O Tribunal Superior Eleitoral concluiu recentemente o julgamento do recurso especial eleitoral 45-03.2016.6.26.0166, fixando de vez, em caso paradigmático, sob patrocínio de nosso escritório, a interpretação de que as contas municipais de convênios firmados entre o Poder Público e entidades privadas (tratadas como "contas de gestão") devem ser julgadas pela Câmara Municipal para que gere os efeitos da inelegibilidade previstos na LC 64/90.
A controvérsia surgida da interpretação do art. 71 da Constituição Federal versou sobre o controle externo das contas de prefeito, especialmente sobre a competência para julgamento das contas de convênios firmados entre entes privados e a Prefeitura, com verbas exclusivamente municipais, onde a atuação do Prefeito se caracteriza como ato de gestão.
Discutiu-se nessa demanda a hipótese de que a reprovação dessas contas de gestão pelo Tribunal de Contas – e não pela Câmara Municipal – seria suficiente para eventual reconhecimento da inelegibilidade do prefeito responsável, por força da alínea "g", do inciso I, do artigo 1º, da LC 64/90.
Isso porque a chamada "Lei da Ficha Limpa" (LC 135/10), que alterou a redação original da alínea "g" da Lei de Inelegibilidades, incluiu como hipótese de inelegibilidade a reprovação de contas, pelos Tribunais de Contas, de mandatários que ajam como ordenadores de despesas1.
Por outro lado, estabelece a CF, no seu artigo 31, a competência exclusiva do Poder Legislativo Municipal para fiscalizar e julgar as contas do Poder Executivo Municipal, ainda que com o auxílio dos Tribunais de Contas.
Malgrado esta disposição constitucional, os Tribunais de Contas país afora elaboraram e enviaram aos Tribunais Eleitorais relação de prefeitos cujas contas de gestão haviam sido rejeitadas apenas por decisão daquelas Cortes, sem o crivo dos Poderes Legislativos Municipais.
Isso causou extrema insegurança jurídica às vésperas dos pleitos municipais, com uma plêiade de candidatos sob "suspeita" de inelegibilidade, que gerou um aumento significativo da judicialização das eleições municipais com inúmeras impugnações de registro fundamentadas nestas informações administrativas equivocadas.
A compreensão deste cenário caótico passa por um necessário apanhado histórico sobre o tema, a revelar que a sua discussão perante a Corte Eleitoral era necessária como garantia de segurança jurídica aos jurisdicionados.
Em 1998 o TSE proclamou que a competência para julgamento de contas de gestão dos prefeitos era exclusiva da Câmara Municipal, alterando anterior compreensão de que o julgamento do Tribunal de Contas seria suficiente para a incidência da causa de inelegibilidade da referida alínea, firmado oito anos antes em acórdão da lavra do min. Pedro Rocha.
Em 2014, entretanto, após o advento da LC 135/10, por maioria de votos o TSE passou a fazer nova leitura da referida alínea "g" e voltou a entender que a competência para o julgamento das contas de gestão era dos Tribunais de Contas, inclusive para fins de inelegibilidade.
Em nosso entender, essa nova leitura equivocou-se ao divorciar-se da matriz constitucional acima referida, consubstanciada na regra do art. 31, que estabeleceu a competência exclusiva do Poder Legislativo para julgamento das contas do Poder Executivo, ainda que com o auxílio da Corte Administrativa de Contas.
Diante desse quadro, a matéria foi levada ao STF que apenas às vésperas do prazo para o registro de candidaturas do último pleito se pronunciou sobre o tema e, em decisão proferida em repercussão geral, reafirmou sua própria jurisprudência no sentido de que a competência para julgamento destas contas de gestão de chefes do Poder Executivo, assim como das contas de governo, é exclusiva do Poder Legislativo e não dos Tribunais de Contas.
Mais que isso: especificamente para os fins da inelegibilidade prevista no art. 1º, inc. I, alínea "g", da LC 64/90, o Supremo se pronunciou no sentido de que as contas de gestão são de competência exclusiva do Poder Legislativo, razão pela qual as decisões dos Tribunais de Contas que julgam atos dessa natureza não têm o condão de gerar a inelegibilidade prevista na Lei Complementar de Regência Eleitoral.
