Um dos motivos ensejadores da alteração do diploma processual civil foi combater os efeitos deletérios da falta de efetividade processual como um todo, tanto que se estabeleceram vários mecanismos técnicos como o princípio da primazia das soluções de mérito (Daniel Amorin Assumpção Neves, Comentários ao novo CPC), a busca por um tempo razoável de duração do processo (antes já prevista no Pacto de San José e na própria CF, mas agora previsto em lei federal possibilitando a antecipação de tal discussão no âmbito do STJ pela via do recurso especial) e a própria alteração do regime jurídico das fraudes à execução, como modo de se buscar diminuir o impacto negativo causado pelo grande número de execuções não satisfeitas em curso nos Tribunais do país.
Ou seja, tem-se situação em que se revela como evidente que o legislador cível tem-se preocupado com a questão da fraude à execução, visando diminuir os efeitos de sua incidência na prática cotidiana – se a jurisprudência se firmar se tornará cada vez menos compensador que se busque evitar o pagamento de dívidas – um dos fins sociais, aliás, a que a lei se destina, como se analisará linhas abaixo.
Ora, como é cediço, o vocábulo fraude, no âmbito do que se convenciona chamar jurisdição cível, hipótese de que se busca tratar no presente trabalho, pode ter várias acepções, sendo as mais frequentes a fraude contra credores, a fraude à execução e a fraude à lei imperativa.
Aliás, abre-se desde logo um parêntese para trazer á baila discussão elegante apontada por Paulo José Iasz De Morais e Domenico Donnangelo Filho no sentido de que não existe fraude penal e fraude civil – a fraude é uma só. Veja-se:
Questão tormentosa é a de distinguir o estelionato do mero ilícito civil impunível. Vários critérios foram sugeridos para se fazer a distinção entre a fraude civil e a fraude penal. Afirma-se que existe esta apenas quando há propósito ab initio do agente de não prestar o equivalente econômico; há um dano social e não puramente individual; há a violação do mínimo ético; há um perigo social, mediato ou indireto; há uma violação de ordem jurídica que, pela sua intensidade ou gravidade, tem como única sanção adequada a pena; há fraude capaz de iludir o diligente pai de família; há evidente perversidade e impostura; há uma mise en scene para iludir; há uma impossibilidade de se reparar o dano; há o intuito de um lucro indevido e não do lucro do negócio, etc. Afirma Hungria que, “tirante a hipótese de ardil grosseiro, a que a vítima se tenha rendido por indesculpável inadvertência ou omissão de sua habitual prudência, o inadimplemento preordenado ou preconcebido é talvez o menos incerto dos sinais orientadores na fixação de uma linha divisória nesse terreno contestado da fraude”. Na verdade, não há diferença de natureza, ontológica, entre a fraude civil e a penal. Não há fraude penal e fraude civil; a fraude é uma só. Pretendida distinção sobre o assunto é supérflua, arbitrária e fonte de danosíssimas confusões. (JTACrSP 58/210; RT 423/401) Da leitura da definição acima, o autor se rende à conclusão de que não existe fraude civil ou fraude penal, sendo ela uma só. Ora, é razoável afirmar que a distinção entre o ilícito civil o ilícito penal está em alguns elementos citados pelo autor, a saber: a) o propósito do agente de não prestar o equivalente econômico; b) violação do mínimo ético; c) um dano social e não puramente individual; d) perigo social, mediato e indireto; e) violação da ordem jurídica; f) fraude capaz de iludir; g) perversidade e impostura; etc. In (Clique aqui).
No entanto, do ponto de vista doutrinário, e mormente porque, não obstante a conduta de fraudar seja uma só, seja conveniente continuar apontando no sentido de que existem diferenças entre os vários regimes jurídicos possíveis. Assim, no âmbito do processo civil, as três formas mais relevantes são, como apontado acima, a fraude à execução, a fraude contra credores e a fraude à lei imperativa.
Como sabido, a fraude à lei imperativa (ou seja, norma cogente) implica em situação de nulidade absoluta (artigo 166, inciso VII CC), a fraude contra credores pode implicar em nulidade (se feita contra consumidor em relação de consumo) ou anulação (pela via da ação pauliana nas relações civis não consumeristas, ou seja, nos demais casos – pressupondo-se a necessidade de comprovação do consilium fraudis e do eventus damni) e, por fim, a hipótese da fraude à execução.
