Migalhas de Peso

Um jurista no mundo moeda e da política monetária (Jurista sem juros)

A moeda está mudando de natureza e não se sabe que cara terá daqui a algum tempo e quem poderá garantir suas três funções.

13/3/2017

I) A MOEDA

Não tem semana em que não sejamos assombrados com notícias sobre a eventual elevação da taxa de juros nos USA, o patamar da inflação brasileira, a taxa do dólar, a política monetária, a taxa de desemprego, a atuação do BC do Brasil e por aí afora. Tem mais fantasmas desse tipo na nossa vizinhança do que em castelo britânico da Idade Média, onde os mortos se lamentam enquanto arrastam as suas correntes.

Que implicações essas noções trazem para o mundo do direito e o que nós, pobres advogados podemos fazer com elas em favor dos nossos clientes? Afinal de contas, um passo errado nesse campo em um contrato pode levar o cliente para uma falência ou para uma recuperação de empresas e nós ficarmos desempregados.

Eu tenho tentado compreender um pouco desse mundo com o uso dos meus óculos míopes de jurista, pois a ciência econômica no meu tempo de bacharelado era matéria que apenas resvalava (quando resvalava) pelos currículos do direito e nós não lhe dávamos quase atenção. Isto porque ela exigia mexer com números e gráficos e, na verdade, muitos de nós havíamos entrado para o curso jurídico porque não gostávamos de números (fora os do nosso então parco salário) e não desejávamos saber de gráficos e de equações.

Eu descobri aos poucos que todo esse universo experimental começou incipientemente com a invenção da moeda. Digo experimental porque jamais concordei intuitivamente com a tal história do agente econômico racional, o parâmetro dos modelos estabelecidos pelos economistas para nos ensinar o seu metiê. Para mim, em termos de dinheiro, o homem sempre foi irracional, que o digam os estroinas que o têm jogado fora com todo o capricho e os super endividados nos cartões de crédito. E fiquei bem consolado quando ultimamente passei a ouvir falar justamente do homem econômico irracional.

Ora, o prêmio Nobel de Economia de 2002 foi dado a Vernon L. Smith e a Daniel Kahneman, fundado em estudos sobre a existência de um elemento de irracionalidade o qual interfere nas decisões dos agentes do mercado, fator compreensível dentro de uma estrutura matemática complexa que é objeto da teoria dos jogos. Nesse contexto senti-me menos burro, pois se revelava que o homo economicus não é aquele padrão de racionalidade pregada pelos economistas. Não vou chatear o leitor com dados sobre a teoria dos jogos – que, aliás, também não compreendo a fundo -, mas posso dizer que o nosso herói econômico atua de forma bastante emocional e principalmente verifica-se que muitas de suas decisões são tomadas de acordo o princípio gersoniano, segundo o qual o negócio é levar vantagem em tudo. E assim fazendo, na medida em que ele age na parte fraca da cadeia de informações assimétricas, ele sempre se dá mal. Mas, ainda que suas informações fossem razoáveis ou até mesmo boas, o universo econômico muda tão radicalmente nos tempos atuais, podendo se dizer que passou a ser de longo prazo um contrato de trinta dias em certas áreas da atividade econômica. Mais uma coisa, a tão propalada racionalidade econômica não explica o estouro da boiada ou as corridas aos bancos quando crises setoriais acontecem ou mesmo quando apenas circulam pelo mercado boatos sobre crises. Pode ser racional o investidor que sai da aplicação na primeira fila da manada, mas da segunda fila para a frente o prejuízo se manifesta e somente aumenta até a última.

Voltemos à moeda. Muito se fala de sua tríplice função, conforme a sua evolução histórica: instrumento de troca, meio de pagamento e reserva de valor.

Todo mundo conhece a historinha da troca direta em um passado remoto, quando o José tinha galinhas sobrando e, cansado de canja, permutava algumas penosas com o Pedro, que tinha leite sobrando de suas vacas e estava enjoado da mamadeira. Multiplique isto por uma boa quantidade e diversidade de produtos excedentes e junte todo mundo em um só lugar, obedecidas algumas regras básicas, e eis que surge ali um mercado. Que o diga Natalino Irti. Em algum momento um daqueles produtos passou a servir como um meio intermediário para que José e Pedro trocassem suas galinhas e leite, tendo historicamente se destacado o sal em pedra para tal finalidade (daí o termo salário). Afinal de contas ele era genericamente desejado e tinha muito valor em certas regiões e, quando não usado, possuía uma qualidade de relativa durabilidade, permitindo o seu entesouramento. O sal evoluiu para outras formas de meios de pagamento até que se chegou ao tempo dos metais preciosos, especialmente o ouro e a prata e, depois disto, a sua cunhagem em moedas, que eram avaliadas pelo peso do metal de que eram feitas. Esse bem intermediário preencheu, portanto, a segunda função da moeda.

