia”.


Cumpre aduzir com relevante parte do arcabouço jurídico do futebol o Código Brasileiro de Justiça Desportiva - CBJD que se categoriza como um instrumento que condensa uma lógica jurídica amoldada ao fenômeno desportivo, nomeadamente ao futebol e que dá operacionalidade à Justiça Desportiva para, com presteza e celeridade, responder à crescente multiplicação de conflitos desportivos, a custos mínimos e amoldados às peculiaridades das atividades futebolísticas. Os ditames do CBJD - elaborados por Comissão de Juristas Desportivos da qual fui o Relator - buscaram reduzir a incidência de condutas comissivas e omissivas dos atores desportivos que malferem a disciplina e distorcem as competições desportivas, quase sempre deformadas pela supervalorização da vitória, pelos interesses econômicos em jogo e pelo aviltamento dos valores jus-desportivos.


Já no plano da lege ferenda sportiva está aprovado, na Câmara e no Senado, pendente apenas de três destaques, o PL nº 5541/05 instituindo a Timemania, um concurso de prognósticos que fará uso da denominação, marca ou símbolo dos clubes de futebol profissional, remunerando esta cessão com 22% da receita obtida em cada rodada lotérica. Com esse mecanismo criativo, sem envolver ou comprometer dinheiro público, os clubes de futebol profissional, na sua maioria em regime pré-falencial – em face da evasão massiva dos craques para o exterior e da atuação oportunista e predatória dos empresários desportivos desde a extinção do “passe” -, regularizarão sua situação fiscal, previdenciária e fundiária, a par de incrementar a própria arrecadação tributária federal, possibilitando à União recuperar receitas públicas potencialmente impagáveis até porque os recursos hauridos pelos clubes irão diretamente para os cofres públicos, sem sequer transitar pelos seus caixas.


Asseverava James Thurber que “não podemos olhar para trás com angústia nem para frente com temor, mas em volta com consciência”. E é com este animus que se deve avaliar o ordenamento jus-desportivo aplicável ao futebol buscando verificar a dose de presente que deve deixar de subsistir no futuro, onde as virtudes e os defeitos da “estatização” ou da “privatização” da lex desportiva brasileira devem ser sopesados, levando em conta a spécificitè sportive, a complexidade da codificação desportiva e o alcance de ditames desportivos internacionais, sobretudo os promanados do arcabouço jurídico da FIFA, até porque olvidá-los corresponde a “suicídio desportivo” ou a auto-exílio da maior comunidade internacional com 207 países filiados.


Alfim, cabe realçar que a lex sportiva para estar na vanguarda, e não na retaguarda, gerando mais luzes do que sombras, não pode fugir ao combate das três pragas principais que atualmente debilitam e malferem o futebol – violência, corrupção e dopping. E nesse diapasão, cabe à Legislação Desportiva brasileira estabelecer normas assecuratórias da credibilidade do espetáculo e dos atores desportivos, e, à Justiça Desportiva adotar, com celeridade, decisões que afastem o vírus contaminador da impunidade desportiva. Por isso mesmo, num mundo desportivo sem fronteiras e com o futebol cada vez mais penetrado por imperativos jurídicos, impende manter o ordenamento jus-desportivo sempre ajustado à singularidade dos fatos desportivos, amoldada aos novos paradigmas jus-desportivos internacionais e jungida aos anseios da sociedade desportivizada.
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*Advogado. Professor com Mestrado e Livre-Docência em Direito Desportivo. Membro da FIFA, da Comissão de Estudos Jurídicos Esportivos do Ministério de Esporte, da Comissão de Direito Desportivo do Conselho Federal da OAB e do IBDD - Instituto Brasileiro de Direito Desportivo. Consultor da ONU na área de Direito Desportivo.







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