Recentemente, em maio do corrente ano, veio à tona a discussão acerca da possibilidade de internação compulsória de pessoas que estavam na região chamada "Cracolândia", após a realização da ação policial (remoção das pessoas e demolição de prédios), com o escopo de inibir o consumo e o tráfico de drogas, no centro de São Paulo.
O prefeito da cidade João Dória havia, inclusive, obtido uma decisão judicial da 7ª vara da Fazenda Pública da Capital, que autorizava o internamento compulsório de pessoas que estivessem vagando aleatoriamente, em estado de "drogadição". Tal decisão foi suspensa pelo TJ, ao entender que o pedido do Município é "impreciso, vago, amplo, e, portanto, contrasta com os princípios basilares do Estado Democrático de Direito, porque concede à municipalidade carta branca para eleger quem é a ‘pessoa em estado de drogadição vagando pelas ruas da cidade de São Paulo'".
Percebe-se, deste modo, que o TJ não analisou a questão dos usuários e a segurança pública, limitando-se a análise nominativa do pedido "vago" realizado pelo Município.
Aprofundando sob o tema, é possível extrair o embate/conflito entre alguns princípios constitucionais, dentre eles, o princípio da liberdade (direito de ir e vir dos dependentes) versus o princípio da segurança pública lato sensu (direitos à vida e integridade das pessoas que ali convivem ou passam pelo local, bem como a proteção do patrimônio dos que ali possuem comércio ou propriedade).
Analisando a problemática à luz do princípio da proporcionalidade, base da resolução de conflitos entre princípios constitucionais, a doutrina1 ensina que é necessário ponderar três elementos: a) adequação, b) necessidade e c) proporcionalidade, em sentido estrito (também denominado razoabilidade).
Neste aspecto, é salutar a indagação: a restrição ao princípio da liberdade das pessoas que ali se reuniam para uso de drogas é adequada? Ou em outras palavras, a internação compulsória das pessoas em estado de “drogadição" é adequada?
Em um segundo momento, faz-se mister a análise: é necessária a restrição? Ou seja, não haveria um meio menos drástico para se alcançar o almejado?
E por último, chega-se a se pergunta: é razoável a internação compulsória? Ou ainda, para salvaguardar a segurança pública, é razoável trancafiar ou manter "sob guarda" pessoas contra a suas vontades?
Se todas as respostas forem afirmativas, estaremos diante da solução ao problema apresentado, de acordo com a interpretação conforme a Constituição.
Ocorre que a subjetividade humana não permite que a questão seja tão facilmente resolvida. Isso, pois, para todas as indagações apresentadas, dependendo da formação humanística da pessoa, ou mesmo, a sua vivência empírica, poder-se-á obter respostas diversas. Tudo a depender da visão que possui entre o interesse público e o interesse individual. Até onde o interesse individual pode preponderar sobre a coletividade? Ou, em contraponto, quais são os limites da intervenção estatal sobre o direito do indivíduo?
Argumentos não faltarão aos que defendem a interferência estatal, vez que já delegou-se ao Estado a função de intermediar os conflitos, buscando a pacificação social, proibindo-se, por sua vez, a autotutela.
Por outro lado, sabe-se que um intervencionismo exagerado do Estado, no modo de vida do indivíduo, pode levar a tirania, como existe em vários países (como a Coréia do Norte, por exemplo).
Retomando a problemática da Cracolândia, sabe-se que a pessoa em estado de "drogadição", ou seja, sob o efeito de entorpecentes, perde ou pode ter reduzido o seu discernimento, causando riscos à sociedade como um todo.
Sabe-se, ainda, que o uso contínuo do crack faz com que o dependente tente obter a droga a todo custo, furtando/roubando/matando, inclusive, pessoas próximas. Há notícias, inclusive, que as pessoas sob o efeito do crack passam horas, dias sem comer, sem beber, apenas sobrevivendo em quaisquer condições, sub-humanas inclusive, até o próximo consumo. Há, do mesmo modo, estudos que ligam o uso do crack com distúrbios paranóicos2.
Há, todavia, estudos que indicam que a internação compulsória não faz com que o dependente vença o vício e retome o controle de sua própria vida e convívio social.3
Qual, afinal, seria a solução? Não há qualquer resposta pronta a esta indagação. Sob a ótica do princípio da proporcionalidade, balizando os princípios constitucionais supracitados (interesse individual x coletivo), entende-se pela necessidade de internação compulsória aos que, de fato, apresentam riscos à segurança pública e a coletividade. Mesmo que tal internação não resulte na vitória contra a dependência daquele determinado indivíduo, deve o Estado resgatá-lo do estado de torpor, ofertando ao menos momentos de lucidez para que possa decidir sobre seu futuro.
Contudo, é primordial definir os critérios objetivos de como identificar os indivíduos que potencialmente poderiam trazer esses riscos (violentos, desorientados, paranoicos, por exemplo), não de uma forma vaga como o descrito pelo Munícipio de São Paulo.
Não obstante, deve o Estado, antes de retirar tais indivíduos das ruas, ter a capacidade de atender esses indivíduos em todos os aspectos (médico, psicológico, social) e não trancafiá-los, como nos antigos manicômios, sem apoio para a recuperação.
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1 BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. 6ª ed., revista, atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2006.
2 Os efeitos do crack. Acesso em: 6/6/2017
3 Internação compulsória por ordem judicial para dependentes de substâncias psicoativas. Acesso em: 6/6/2017
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*Larissa Piaceski é advogada especialista em Direito Empresarial, Contratos, Contencioso Cível Bancário. Pós-graduanda em Direito Médico.