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Direito ao esquecimento e a dignidade da pessoa humana

Como se vê, na maioria dos casos, o direito ao esquecimento é enfrentado tendo como base o princípio da dignidade da pessoa humana, e nesse ponto não há como evitar a análise de que o próprio princípio sofreu mutações ao longo do tempo e segue as mudanças naturais da sociedade.

20/6/2017

Personagens que tiveram nome e vida expostos em razão de envolvimento em fatos de grande repercussão e crimes que chocaram a sociedade têm direito de serem esquecidas pela opinião pública? É a pergunta frequente que se faz.

A discussão jurídica sobre o direito ao esquecimento embora não seja recente, ainda é recebida com muitas ressalvas pela doutrina, contudo tem se tornado recorrente nos tribunais.

A tese do direito ao esquecimento vem se consolidando ao longo do tempo, sendo que o Enunciado 531 da VI Jornada de Direito Civil promovido pela CJF/STJ é considerado um divisor de águas no enfrentamento do tema. De acordo com esse Enunciado “A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”.

Evidente que aqui não se pretende discutir a ilicitude ou gravidade do ato praticado pelo indivíduo que teve seu nome e privacidade impactados pela exposição na mídia em geral, tornando-se o que se chama de “celebridade assassina”, ou o grau do dano experimentado pelos familiares da vítima.

A Constituição Federal de 1988 ao elencar os Princípios Fundamentais, dispôs em seu artigo 1º, inciso III, sobre a dignidade da pessoa humana. No plano jurídico, a dignidade humana figura como a inviolabilidade de sua dignidade e tem como origem uma série de direitos fundamentais, dentre eles o direito à vida, à igualdade, à integridade física, à integridade moral ou psíquica, abrangido pelo direito ao nome, à privacidade, à honra e à imagem. E a partir destes princípios, em cada caso concreto, busca-se a proteção da pessoa humana, visando impedir condutas lesivas à sua dignidade.

Assim, o princípio da dignidade humana serve para estruturar o raciocínio do julgador na resolução de casos concretos levados à apreciação. Mas a problemática surge quando a dignidade humana se apresenta em colisão com outros princípios, gerando verdadeiros conflitos morais, como é o caso da dignidade humana X liberdade de imprensa ou dignidade humana X direito à informação.

Na era da tecnologia, em que as informações são disseminadas de forma instantânea e tomam proporções incontroláveis em fração de segundos, como garantir o direito ao esquecimento daquele que teve sua vida devastada pela mídia em razão de seu envolvimento em episódios que comoveram a sociedade?

Em algumas oportunidades o STJ enfrentou o tema e nesses julgamentos, definiu-se o direito ao esquecimento como “o direito de não ser lembrado contra sua vontade, especificamente no tocante a fatos desabonadores, de natureza criminal, nos quais se envolveu, mas que, posteriormente, fora inocentado”.

Direito ao esquecimento e os meios de comunicação – TV.

A primeira vez que o Superior Tribunal de Justiça aplicou a tese do direito ao esquecimento ocorreu em 2013 quando julgou dois recursos especiais, sendo que o primeiro figurava como autor da ação um dos acusados e posteriormente absolvido no episódio que ficou conhecido como “a chacina da Candelária” no Rio de Janeiro (REsp 1.334.097/RJ) e o segundo pela família de Aída Curi, estuprada e morta em 1958 por um grupo de jovens (REsp 1.335.153/RJ).

Nos dois casos, tanto o acusado e depois absolvido no caso da chacina da Candelária, como os familiares do caso Aída Curi pretendiam receber indenização por danos morais em face do uso, não autorizado, da imagem no programa de TV “Linha Direta”, antigo programa da Rede Globo, exibido nas noites de quinta-feira entre 1999 e 2007, que se dedicava a apresentar crimes que aconteceram pelo Brasil e que causaram comoção pública.

O ministro Luis Felipe Salomão, relator dos dois recursos especiais ao discutir a tese do direito ao esquecimento apontou que não se pode, nestes casos, permitir a eternização da informação. No caso do acusado de participar da chacina da Candelária, a emissora de TV foi condenada ao pagamento de indenização por danos morais, porquanto se entendeu que a menção de seu nome como um dos participantes do crime, mesmo após a sentença criminal que o absolveu, causou danos à sua honra, já que ele tem o direito de ser esquecido.

No tocante a questão da liberdade de imprensa, o ministro Relator dos casos destacou que embora a história da sociedade seja patrimônio imaterial do povo, esta liberdade deve ser analisada a partir do fato concreto e que houve completo menosprezo a dignidade da pessoa humana.