É o que ficou assentado na sessão de julgamento de 10.08.2016 em que a maioria do plenário do E. STF, no julgamento do Recurso Extraordinário 848.826, decidiu o seguinte a respeito do tema:
"O Tribunal, por maioria, apreciando o tema 835 da repercussão geral, deu provimento ao recurso extraordinário, ao entendimento de que, para os fins do art. 1º, inciso I, alínea "g", da Lei Complementar 64/90, a apreciação das contas dos prefeitos, tanto as de governo quanto as de gestão, será feita pelas Câmaras municipais com o auxílio dos Tribunais de Contas competentes, cujo parecer prévio somente deixará de prevalecer por decisão de 2/3 dos vereadores [...]"
A despeito disso, entretanto, o debate prosseguiu perante as Cortes Eleitorais, porquanto a decisão da Suprema Corte não estabelecera a necessária diferenciação entre a gestão de recursos próprios do município (sindicadas pelas Câmaras Municipais) daqueles recursos que são repassados aos Municípios pelo Estado ou União, que são sindicadas apenas pelas Cortes de Contas dessas esferas político administrativas.
Foi então, nesta recente decisão do TSE, em Acórdão no RespE 45-03, relatado pelo do min. Henrique Neves, que a matéria foi pacificada e perfeitamente ementada conforme abaixo se transcreve:
"ELEIÇÕES 2016. REGISTRO DE CANDIDATO. DEFERIMENTO. PREFEITO. REJEIÇÃO DE CONTAS.
[...]
3. Compete ao Tribunal de Contas da União fiscalizar e julgar as prestações de contas de convênio relativas a repasses de recursos federais feitos aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios (CF, art. 71, VI).
4. Compete aos tribunais de contas estaduais fiscalizar e julgar as prestações de contas de convênio relativas a repasses de recursos estaduais feitos aos municípios.
5. A hipótese dos autos revela análise de convênios firmados apenas no âmbito da municipalidade, sem envolver outros entes da Federação, com repasse apenas de recursos municipais a entidades privadas. Situação que se assemelha a atos de gestão do prefeito municipal, cujo julgamento, por força do entendimento do Supremo Tribunal Federal, compete à câmara de vereadores. Ressalva do entendimento do relator. [...]"
Esta decisão, agora unânime, mostra não só o acatamento do TSE no REspE 45-03 à orientação fixada pelo E. Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário 848.826, como disciplina com clareza a competência exclusiva das Câmaras Municipais para julgar quaisquer das contas dos Chefes de Executivo Municipais, à exceção dos convênios em que o chefe do executivo tenha gerido recursos advindos de outros entes federativos, de modo que para os efeitos da causa de inelegibilidade acima descrita, acolhe-se que apenas e tão somente a decisão da Casa Legislativa que tem o condão de fazer incidir esta causa de inelegibilidade.
Resta, porém, em casos de contas de gestão de verbas municipais, estabelecer um rito de possibilite ultimar o julgamento respectivo. Uma vez rejeitadas pelas Cortes de Contas, não podem elas ficar sem um pronunciamento da única autoridade constitucionalmente competente, o Poder Legislativo Municipal.
Assim é que se propõe que as Cortes de Contas estabeleçam para estas contas de gestão o mesmo rito que já vigora para as contas de Governo: esgotada a sua competência, devem emitir um parecer que será examinado e julgado pelas Câmaras Municipais nos termos do § 2º do art. 31 da CF.
Do ponto de vista da lógica processual, nos parece conveniente que esse parecer das contas de gestão seja reunido ao parecer que analisa as contas de governo para julgamento conjunto pela Câmara Municipal, mas essa ordem pode ser fixada de acordo com a melhor conveniência para a análise do tema.
O essencial é que eventual julgamento destas contas de gestão não se esgote no âmbito das Cortes de Contas e sejam sempre analisadas pela autoridade constitucional competente que é o Poder Legislativo Municipal.
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1 "Art. 1º São Inelegíveis:
I – para qualquer cargo:
[...]
g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição;" (g.n.)
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*Eduardo Miguel da Silva Carvalho é sócio do escritório Malheiros, Penteado, Toledo e Almeida Prado - Advogados.