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Manipulação Premiada

Cabe, agora, à imparcialidade e ao escrutínio do Plenário do STF avaliar, com rigor, os métodos e as circunstâncias em que foram produzidas as famigeradas “evidências” que, de concreto, só serviram para premiar indecorosamente os confessos criminosos.

9/6/2017

Os detalhes e meandros da delação premiada firmada pelos dirigentes da JBS vão sendo descortinados aos poucos, e as informações noticiadas pela imprensa não param de surpreender.

A jornalista Mônica Bergamo, em texto intitulado CORAGEM, publicado na Folha de S. Paulo1, no dia (C2, Ilustrada, 5/6/17), noticia que os executivos da JBS “foram os únicos delatores que até hoje concordaram em participar oficialmente de ações controladas”.

Na mesma publicação, detalhou a participação desses empresários: “A ação controlada, em que o delator grava interlocutores em conversas ou cenas comprometedoras que são usadas depois pelos investigadores como provas de crimes, é considerada de extremo risco.”.

Tomando-se de credibilidade os fatos publicados pela renomada jornalista, estamos diante de uma situação preocupante e, possivelmente, revestida de ilegalidade, a merecer criteriosa análise.

Instituídas pela chamada Lei de Organização Criminosa – (lei 12.850/13), a colaboração premiada e ação controlada constituem formas distintas de obtenção de prova no processo penal.

A colaboração premiada prevista originariamente nas Ordenações Filipinas - 1603 a 1830 (“Como se perdoará aos malfeitores, que derem outros à prisão“), foi reeditada no Brasil há mais de 25 anos, com a lei 8.072/90, atinente ao crime de sequestro: “§4º. Se o crime é cometido por quadrilha ou bando, o co-autor que denunciá-lo à autoridade, facilitando a libertação do seqüestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços.”

A partir de então foi também regulada por vários diplomas esparsos, com maior ou menor amplitude: lei 8.137/90 (Crimes Contra a Ordem Tributária), lei 9.613/98 (Lavagem de Dinheiro), lei 9.807/99 (Proteção a Vítimas, Testemunhas e ao Réu Colaborador), lei 11.343/06 (Drogas), dentre outros.

Presente nos sistemas jurídicos de diversos países, como França, Estados Unidos, Reino Unido e, Espanha, a colaboração premiada foi uniformizada globalmente pelos tratados internacionais da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado (Convenção de Palermo) e da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida).

Inquestionável, portanto, no Brasil e no mundo, o potencial desse instrumento como meio de investigação para obtenção de provas.

Desde que se iniciaram as operações nominadas pela Polícia Federal, nos idos de 2002, com a Operação Arca de Noé, as investigações policiais estavam basicamente alicerçadas em dois pilares fundamentais: a interceptação telefônica e a busca e apreensão.

Com o advento, em 2014, da Operação Lava Jato, e já sob a égide da Lei de Organização Criminosa, o espectro investigativo ampliou-se com destaque a novo binômio: prisão preventiva – ou a mal disfarçada ameaça de sua iminente decretação – e colaboração premiada, rigorosamente nessa ordem.

Prova da preponderância desse novo método investigativo está nas palavras do Procurador da República Manoel Pastana, ao assegurar que “além de se prestar a preservar as provas, o elemento autorizativo da prisão preventiva tem importante função de convencer os infratores a colaborar com o desvendamento de ilícitos penais”2.

Ou seja, sob essa ótica, a prisão provisória, prevista como último recurso de cautelaridade processual, converte-se em “extorsão de confissões e delações”, como anotou, com precisão, o advogado Alberto Zacharias Toron.3

Elementar do instituto premial, a voluntariedade não é espontânea, já que o candidato a colaborador é premido pelas circunstâncias, principalmente quando preso ou vislumbrando o risco da decretação de prisão provisória, condução coercitiva, exposição na imprensa, etc. ou pela ameaça de sua decretação.