A corrente contrária a aplicação da tese do direito ao esquecimento argumenta que se um fato (divulgação) é lícito quando aconteceu, o passar do tempo não pode torna-lo ilícito. Fosse assim, fatos históricos prescreveriam.

Mas firmando seu entendimento, o ministro Luiz Felipe Salomão sustentou que a passagem do tempo, no campo do direito é o que permite a estabilização do passado, mostrando-se ilícito sim reagitar o que a lei pretende sepultar. E que o interesse público que orbita o fenômeno criminal tende a desaparecer na medida em que também se esgota a resposta penal conferida ao fato criminoso, a qual, certamente, encontra seu último suspiro, com a extinção da pena ou com a absolvição, ambas irreversivelmente consumadas. Se os condenados que já cumpriram a pena têm direito ao sigilo da folha de antecedentes, assim também a exclusão dos registros da condenação no Instituto de Identificação, por maiores e melhores razões aqueles que foram absolvidos não podem permanecer com esse estigma, conferindo-lhes a lei o mesmo direito de serem esquecidos.

No julgamento do caso “Aída Curi” o ministro afirma que quando em conflito princípios distintos como o da liberdade de informação e a violação da vida privada, intimidade, honra, imagem e, valores da pessoa e da família previstos na Constituição Federal, parece sinalizar que no conflito aparente entre esses bens jurídicos de especialíssima grandeza, há de regra, uma inclinação ou predileção constitucional para soluções protetivas da pessoa humana, embora o melhor equacionamento deva sempre observar as particularidades do caso concreto.

Seguindo a linha de entendimento desses dois casos, ainda que se afirme o valor absoluto do princípio da dignidade da pessoa humana, nos parece que a intenção do julgador é analisar cada caso concreto e se o caso, caberá ao aplicador do direito o bom senso de atribuir a importância do princípio da dignidade da pessoa em detrimento de outro princípio colocado sob apreciação.

Além da mídia, há ainda a exploração dos escritores policiais dedicados a dissecar casos de crimes que abalaram a sociedade.

O escritor Roger Franchini autor do livro “Richthofen”, revela detalhes conturbados do relacionamento entre Suzane e os pais antes do crime que chocou o país. Entre informações do processo, o problema com álcool e as agressões em família são apontados como possíveis interferências na formação de caráter da jovem.

Em entrevista à Rede Record de Televisão, o mesmo escritor argumenta que “Suzane jamais poderá levar uma vida normal fora da prisão”. Neste caso seria possível a aplicação do direito ao esquecimento?

Direito ao esquecimento no ambiente digital.

Além da mídia televisiva, há ainda o impacto que o ambiente digital pode causar sobre os indivíduos, especialmente a Internet. Mas a internet representaria o fim do esquecimento? São questões como essas que têm despertado reflexões dos juristas, especialmente se há limites para alguns direitos como por exemplo o direito à privacidade.

No ambiente digital o entendimento dos juristas é que o direito ao esquecimento não é absoluto, dependendo da avaliação de cada situação específica.

No Brasil não há uma lei geral que disponha sobre a proteção de dados pessoais. A lei 12.965/14, que instituiu o Marco Civil da Internet, preenche parcialmente essa lacuna quando em seu art. 7º estabelece que o acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e aos usuários são assegurados direitos, dentre eles o de exclusão definitiva dos dados pessoais que tiver fornecido a determinada aplicação de internet.

O fato é que esse direito à exclusão alcança somente as informações que o próprio indivíduo houver fornecido para um determinado provedor de aplicações de Internet.

Um dos aspectos mais discutidos nessa seara é como controlar a filtragem de conteúdo das pesquisas feitas por cada usuário.
Esses sites de buscas sofrem atualizações de forma constante e ininterrupta, ficando praticamente inviável ao provedor da busca exercer uma forma de controle.

Ao julgar o Recurso Especial 1.593.873, em que o recorrente (um dos maiores sites de buscas) justifica que não há como atender o pedido do autor, que pretendia ver excluídas todas as suas informações da rede, porque segundo alega o provedor, não detém propriamente as informações que se quer ver esquecidas, mas apenas faz as buscas dos dados e os apresenta aos usuários. Neste caso o STJ entendeu que os provedores de pesquisa (i) não respondem pelo conteúdo do resultado das buscas realizadas por seus usuários; (ii) não podem ser obrigados a exercer um controle prévio do conteúdo dos resultados das buscas feitas por cada usuário e (iii) não podem ser obrigados a eliminar do seu sistema os resultados derivados da busca de determinado termo ou expressão, tampouco os resultados que apontem para uma foto ou texto específico, independentemente da indicação da página onde este estiver inserido.

