1. O contexto das decisões do Judiciário
Foi proferida em 19 de abril de 2017 sentença da 3ª vara Cível de Itu/SP, em ação promovida com base no art. 7º da lei 9.307/96, que supriu cláusula arbitral vazia mediante a escolha de instituição arbitral reputada adequada para a administração do litígio envolvendo um contrato de concessão do Município de Itu (SP). A solução foi baseada em acórdão proferido no mesmo processo pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.
Em conflito relativo a contrato de concessão de serviço público celebrado com o Município de Itu (SP), a empresa concessionária Águas de Itu Exploração de Serviços S/A iniciou procedimento arbitral perante a Câmara de Arbitragem Empresarial – Brasil (CAMARB).
A peculiaridade é que a cláusula compromissória em questão é vazia, isso é, limita-se a afirmar que os litígios decorrentes do contrato de concessão devem ser resolvidos por meio de arbitragem. Não indica a instituição responsável pela administração do procedimento nem outras regras para a instituição da arbitragem1. No entanto, a concessionária reputou que a CAMARB seria instituição adequada e requereu a instauração da arbitragem com sede em São Paulo (SP) segundo as regras daquela instituição. O demandado (Município de Itu) foi notificado para responder ao pedido de instauração da arbitragem, ocasião em que lhe caberia manifestar sua eventual objeção à arbitragem ou à instituição escolhida.
2. A ação do art. 7º (compromisso arbitral) proposta pela concessionária
Conforme consta da sentença, o Município efetivamente se opôs à instauração da arbitragem e arguiu a existência de cláusula arbitral vazia. Diante disso, em agosto de 2016, a concessionária promoveu a ação prevista no art. 7º da lei 9.307/962, a fim de obter a lavratura de um compromisso arbitral ou sentença que preenchesse as lacunas deixadas pelas partes na cláusula compromissória.
Com base na doutrina especializada e em diversas previsões legislativas e regulamentares aplicadas por analogia, defendeu que a arbitragem envolvendo a Administração Pública deveria ser preferencialmente institucional. Por decorrência, requereu que, se não houvesse acordo em audiência, a sentença indicasse instituição arbitral competente para administrar a arbitragem. De modo específico, requereu que a sentença confirmasse a validade da submissão do litígio à CAMARB.
3. A medida urgente deferida
A concessionária requereu que fosse liminarmente determinado o prosseguimento do procedimento arbitral iniciado perante a CAMARB, em vista da necessidade de dar-se célere solução ao litígio de fundo e considerando-se a clara existência de convenção de arbitragem entre as partes e a possibilidade de aproveitamento dos atos processuais praticados na arbitragem, mesmo que ao final fosse eleita outra instituição arbitral como competente. A medida foi concedida pelo Juízo da 3ª vara Cível de Itu:
Com efeito, a presente medida é adequada e necessária para dar continuidade ao procedimento de arbitragem, nos termos do artigo 7º, da lei 9.307/96.
E, conforme acima fundamentado, a instituição da arbitragem mostra-se obrigatória, de sorte que, por ora, não se verifica nenhum impedimento para o deferimento do pedido tutela de urgência para dar continuidade ao procedimento já instaurado.
De fato, a arbitragem institucional mostra-se a melhor alternativa por se valer de entidade especializada, sobretudo por envolver ente público.
A Câmara indicada na petição inicial, nesta fase inicial, não apresenta nenhum impedimento ou suspeição. É importante destacar que o município não impugnou a escolha feita pela autora em sua manifestação apresentada no procedimento arbitral instaurado. Pelo contrário, apresentou “pedido contraposto-reconvenção” em que requer a condenação da autora pagamento da reparação de danos.
O risco ao resultado útil do processo também mostra-se evidente, tendo em vista que o atraso do procedimento arbitral prejudica às partes que correm o risco de ter a solução definitiva do conflito se postergar por tempo imprevisível.
Portanto, de rigor a concessão da tutela de urgência para autorizar o prosseguimento do procedimento arbitral.
Ante o exposto, DEFIRO a tutela de urgência para autorizar o prosseguimento do Procedimento Arbitral (...).
O município interpôs recurso contra a decisão que deferiu a tutela de urgência pleiteada pela concessionária.
4. A manifestação do TJSP em agravo de instrumento
Contra a decisão que concedeu a tutela de urgência e determinou o prosseguimento da arbitragem perante a CAMARB, o Município interpôs agravo de instrumento, reiterando argumentos anteriores e ainda invocando as regras que limitam a concessão de medidas de cognição sumária contra o Poder Público.
Em acórdão que negou provimento ao recurso do Município, a 7ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) assim se manifestou:
A lei 8.437/92, que dispõe sobre a concessão de medidas cautelares contra atos do Poder Público, é reiteradamente citada pelo agravante para arrimar suas alegações.
Não se ignora o fato, entretanto, de que o referido diploma legal possui a mesma força normativa de outra lei vigente, qual seja, a lei 9.307/96, ou lei de arbitragem, que estabelece, logo em seu artigo 1º, § 1º, que “a administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis”.