Outro aspecto indispensável da colaboração é que esteja fundada em provas pré-constituídas: o pretenso colaborador deve iniciar as negociações para futura colaboração apresentando as provas que embasarão o acordo. Nem o delegado de polícia nem o representante do Ministério Público, no papel de negociadores e no curso da negociação, poderão exigir ou instigar o colaborador a produzir novas provas, até então inexistentes, como requisito para celebrar do acordo.

A relação negocial deve ocorrer, repita-se, com base exclusivamente em provas já existentes. Inadmissível o conluio entre investigadores e o criminoso na produção de algo novo, e, portanto, artificioso, capaz de robustecer o volume probatório, por vezes escasso e inconsistente.

Pelo que se pode depurar da matéria jornalística, o método aplicado pelos investigadores foi o de criar oficialmente uma “ação controlada”, com a participação do colaborador, em busca de novas evidências da alegada prática criminosa.

O estratagema, porém, não pode ser confundido com a ação controlada prevista em lei. Esta, igualmente descrita como “meio de obtenção de prova”, constitui-se em retardar a intervenção policial, mantendo as atividades criminosas sob estrita observação. Quer dizer, o órgão policial, como mero espectador, deve manter postura passiva, de observação e acompanhamento, sem qualquer interferência nos atos praticados pelos investigados monitorados.

Nada mais é do que o retardamento ou prorrogação da prisão em flagrante, de acordo com os interesses probatórios da investigação policial. Assim, em certas circunstâncias, e sob os rígidos limites legais de prévia comunicação ao juiz competente, a prisão dos agentes pode ser programada, retardada ou prorrogada4.

Não há, na ação controlada, portanto, qualquer possibilidade de participação do pretenso colaborador premial, conforme noticiado.

Repita-se:, apesar de aglutinadas na mesma lei de organização criminosa, a colaboração premiada é absolutamente distinta a ação controlada, onde não pode haver participação do delator.

Se houve, conforme noticiado pela Folha, a concordância dos colaboradores “em participar oficialmente de ações controladas”, com o intuito de “gravar interlocutores em conversas ou cenas comprometedoras que são usadas depois pelos investigadores como provas de crimes”, obviamente estamos diante de outra modalidade de flagrante: o flagrante preparado.

O STF já se manifestou inúmeras vezes sobre a inadmissibilidade do flagrante preparado, consolidando seu entendimento na súmula 145: “Não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”.

É inconcebível que o pretenso colaborador, buscando robustecer o seu parco arsenal probatório, seja convertido pelo Ministério Público em instigador de novos crimes, participando oficialmente de pretensa “ação controlada”, sob a auspiciosa orientação dos investigadores.

Se as provas apresentadas pelo colaborador na fase de negociação de seu acordo –, todas necessariamente pré-constituídas –, são insuficientes, a delação não pode prosperar, já que não atende aos requisitos legais.

A lei não permite que se deturpem os meios de obtenção de prova, convertendo o colaborador premial, visceralmente interessado no deslinde da causa, em instigador de fatos que serão alçados, pela por meio de desvirtuada “ação controlada”, em pretensas provas incriminatórias.

Nossa Constituição Federal, como cláusula pétrea, impõe a inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos.

Cabe, agora, à imparcialidade e ao escrutínio do Plenário do STF avaliar, com rigor, os métodos e as circunstâncias em que foram produzidas as famigeradas “evidências” que, de concreto, só serviram para premiar indecorosamente os confessos criminosos.

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1. C2, Ilustrada

2. Por que sustento prisão preventiva para corroborar delação premiada.

3. Em parecer, MPF defende prisões preventivas para forçar réus a confessar.

4. Tales Castelo Branco, Da prisão em flagrante, Saraiva, 2001, 5.ª ed., p. 218

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*Fernando Castelo Branco é advogado criminalista e sócio do escritório Castelo Branco Advogados Associados. É professor de Processo Penal na PUC/SP e coordenador do Pós-Graduação do IDP/SP.

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