Nesse caso, o defeito do ato jurídico, não se encontra nem no plano da existência (suporte fático ou fattispecie, como apontado por Giuseppe Lumia) nem no plano da validade (nulidade ou anulação) ao contrário, o defeito se situa no âmbito da eficácia – apontando a doutrina que se cuidaria de situação de ineficácia parcial, ou seja, o defeito somente aproveitaria o credor naquela execução em concreto – em linhas gerais, se uma alienação ocorre no curso de uma ação executiva, sem que haja bens suficientes para a garantia da execução, tal alienação simplesmente não produzirá efeitos em relação ao credor daquela execução (STJ, REsp 1.141.990).
A questão da fraude á execução já era disciplinada nos termos do advento da norma contida no artigo 593 e seus consectários do vetusto CPC/73, agora ganha contornos diferenciados no artigo 792 e seus consectários do novo diploma processual civil.
No contexto da legislação revogada, inclusive, sobreveio dita súmula 375/STJ que estabelecia uma presunção relativa de boa-fé do adquirente quando não havia restrição na matrícula – ocorre que o novo CPC no seu artigo 792, inciso IV, amplia sobremaneira o conceito de fraude à execução (ato, aliás, atentatório à dignidade da Justiça nos termos do artigo 774, inciso I do mesmo diploma legal – sem prejuízo de sanções penais nos termos do artigo 179 CP – mas não se venha pretender dar vistas ao MP com fincas no artigo 40 CPP, porque nos termos do parágrafo único do artigo 179 CP somente se procede mediante queixa).
Ora, os três primeiros incisos do artigo 792 CPC dão a impressão de que se teria tentado preservar a orientação da súmula 375/STJ (esses três primeiros incisos remetem o leitor à necessidade de registro prévio de algum modo), no entanto, a hipótese descrita no inciso IV do mencionado consectário legal, altera tal entendimento.
Observe-se que o inciso IV do artigo 792 CPC considera a ocorrência de fraude à execução quando já tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência.
Ou seja, o entendimento da súmula 375/STJ se encontrava obsoleto diante da jurisprudência mais recente dos Tribunais pátrios e agora resta afastada pelo artigo 792, inciso IV novo CPC (ora, o que dava substrato para a súmula em questão seria a conversão da MP 656/04 na lei 13.097/15 mas essa lei foi revogada pelo novo CPC – como apontava Carlos Maximiano – lei posterior revoga a anterior – artigo 2º, inciso I LINDB, diga-se de passagem preservando-se a orientação do direito quiritário romano – jus quiritum – no sentido de que lex posterior abrogat priorem legem).
Sobre a necessidade de nova avaliação dos prelados da súmula 375/STJ diante da vigência do novo CPC, continua-se a apontar o entendimento da doutrina:
“Como se vê, diante do NCPC o entendimento jurisprudencial que impõe ao exequente provar a má-fé do adquirente deve necessariamente ser alterado. Há, por força de lei, inversão no ônus desta prova, cabendo ao terceiro adquirente fazer prova de sua boa-fé e não o contrário. A súmula 375 do STJ deve ser, na sua segunda parte, revogada, só se justificando sua manutenção quanto à exigência da citação.” (Teresa Arruda Alvim WAMBIER, Maria Lúcia Lins CONCEIÇÃO, Leonardo Ferres da Silva RIBEIRO e Rogerio Licastro Torres de MELLO Primeiros comentários ao novo código de processo civil, São Paulo: RT, p. 1146-1147).
Sobre a questão, de se destacar julgado de 17 de novembro de 2.016 do E. TJSP (AI 2161835-07.2016.8.26.0000, Des. Ruy Coppola), em interpretação de tal dispositivo do novo CPC apontando no sentido de que para caracterizar a fraude à execução bastariam dois requisitos: citação do alienante e ação capaz de reduzir o devedor à insolvência, não se aplicando a súmula 375/STJ. No mesmo sentido (TJSP – AI 2102787-20.2016.8.26.0000, Rel. Des. Vito Guglielmi, j. 27.10.2.016).
Em linguagem ainda mais clara e candente, o quanto apontado pelo Des. Sérgio Shimura, no julgamento do AI 2020018-52.2016.8.26.0000, no sentido exato de que a súmula 375/STJ não seria vinculante (de fato, não foi lançada em sede de julgamento de recurso repetitivo) e a lei nova (artigo 792, inciso IV CPC) não exige o conluio fraudulento, bastando que se aliene o bem, reduzindo-se à insolvência, após à citação – ainda mais – aponta que existe máxima de experiência (e se invoca aqui o disposto no artigo 375 CPC para dar total razão ao mui digno Magistrado) no sentido de que todo interessado na aquisição de um bem imóvel deve pesquisar junto ao distribuidor cível da situação do imóvel e do domicilio do devedor para saber de pendências e demandas.