Essa, sim, é a hipótese dos autos. (...)
5. Sentença de procedência
Em 19 de abril de 2017, proferiu-se em primeiro grau sentença de procedência da ação.
Aplicando a competência-competência, a sentença afirmou que as questões relativas à alegada nulidade da cláusula compromissória suscitadas pelo Município não poderiam ser conhecidas pelo Juízo, devendo ser decididas pela Tribunal Arbitral.
Reafirmou o entendimento, já manifestado no acórdão proferido no agravo de instrumento, de que a cláusula de eleição de foro é aplicável apenas subsidiariamente à cláusula arbitral, para ações essencialmente judiciais (como a própria ação do art. 7º).
Confirmou também o entendimento já pacificado de que a cláusula compromissória não ofende o art. 5º, inciso XXXV, da CF e de que a Administração Pública pode valer-se de arbitragem para dirimir conflitos.
A sentença enfatizou que a CAMARB “constitui a câmara mais indicada para a realização dos trabalhos” e que não havia sido apresentado nenhum argumento técnico que afastasse a possibilidade de eleição da CAMARB como instituição competente para a administração do procedimento arbitral. Analisou a adequação da instituição, em cotejo com outras referidas na sentença, sob os ângulos da experiência específica e dos custos estimados.
A sentença é coerente com a evolução legislativa e doutrinária acerca da preferência da arbitragem institucional nos litígios envolvendo a Administração Pública. A arbitragem ad hoc apresenta riscos derivados da extensão da autonomia da vontade das partes nesse tipo de procedimento. As partes devem concordar em praticamente todos os aspectos concernentes à estrutura processual básica para que a arbitragem possa fluir – a consensualidade exigida é muito mais alta. Qualquer divergência pode retardar o desenvolvimento do processo e exigir a intervenção do Judiciário para medidas de apoio que supram as divergências.
A arbitragem institucional supre tais riscos. Isso principalmente porque conta com regras pré-estabelecidas (regulamento de arbitragem) determinando a estrutura processual básica, calendário inicial de procedimento, mecanismos de indicação de árbitro(s), regras resolvendo questões relativas à impugnação deste(s), local para audiência, determinação de honorários de árbitros e, inclusive, mecanismos que previnem ou reduzem o risco de inexequibilidade da sentença arbitral por vícios formais.
Basta ver que todos os atos normativos que regulam a arbitragem com a Administração Pública (MP 752/16, decreto 8.465/2015, lei estadual de MG 19.477/11) contemplam arbitragem institucional e até mesmo regulam em maior ou menor detalhe as características da instituição admissível. O art. 4º do decreto 8.465/15 exige que a eventual opção pela arbitragem ad hoc seja justificada, estabelecendo a institucional como preferencial.
Além disso, a sentença reafirmou orientações consolidadas relativas à arbitragem envolvendo entes da Administração Pública.
Mas o pronunciamento reveste-se ainda de interesse muito especial porque, dando um passo além, reconheceu o descabimento de licitação para escolha de árbitros de instituição arbitral. Apesar de a doutrina já ter se posicionado nesse sentido anteriormente,3 não se conheciam decisões judiciais a respeito. A sentença esclareceu que “[t]rata-se de hipótese específica em que há necessidade de profissionais ou empresas de notória especialização, conforme autorizado pelo artigo 25, da lei 8.666/93”.4
Nesse cenário, com a procedência da ação, o Juízo declarou válidos e determinou o aproveitamento de todos os atos praticados no procedimento arbitral já instaurado perante a CAMARB, que foi mantida como instituição arbitral competente no compromisso arbitral constante da sentença.
6. Conclusão
As decisões proferidas pelo Judiciário no âmbito do conflito processual existente entre a Águas de Itu e o Município de Itu contemplam e esclarecem diversas questões atinentes à arbitragem envolvendo entes da Administração Pública – algumas delas já pacificadas pela doutrina e pela jurisprudência e até mesmo refletidas nas alterações da lei 9.307/96 trazidas pela reforma legislativa em 2015 (com o advento da lei 13.129/15). Merecem destaque o reconhecimento da conveniência da arbitragem institucional para a resolução de conflitos envolvendo a Administração Pública e o reconhecimento da escolha de árbitros e de instituição arbitral como atos alheios à necessidade de licitação.
A decisão constituirá precedente relevante e inovador no que se refere à afirmação da competência judicial para a definição de instituição arbitral no caso de cláusulas arbitrais vazias envolvendo a Administração Pública. Tanto o juízo singular como o Tribunal de Justiça reafirmaram a diretriz de que a arbitragem em que a Administração Pública é parte deve ser preferencialmente institucional. A decisão de mérito afastou qualquer dúvida sobre a possibilidade de indicação da instituição responsável independentemente de licitação ou qualquer outro procedimento específico, inclusive como parte da competência atribuída ao Poder Judiciário pelo art. 7ª da lei 9.307/16.