A questão do direito ao esquecimento no âmbito digital é tormentosa, já que as informações são disseminadas de forma instantânea e não ficam concentradas em um único site, tornando tarefa quase impossível de ser cumprida a de excluir definitivamente todas as informações.

Direito ao esquecimento no Supremo Tribunal Federal (STF).

Levantamento mostra que, de ao menos 94 processos analisados por desembargadores de tribunais de justiça no país, 67 negaram o pedido de se esquecer o passado. É que aplicar a tese do direito ao esquecimento obriga a retirar e apagar de páginas da internet conteúdos que associem o nome de qualquer pessoa a fato calunioso, difamatório, injurioso ou a um crime do qual ela tenha sido absolvida e sobre o qual não haja possibilidade de recurso.

Em parecer encaminhado ao Supremo Tribunal Federal, o procurador geral da república, Rodrigo Janot, afirma que o direito ao esquecimento, se reconhecido pelo STF, abrirá precedente para que determinadas pessoas requeiram indevidamente indenização por danos materiais e morais.

Além disso, para Janot, o Judiciário não poderia, com base em princípios constitucionais, solucionar todos os casos em que pessoas venham alegar que determinado programa jornalístico, por exemplo, não deveria retratar um crime cometido no passado.

A ausência de disciplina jurídica e o aumento dos casos que bateram às portas do Judiciário, todos utilizando a tese do direito ao esquecimento, acabou por reconhecer o tema como de repercussão geral e será julgado no plenário da Corte em recurso extraordinário.

Ainda no parecer enviado ao STF, Janot diz que seria impossível que os meios de comunicação soubessem de antemão o que uma pessoa quer: ser ou não esquecida.

Reconhecer judicialmente o direito ao esquecimento a partir de um princípio constitucional “indeterminado como o da dignidade humana”, aponta o Procurador, pode gerar inconsistências jurídicas e sobrepor interesses particulares ao direito da coletividade de liberdade de informação.

Diante da repercussão que a tese vem gerando, o ministro Dias Toffoli, do STF, convocou audiência pública para discutir a questão do “direito ao esquecimento” na área civil. O tema é abordado no RE 1010606, no qual familiares da vítima de homicídio – caso da jovem Aída Curi, estuprada e assassinada brutalmente aos 18 anos de idade em julho de 1958, no Rio de Janeiro, que querem impedir veículos de comunicação de relembrar a história sob alegação de violação da privacidade e pedem indenização. A defesa da família questiona a veiculação do caso no programa Linha direta da TV Globo, em 2004. Para os familiares da vítima o caso não tem interesse público, não é um caso que conta a história do país e não existem motivos para reabrir uma ferida e causar dor aos parentes.

A audiência pública terá como objetivo ouvir autoridades e especialistas a respeito da possibilidade de a vítima ou seus familiares invocarem a aplicação do direito ao esquecimento na esfera civil e a definição do conteúdo jurídico desse direito. O tema envolve a harmonização dos princípios constitucionais da liberdade de expressão e do direito à informação, a dignidade da pessoa humana e a inviolabilidade da honra e da intimidade.

A discussão acerca do direito ao esquecimento comprova que a lei é estática e não há como o legislador prever e alcançar plenamente todos os fatos sociais, no entanto, o Estado, ao tomar para si o poder e o dever de resolver de forma imparcial os conflitos de interesse entre particulares não pode se furtar de enfrentar temas ainda não decididos nos tribunais.

Como se vê, na maioria dos casos, o direito ao esquecimento é enfrentado tendo como base o princípio da dignidade da pessoa humana, e nesse ponto não há como evitar a análise de que o próprio princípio sofreu mutações ao longo do tempo e segue as mudanças naturais da sociedade.

É que na antiguidade, a dignidade tinha uma conotação aristocrática ou de poder, identificando a condição superior de certas pessoas ou dos ocupantes de determinados cargos. Hoje, como se verifica da própria legislação e doutrina, a dignidade incorporou-se à teoria dos direitos fundamentais, assumindo uma posição igualitária.

O cuidado do julgador ao enfrentar o tema no âmbito civil é de que todos os casos que estão sendo discutidos no Judiciário e que trazem o direito ao esquecimento sustentado pelo princípio da dignidade humana, não busquem indiretamente o desejo de aplicação desse princípio na sua forma mais primária e genuína, ou seja, não represente apenas um mero desejo do indivíduo de ver o seu pleito reconhecido em detrimento de outros direitos fundamentais, porque aí, e agora citando o filósofo e teórico social brasileiro Roberto Mangabeira Unger, como o desejo é ilimitado, mais à frente, até mesmo criminosos vão querer ser deuses.

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*Alzenira de Almeida é advogada associada do escritório Jflora Sociedade de Advogados.

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