E há formas refinadas de se buscar a prática de atos de fraude à execução. Pense se, por exemplo, no caso de pessoa que tenha imóvel arrematado em processo, e o proprietário anterior nesse interim, antes do registro da penhora ou da arrematação comece a desmembrar a matrícula em outros imóveis para induzir terceiros em erro (conduta de evidente estelionato).
Isso, aliás, é uma hipótese que, lamentavelmente, vem se tornando frequente, e que eu, em vinte e quatro anos de magistério superior, tenho constatado ser dúvida cada vez mais comum entre meus alunos – ou seja, tem acontecido em escala razoável – como existem julgados sobre o tema, do que se tratará linhas abaixo – a situação, de fato, tem se tornado comum.
Ora, sem optar pelo acionamento da tutela criminal, que não obstante até possa levar a alguma consequência mais séria para o fraudador, não implicará em impedimento para o seu ato tresloucado, deve o interessado buscar algumas providências que poderão ser tomadas no âmbito do juízo cível e, até mesmo, dependendo da fase em que se encontrar a questão, em âmbito correicional.
Como sabido, a fraude à execução – fraude ocorrida após a citação em processo executivo – resta passível de dedução por simples petição no bojo dos próprios autos do processo executivo (não há necessidade de dedução de ação pauliana para tanto – isso somente se dá em casos como fraude contra credores – na fraude contra lei imperativa se move ação anulatória de ato jurídico).
No caso, por exemplo, de um arrematante como apontado acima, que se depara com tentativa de desmembramento ou alteração de matrícula de imóvel lançado em leilão judicial, poderá o mesmo, justificando seu interesse ingressar como terceiro interessado – intervenção anômala da terceiro no processo executivo – como recomenda Daniel Assumpção Amorin Neves em seu Manual de Processo Civil, Ed. 2.016.
Mas tem-se, ainda, solução mais criativa que seria a acesso da via registral – utilizar o notário pelo receio de ser ele acionado regressivamente, em caso de dano.
Assim, seria possível atravessar no curso do processo administrativo de desmembramento que corre perante a serventia extrajudicial (Cartório do Registro de Imóveis) com um pedido de cancelamento do novo registro, e, não sendo acolhido, suscitar dúvida inversa perante o Juiz Corregedor da Serventia Registral com fundamento na Lei dos Registros Públicos (artigo 198 e seguintes úteis da lei 6.015/73 – a dúvida inversa tem inclusive base constitucional no exercício do direito de petição enquanto fundamental right – artigo 5º, inciso XXXIV CF).
Aliás, uma decorrência da interpretação conjunta do princípio da dignidade da pessoa humana com a solidariedade social (artigos 1º, inciso III e 3º, inciso V CF) seria dar às normas que versam sobre direitos fundamentais a interpretação que lhes favoreça a maior efetividade possível (Hannah Arendt em sua clássica obra “As origens do Totalitarismo” aponta no sentido de que quanto mais se reduzir garantias constitucionais mais se afasta do Estado Democrático avançando-se rumo ao Estado Totalitário).
Não por outra razão, autores como Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias (Direito Civil, Teoria Geral, Ed. Juspodium) apontam no sentido de que se deva buscar cumprir prelados de concretude – ou seja, isso é a reinvenção do adágio latino de acordo com o qual verba cum efecta sunt accipienda – ou a lei não contém palavras e expressões inúteis – assim sempre se deve buscar conferir algum sentido concreto ao previsto nas normas jurídicas.
Assim, quando, por fatores alheios à vontade do interessado, a suscitação de dúvida for indevidamente obstada pelo oficial registrador (seja por dolo, seja por culpa ou mesmo por simples divergência interpretativa), compreende-se a possibilidade de deflagração da dúvida inversa – ou seja, perfeitamente que se acione o Juiz Corregedor dos Registros Públicos quando a fraude estiver em curso em sede de registro – isso, ademais, implica em cumprir a socialidade tão cara a autores como Miguel Reale – socialidade esta que se encontra prevista, de há muito, em nosso ordenamento jurídico, como se observa pelo advento da norma contida no artigo 5º LINDB (o juiz se orientará, na aplicação da norma, pelas exigências do bem comum e atento aos fins sociais a que a lei se destina – modernamente muito se tem falado na ideia correlata que seria o cumprimento da função social).
