O artigo 2º da lei 4.829/65 (que institucionalizou o crédito rural), assim definiu o crédito rural:
Art. 2º. Considera-se Crédito Rural o suprimento de recursos financeiros por entidades públicas e estabelecimentos de crédito particulares a produtores rurais ou suas cooperativas para aplicação exclusiva em atividades que se enquadrem nos objetivos indicados na legislação em vigor.
Pesquisadores ligados à política agrícola relatam que o principal desafio para a viabilização plena do agronegócio brasileiro passa pela solução do problema do financiamento, no que tange à relativa lentidão no processo de criação de novas alternativas de gerenciamento de riscos e de subsídio financeiro à agricultura, considerados necessários à manutenção da atividade nos níveis desejados pelo governo e pelos mercados.
Há que se ponderar que a falha ou o retardamento dessas alternativas fatalmente forçaria o setor público a novamente assumir o papel central de incentivador e de financiador do mercado agrícola, comprometendo assim, as já limitadas disponibilidades de recursos voltados ao desenvolvimento da produtividade, mola mestra do sucesso agrícola brasileiro.
Houve uma época em que o governo federal ocupou não só o papel central do financiamento e do fomento agrícola em nosso país, mas também a quase totalidade dessas funções.
A agricultura brasileira, desde o início da colonização, até a implantação da atividade urbano-industrial no país, foi amplamente dominada pelo modelo econômico baseado na atividade extrativista pura e simples. Com a modernização urbano-industrial, o campo passou a exercer também a função de gerador de recursos necessários à industrialização.
Em 1931, no primeiro governo de Getúlio Vargas, quando a principal atividade econômica do país era o café, ocorreu o primeiro mecanismo oficial de financiamento rural no Brasil. Os instrumentos criados para sustentar as atividades do setor foram a Carteira de Crédito Agrícola e Industrial (CREAI) do Banco do Brasil e o Departamento do Café. No entanto, na década seguinte (1940-50), pouca importância foi atribuída ao setor rural por parte do Estado, o que se caracterizou pela ausência de mecanismos e de instrumentos de intervenção mais efetivos.
Diante da mudança na realidade econômica no Brasil da época, o setor rural foi se enfraquecendo em termos relativos e absolutos, sendo que, entre os anos de 1948 e 1970, a atividade agrícola experimentou uma redução de 15% sobre a participação na renda interna do país.
Nesse caótico contexto, em novembro de 1965, surgiu o Sistema Nacional de Crédito Rural – SNCR, instituído pela lei 4.829/65, que tinha por principais objetivos:
a) estimular o incremento dos investimentos rurais em armazenagem, industrialização, custeio da produção e comercialização dos produtos agropecuários;
b) fortalecer os produtores rurais, notadamente os mini, pequenos e médios;
c) incentivar a introdução de métodos racionais de produção, visando o aumento da produtividade, a melhoria do padrão de vida das populações rurais e a adequada defesa do solo;
d) incentivar o aumento da produtividade e a modernização da agricultura; e
e) garantir maior parcela de recursos financeiros para a agricultura, já que os bancos comerciais privados, sem o apoio de legislação própria, não a atendiam satisfatoriamente.
A partir da institucionalização do SNCR como principal instrumento da política agrícola brasileira, grandes transformações começaram a ocorrer, não só no setor agrícola, mas em toda a economia nacional.
O SNCR surgiu com o intuito de criar condições que dessem suporte ao crescimento urbano. Nesse sentido, maior produtividade, menores preços de alimentos e maiores exportações seriam as medidas de sucesso da política, que possuía três componentes de financiamento: crédito de custeio, crédito de investimento e crédito de comercialização.
O programa consistia em promover a mudança na base técnica da agricultura, visando o crescimento da relação agricultura/indústria, com o desenvolvimento de ramos industriais voltados aos meios de produção (insumos, fertilizantes, defensivos, etc.) e aos bens de capital (tratores, implementos, colheitadeiras, equipamentos de irrigação, etc.), bem como ao processamento de produtos agrícolas.
Com o intuito de fomentar o financiamento agropecuário, agregou como agentes financeiros, o Banco do Brasil, o Banco Central, bancos estaduais, bancos regionais de desenvolvimento, bancos privados, caixas econômicas, sociedades de crédito, investimento e financiamento, cooperativas, órgãos de assistência técnica e extensão rural.
Nas décadas de 1960 e 1970, o SNCR propiciou a modernização de alguns segmentos da agricultura, levando a um significativo crescimento, fornecendo, por outro lado, pesados subsídios ao setor.