Para que algum bem possa ser considerado na terceira categoria das funções de moeda – reserva de valor – é preciso que sua relação com outros bens se mantenha estável e ela seja objeto de desejo porque não se estraga, permitindo ser guardado sem perda no seu valor para utilização em algum momento no futuro pelo seu dono. Este renuncia a um gasto presente em favor de uma despesa no futuro (isto justifica os juros, mas é outra história).

Um belo dia a moeda "coisa" é substituída pela moeda "papel", esta representativa no começo pelo correspondente em ouro depositado nos bancos autorizados a emiti-las. Era uma questão de segurança e de facilidade. A moeda vivia então a época do "padrão ouro". Mas os governantes, detentores do ouro depositado começaram a raspar os cofres dos bancos (Olá, caro D. João VI em seu retorno para Portugal, precedido de uma visita ao Banco do Brasil), e/ou a emitir mais papel do que era o montante daquele ouro, causando a desvalorização da moeda correspondente e dando nascimento à inflação. No final dessa parte da história a moeda foi desligada do seu correspondente em ouro e seu valor passou a ser fixado tão somente na confiança que a população mantém no governo emissor do papel que toma esse nome, sob pena de toda a população sair correndo atrás de alguma coisa que possa ocupar aquelas três funções. Nem que seja a moeda de outro país, como acontece com diversos países "emergentes"1 em relação ao dólar. A situação da Venezuela hoje é similar ou pior do que a da Alemanha pré Hitler, ambas caracterizadas por uma hiperinflação. Poderíamos sarcasticamente aproveitar para dizer que a história se repete, mas tão somente como farsa.

Como achar o verdadeiro valor de uma moeda (se é que existe algum) é o décimo terceiro trabalho dos doze e este Hércules não resolveu. Quem acompanha os mercados de câmbio verifica que, tomada uma moeda como parâmetro, as demais flutuam em relação a ela mais do que graveto no meio das ondas do mar, para cima e para baixo, fator que atinge a própria moeda-base que, nos últimos tempos tem sido o dólar norte-americano. Isso é um problema muito sério para quem deseja viajar para Miami e ali comprar o vestido de noiva ou o enxoval de uma criança. A mesma coisa para quem deseja gastar sua grana em Las Bregas. E não se esqueça o leitor de que a conta dos gastos do turismo brasileiro lá fora é bem salgada para as reservas brasileiras.

Extremamente importante por outro lado é o preço da moeda para os empresários, nacionais ou estrangeiros, importadores ou exportadores. Quem vende quer receber mais moeda pelos seus produtos e quem compra quer receber mais produtos pela sua moeda. E, além disso, tudo dentro de um horizonte estável, ou minimamente estável, pois a incerteza na atividade empresarial é a mãe da carestia e da estagnação.

Alguém já usou o preço do famoso sanduiche Big Mac para comparar moedas, já que ele está presente na maioria dos países, tornando os seus consumidores contumazes obesos e transportadores de altas doses de colesterol. Se um Big Mac vale uma unidade de moeda em um país e duas da mesma moeda no outro, claro que neste segundo país o sanduíche e muito mais caro e sua moeda vale metade do preço da primeira. E vice-versa. O critério não é seguro porque falta o caráter da homogeneidade na formação do preço daquele alimento, pois pode variar muito no mercado o valor dos seus componentes (carne, pão, papel, canudinho, gás, petróleo, ponto, salários, etc., etc.).

Considerado esse quadro bastante simplificado, o valor da moeda é um assunto muito importante e não é de hoje. No século passado foram inventados órgãos para cuidar da moeda – os bancos centrais – que tiveram o seu momento de auge, mas que têm sido ultimamente muito combatidos por diversos motivos, alguns deles nada confessáveis. Não sejamos ingênuos. Tem muita gente que gosta de bastante confusão no mercado da moeda porque se tal povo consegue ter acesso a informações privilegiadas ou dominar alguns mercados, ele pode ganhar muito, muito dinheiro com a desgraça alheia. Por exemplo, nem todos só perderam durante as crises de 2007/2008 e 2011 (como anteriormente também em 1929). Houve quem muito ganhou. E é sintomático que tem gente nesses dias loucos do começo do governo Trump que está pedindo uma liberação das restrições do acordo de Basileia para os bancos norte-americanos.

Se o caro leitor ainda não sabe, aquele acordo tem, entre outros objetivos, o da preservação do sistema financeiro internacional que, por sua vez, está ligado aos mercados nacionais, interconectados ao primeiro e tudo está referenciado ao valor das moedas em curso naquele sistema. Neste sentido, os bancos que fazem parte de Basileia estão amarrados a muitos limites operacionais que se tem buscado derrubar ou diminuir sensivelmente, com boa dose de má fé nessas intenções, disfarçadas de flexibilidade operacional que teria entre outros o efeito, segundo os defensores dessa abertura, de reduzir as taxas de juros e aumentar o nível do crédito. Acredite se quiser.