Assim, isso implicaria em solicitar no pedido de desmembramento que o mesmo não se faça porque há ilegalidade no ato (inclusive conduta criminal ante o apontado linhas acima, sem prejuízo da própria ilicitude civil) e se o registrador insistir no prosseguimento do procedimento se suscita a dúvida inversa – procedimento correicional perante a Corregedoria dos Registros Públicos da Comarca (se tem apontado que aí haveria competência absoluta do Corregedor para decidir a questão).
Seria outro modo de solucionar o problema. Aliás apontando nesse sentido (resolução de fraude à execução pela via da dúvida) de se destacar:
TJ-PR - Agravo de Instrumento AI 5271927 PR 0527192-7 (TJ-PR) Data de publicação:
09/09/2009 Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO - EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL - PENHORA DE IMÓVEL - PRÉVIA DECRETAÇÃO DE FRAUDE À EXECUÇÃO - DECISÃO TACITAMENTE REVOGADA PELO JUÍZO "A QUO", POSTERIORMENTE - IMPOSSIBILIDADE - AUSÊNCIA DE ELEMENTOS NOVOS - PRECLUSÃO "PRO JUDICATO" OPERADA. INEFICÁCIA DE ALIENAÇÃO FRAUDULENTA - AFETAÇÃO DA CADEIA DOMINIAL POSTERIOR ADMISSÍVEL EM PRINCÍPIO - SALVAGUARDA DA BOA-FÉ DOS ADQUIRENTES POSTERIORES - VEDAÇÃO DE RECONHECIMENTO "EX-OFFICIO" - MATÉRIA ENVOLVENDO DIREITO DISPONÍVEL - NECESSIDADE DE INTERPOSIÇÃO DE EMBARGOS DE TERCEIRO PELO INTERESSADO. CARTA PRECATÓRIA - REGISTRO DE PENHORA - ABERTURA DE NOVAS MATRÍCULAS EM VIRTUDE DE SUCESSIVAS ALIENAÇÕES - DESMEMBRAMENTO - DÚVIDA NO CUMPRIMENTO DA ORDEM SUSCITADA PELA OFICIAL REGISTRADOR - COMPETÊNCIA FUNCIONAL ABSOLUTA DO JUÍZO CORREGEDOR DO FORO EXTRAJUDICIAL - INCOMPETÊNCIA MANIFESTA DO JUÍZO DA EXECUÇÃO - DISPOSIÇÃO PERTINENTE À ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA - NULIDADE DO PRONUNCIAMENTO. AGRAVO CONHECIDO COM ANAULAÇÃO "EX OFFICIO" DA DECISÃO AGRAVADA. 1. Por força da preclusão "pro judicato", é defeso ao juízo, à míngua de novos elementos, reapreciar questão pertinente a direito disponível. 2. A desvinculação do imóvel penhorado da execução, no afã de salvaguardar eventual terceiro de boa-fé, também por envolver direito disponível, não pode ser determinada "ex-officio" pelo magistrado, sendo necessária a propositura de ação própria pelo terceiro adquirente para discutir a boa-fé, bem como o limite subjetivo da decisão que decreta fraude à execução. 3. De acordo com as disposições do Código de Normas, compete ao Juiz Corregedor do Foro Extrajudicial dirimir dúvida decorrente do procedimento de registro de imóveis.
A vantagem da utilização do procedimento de dúvida, em casos como tal, é já alertar o notário para o fato, prevenindo sua responsabilidade em caso de ocorrência de prejuízos decorrentes do desmembramento (quando se aciona o mecanismo da fraude à execução o Juiz para prevenir o contraditório ouvirá a outra parte, haverá publicação, aguardar prazos que não tem fim etc – nisso o procedimento de desmembramento vai fluindo com aptidão de causar prejuízo aos interesses do credor ou de um arrematante – se se vai diretamente à fonte – o Cartório fica civilmente responsável pelo que acontecer – muito provavelmente o registrador, ele próprio, suscitará a dúvida não se chegando à necessidade da dúvida inversa).
Mais ainda tanto a Lei dos Registros Públicos, como o próprio Código Civil fixam o prazo de noventa dias para o julgamento das dúvidas (artigo 1.496) sob pena de perda da prenotação anterior (nos termos dos artigos 182 e 186 da LRP se poderia perder a preferência da prenotação – embora existam autores que indiquem como fundamento a súmula 106/STJ para justificar que eventual demora da máquina judiciária não poderia prejudicar a parte – em analogia no âmbito administrativo do direito registrário – mas, ainda assim haveria a vantagem da vinculação da responsabilidade civil do registrador).
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*Júlio César Ballerini Silva é Juíz de Direito, Professor Universitário, mestre em Direito Processual Civil e especialista em Direito Provado e Processo Civil.