_______________
1 Eis seu teor: “16. SOLUÇÃO DE DIVERGÊNCIAS (...) 16.3. Arbitragem 16.3.1. Caso qualquer das partes não aceite o parecer da Comissão de Peritos, poderá no prazo de 30 (trinta) dias úteis, contados a partir da data em que o referido parecer lhe tenha sido comunicado, solicitar que a questão objeto de divergência seja atribuída a um Tribunal Arbitral, de acordo com a Lei 9.307/96 e desde que o assunto seja compatível e que não haja infração à Lei Complementar 101/00 (Lei de Responsabilidade Fiscal). 16.3.2. O Tribunal é competente para emitir decisão sobre as questões que lhe foram submetidas, aplicando, interpretando ou integrando as normas que regem o contrato e a legislação pertinente. 16.3.3. As decisões do Tribunal deverão ser proferidas num prazo não superior a 6 (seis) meses da data de sua constituição, cabendo as despesas e custas do processo arbitral à parte que o solicitou”.
2 “Art. 7º Existindo cláusula compromissória e havendo resistência quanto à instituição da arbitragem, poderá a parte interessada requerer a citação da outra parte para comparecer em juízo a fim de lavrar-se o compromisso, designando o juiz audiência especial para tal fim. § 1º O autor indicará, com precisão, o objeto da arbitragem, instruindo o pedido com o documento que contiver a cláusula compromissória. § 2º Comparecendo as partes à audiência, o juiz tentará, previamente, a conciliação acerca do litígio. Não obtendo sucesso, tentará o juiz conduzir as partes à celebração, de comum acordo, do compromisso arbitral. § 3º Não concordando as partes sobre os termos do compromisso, decidirá o juiz, após ouvir o réu, sobre seu conteúdo, na própria audiência ou no prazo de dez dias, respeitadas as disposições da cláusula compromissória e atendendo ao disposto nos arts. 10 e 21, § 2º, desta Lei. § 4º Se a cláusula compromissória nada dispuser sobre a nomeação de árbitros, caberá ao juiz, ouvidas as partes, estatuir a respeito, podendo nomear árbitro único para a solução do litígio. § 5º A ausência do autor, sem justo motivo, à audiência designada para a lavratura do compromisso arbitral, importará a extinção do processo sem julgamento de mérito. § 6º Não comparecendo o réu à audiência, caberá ao juiz, ouvido o autor, estatuir a respeito do conteúdo do compromisso, nomeando árbitro único. § 7º A sentença que julgar procedente o pedido valerá como compromisso arbitral”.
3 JUSTEN FILHO, Marçal. “Administração Pública e Arbitragem: o vínculo com a câmara e os árbitros” In: Revista Brasileira da Advocacia – RBA. Vol. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, abril-junho 2016. pp. 103-150. No mesmo sentido, embora aludindo a inexigibilidade de licitação, GARCIA, Flávio Amaral. A escolha dos árbitros e das Câmaras Arbitrais: licitar ou não?. Ano 2016, nº 150. Disponível em: clique aqui; SOARES, Carlos Henrique; LIMA, Daniela Silva; TOLEDO, Luciana Aguiar S. Furtado de. (DES)NECESSIDADE DE PROCESSO LICITATÓRIO PARA ESCOLHA DE CÂMARA ARBITRAL. In: Revista CEJ / Conselho da Justiça Federal (CJF), Brasília, Ano XVI, n. 58, p. 44-49, set./dez. 2012. Disponível em: clique aqui; e OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Inexigibilidade de licitação na escolha do árbitro ou instituição arbitral nas contratações públicas. Ano 2016, no 285, Disponível em: clique aqui.
4 Embora a sentença tenha referido o regime da inexigibilidade de licitação, a situação seria mais propriamente descrita como de descabimento ou inaplicabilidade da licitação, uma vez que nem mesmo é possível identificar um contrato administrativo que pudesse ser objeto de uma licitação inexigível. É a lição de Marçal Justen Filho: “A escolha do árbitro e da câmara de arbitragem envolve um ato administrativo unilateral, que é praticado no exercício de competência discricionária. Nada impede que essa escolha, inclusive da instituição arbitral, seja realizada consensualmente com o particular. Isso não implica o surgimento de um contrato, na acepção da Lei nº 8.666”. JUSTEN FILHO, Marçal. “Administração Pública e Arbitragem: o vínculo com a câmara e os árbitros” In: Revista Brasileira da Advocacia – RBA. Vol. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, abril-junho 2016. pp. 103-150.
_______________
*Cesar Pereira é doutor e mestre em Direito do Estado (PUC/SP). Visiting Scholar da Columbia University, University of Nottingham e European University Institute. FCIArb. Sócio de Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados (São Paulo).
*Eduardo Talamini é livre-docente, doutor e mestre em Direito Processual (USP). Professor de Processo Civil e de Arbitragem da UFPR. Sócio de Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados (Curitiba).
*Luísa Quintão é bacharel em Direito (PUC/SP). Associada de Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados (São Paulo).