Operação comum nessa época eram os empréstimos concedidos pelo Banco do Brasil a grandes produtores que, ao invés de aplicar o dinheiro recebido no financiamento da produção, o reaplicavam no próprio Banco, percebendo rendimentos muito superiores àqueles previstos nos próprios contratos de empréstimo.
O programa previa taxa de juros de 15% a.a., sem correção monetária, contra 50% cobrados pelo mercado financeiro privado, que era obrigado a se posicionar defensivamente na tentativa de se proteger da desvalorização monetária provocada pela galopante inflação da época, o que também justificava a especulação financeira ora praticada internamente junto ao Banco do Brasil.
Em razão disso, o uso do crédito subsidiado cresceu vertiginosamente na década de 1970 que, com o aumento da inflação, verificou essa taxa de juros real (15%) restar negativa.
Em 1975, os empréstimos oficiais alcançaram 74% do produto interno da agricultura, sendo que, em 1976, chegaram a incríveis 90%.
Como os grandes e médios produtores detinham maior capacidade de pagamento, foram esses os maiores beneficiados pelo programa, descaracterizando um dos seus objetivos propostos, o de atendimento aos pequenos e mini produtores rurais.
Em meados da década de 1980, a conjuntura econômica, em especial o processo de aceleração inflacionária, aliado à crise fiscal vivenciada pelo Erário, levou o governo a retirar os subsídios das taxas de crédito rural, ocasião em que os juros passaram a 3% a.a., mais correção pela ORTN.
Com isso, os recursos repassados ao setor experimentaram drástica redução.
Com o sucateamento do SNCR, o mercado partiu em busca de soluções alternativas de financiamento, passando a lançar mão de recursos próprios.
Nesse cenário de escassez de recursos, em meados do início da década de 80, começaram a surgir mecanismos informais de alavancagem de crédito privado com o objetivo de instrumentalizar operações de crédito à agricultura, das quais se destacaram:
a) "Troca-troca" – início dos anos 1980: insumos e serviços por produtos agrícolas a serem entregues na época da colheita;
b) "Soja verde" – 1988: venda antecipada da produção a preço fixo pelo produtor, com pagamento à vista a um esmagador ou exportador, para entrega futura da produção;
c) Certificado de Mercadoria com Emissão Garantida – CMG – 1992: lançado pela Bolsa de Cereais de São Paulo, como título mercantil de contrato de compra e venda para entrega física futura garantida (CMGF) e entrega física disponível garantida (CDMG).
Face à redução dos recursos provenientes do SNCR, o mercado agroindustrial lançou-se em busca de novas fontes de financiamento. Atento a essas necessidades, em 1994, o Banco do Brasil realizou estudos que resultaram na criação da Cédula de Produto Rural – CPR.
Completando o ciclo histórico deste artigo, em 2004, inspirados com o sucesso e o avanço dos negócios rurais, dez anos após a criação da CPR, sentindo a necessidade de melhor aparelhar a comercialização dos produtos rurais, criaram os legisladores, para essa fase da cadeia produtiva, através da lei 11.076/04, o Certificado de Depósito Agropecuário (CDA) e o Warrant Agropecuário (WA).
Aprimorando toda a sistemática de financiamento do Agronegócio, foi criado também, pela mesma Lei, como instrumento financeiro, o Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio (CDCA).
E, a fim de atrair as Instituições Financeiras e as Companhias Securitizadoras e fechar o ciclo de financiamento da produção, comercialização, circulação financeira e securitização, o legislador trouxe à baila pelo mesmo diploma, a Letra de Crédito do Agronegócio (LCA) e o Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA).
Tais títulos de crédito são vinculados a direitos creditórios originários de negócios realizados entre produtores rurais, ou suas cooperativas, e terceiros, financiamentos ou empréstimos, inclusive relacionados com a produção, comercialização, beneficiamento ou industrialização de produtos ou insumos agropecuários ou de máquinas e implementos utilizados na atividade agropecuária.
Assim, com a CPR e os novos títulos criados, os produtores rurais, as associações e as cooperativas passaram a dispor de bons instrumentos para obter os recursos necessários ao financiamento de suas atividades. Seja por meio de compra e venda de produtos, seja mesmo sob a forma de garantia para o cumprimento de outras obrigações, esses recursos podem ser obtidos sem que haja desvio de finalidade na utilização de tais títulos, pois o incentivo à atividade agrícola está sendo totalmente respeitado em ambas as situações.
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*Marcus Reis é CEO do escritório Reis Advogados.