Para complicar a compreensão da moeda, já faz algum tempo que vivemos a era dos cartões eletrônicos de crédito e de débito, por meio dos quais fazemos pagamentos, transferências financeiras e aplicações. No fundo eles poderiam ser considerados como substitutos da moeda metálica, da moeda papel ou do cheque (cuja utilização hoje e relativamente marginal), simples facilitadores do uso daquela. Mas esses instrumentos (que podem ser chamados monetários) apresentam ao menos duas características principais: (i) permitem a criação de moeda escritural quase com a velocidade da luz; e (ii) estabelecem um sistema de desintermediação financeira, dentro do qual primeiramente os bancos são marginalizados de suas funções clássicas – até mesmo a da concessão de crédito – e os bancos centrais ficam sem o poder de fiscalização e intervenção em um importante setor do mercado financeiro.

Moeda escritural é um fenômeno econômico que está originado na rapidez com que uma moeda circula no mercado, fato do qual decorre a capacidade de sua multiplicação efetiva, gerando uma quantidade de meios de pagamento que não tem lastro de qualquer natureza. Sabe-se que os recursos depositados em bancos, mesmo à vista, é fator que permite a tais instituições emprestar valores maiores do que os recebidos dos clientes. Os mutuários, por sua vez os recebem e depositam em outros bancos que, por sua vez os emprestam a novos favorecidos e assim sucessivamente, dentro de um ciclo. Em um dado momento um real depositado em um banco se multiplicou em dez, cem, mil reais, tudo dependendo da sua velocidade de circulação em determinado mercado financeiro. E na medida em que os bancos não tenham limites operacionais para emprestar, essa alavancagem eleva o passivo daquelas inúmeras vezes. Essa ciranda pode funcionar muito bem até o momento em que algum elo da cadeia se rompe e o castelo de cartas cai por inteiro. Esse fenômeno da multiplicação indeterminada de moeda sem lastro é um dos alvos de preocupação dos bancos centrais e do acordo de Basileia. E um dos meios de controlá-lo no campo do sistema financeiro é o exercício de política monetária pelos bancos centrais.

E, para piorar a situação, por último surgiram as criptomoedas, tal como o bitcoin. E aí a confusão monetária é total, a começar do fato de que não são os Estados nacionais que as emitem, mas algumas entidades monetárias espíritas (sem corpo, sem alma, sem sede, sem identificação, de responsabilização praticamente impossível). E, além disto, tais entidades podem encarnar em alguém que entra no sistema e tem nele alguma reserva, sendo capazes os agentes novos de criarem mais criptomoedas por meio de um processo chamado mineralização, o verdadeiro sonho de qualquer alquimista.

Moedas alternativas fazem parte da história econômica. Isto já aconteceu nas pequenas cidades da Argentina dos militares; no Brasil do bilhete de ônibus e do vale-refeição; na Venezuela atual onde qualquer coisa que dure mais de uma hora pode ser considerada uma moeda, etc. O segredo do seu sucesso está no estabelecimento de uma taxa de câmbio, fazendo-se um desconto da moeda alternativa em relação à moeda oficial. Ou seja, cria-se um mercado de câmbio, que funciona dentro de determinada taxa. "Te dou dois vales refeição por um quilo de carne". Ou "tome quatro bilhetes de ônibus em troca de um pacote de macarrão".

Mas e quanto aos bitcoins, como será possível estabelecer uma taxa de câmbio entre eles e qualquer moeda real, mormente o dólar? Em primeiro lugar, quem garante que o dito proprietário dessa moeda virtual é mesmo o dono dela, ou ela não é falsificada? Se ele a mineralizou, quem sabe, não achou o famoso "ouro dos tolos", que não passa de pirita (dissulfeto de ferro)?

A grande questão posta em relação a essas moedas privadas está no fato de que, não sendo emitidas e consequentemente garantidas pelo Estado, contra quem se voltará a pretensão de pessoas prejudicadas pela sua falsidade, pelos desvios fraudulentos ou pela falência do emissor?

A moeda está mudando de natureza e não se sabe que cara terá daqui a algum tempo e quem poderá garantir suas três funções. A política monetária tem sido um instrumento para tal finalidade, entre outros. Mas este assunto fica para o próximo capítulo, em relação ao qual muitas discussões têm sido feitas pela imprensa nos últimos dias.

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1. "Emergente" é o termo politicamente correto para "terceiro mundo", formado pelo rol dos países miseráveis do planeta, ou que tenham regiões miseráveis dentro de suas fronteiras, como é o caso do Brasil, que foi apelidado de Belíndia, parte Bélgica, parte Índia.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor Sênior do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

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