Migalhas de Peso

Ética na regulação do mercado de capitais

A forma como é organizado o Colegiado e as Superintendências da CVM reduz os riscos de corrupção por parte de sua cúpula.

10/3/2017

Muito embora a corrupção não seja um produto exclusivamente brasileiro, deve-se reconhecer que ela se impregnou na sociedade brasileira de tal forma que os brasileiros já, praticamente, se acostumaram a conviver com casos em que relações espúrias e antirrepublicanas são travadas entre entes públicos e privados. Apesar de os exemplos infelizmente serem muitos, é curioso notar que ao longo da sua história, a Comissão de Valores Mobiliários – CVM conseguiu, até onde se sabe, permanecer imune a grandes escândalos de corrupção.

Instituída pela lei 6.385/76, a CVM é uma autarquia Federal vinculada ao Ministério da Fazenda e que tem por objetivo fiscalizar o funcionamento do mercado de capitais nacional. A CVM está dividida em diversas superintendências especializadas e é comandada por um Colegiado composto por 1 presidente e 4 diretores.

Como mencionado acima, não são conhecidos casos em que, por exemplo, um analista da Superintendência de Registro da CVM tenha aceitado propina em troca do registro de um IPO de uma companhia que não preenchia os requisitos regulamentares, ou em que um analista da Superintendência de Relações com Investidores Institucionais da CVM tenha aceitado suborno para garantir a concessão de autorização de funcionamento de uma gestora de recursos notadamente inapta. Da mesma forma, não há razão para desconfiar que o Colegiado tenha vendido decisões favoráveis a acusados de infringir a regulamentação a eles aplicável.

O primeiro motivo que pode justificar a atuação idônea da CVM está relacionado ao perfil dos indivíduos que tradicionalmente são indicados para ocupar cargos de comando na diretoria e na presidência da CVM. Na maior parte dos casos, esses indivíduos não são políticos, possuem formação técnica (são economistas, advogados e contadores), são egressos do mercado e, no momento da sua nomeação, já desfrutam de reputação e prestígio profissionais. Ao serem nomeados, esses indivíduos também desejam genuinamente executar um bom trabalho à frente da autarquia, na expectativa de que uma atuação técnica, consistente e de qualidade alavanque suas carreiras ao término do mandato.

Além do mais, a lei 6.385/76 prevê que o mandato dos dirigentes da CVM será de 5 anos, devendo ser renovado a cada ano um quinto dos membros do Colegiado. Essa previsão assegura a independência dos diretores e presidentes e evita que um mesmo Colegiado trabalhe junto por muito tempo, permitindo que seus membros se fiscalizem mutuamente.

Os indivíduos indicados para assumir cargos de chefia nas superintendências também são técnicos e tradicionalmente desenvolveram suas carreiras dentro da própria CVM. Portanto, esses indivíduos assumem posições gerenciais apenas após adquirirem a experiência necessária resultante de anos de trabalho.

A forma como é organizado o Colegiado e as Superintendências reduz os riscos de corrupção por parte da cúpula da CVM. E o benefício desse fato é claro: se os chefes não são corruptos, o risco de corrupção por parte de todos os funcionários a eles subordinados será muito menor.

A natureza do mercado que a CVM fiscaliza também pode justificar a atuação idônea do regulador. Para que o mercado de capitais se desenvolva, deve-se garantir a sua transparência. Companhias que recorrem à poupança popular e prestadores de serviços que atuam no mercado de capitais são obrigados a divulgar um número cada vez maior de informações a respeito das suas atividades. Em razão da transparência exigida para o funcionamento eficiente do mercado, os seus participantes e a própria CVM estão sempre mais vulneráveis a inquirições e análises por parte de acionistas, investidores, especuladores, credores, imprensa ou meros curiosos de plantão. A vulnerabilidade resultante da transparência exigida para o funcionamento do mercado de capitais potencializa os riscos da descoberta da corrupção, diminuindo os incentivos à sua prática.

A descoberta de eventuais atos de corrupção envolvendo a CVM também poderia abalar seriamente a confiança que os investidores depositam no mercado. Esse efeito seria prejudicial por si só para qualquer tipo de mercado, mas ganha contornos muito mais dramáticos e nefastos no caso do mercado de capitais, cuja existência e funcionamento dependem essencialmente da confiança dos investidores. Exemplifique-se: apesar de não existirem dúvidas de que haveria um abalo na confiança nos mercados de energia ou de telefonia móvel caso se descobrisse um esquema de corrupção envolvendo concessionárias de energia e a ANEEL ou empresas de telefonia móvel e a ANATEL, é possível afirmar que a identificação dos respectivos esquemas de corrupção não impediria as pessoas de continuarem a consumir energia ou adquirir celulares. Por outro lado, se investidores não tiverem confiança na solidez e na moralidade do mercado de capitais, há o risco destas pessoas deixarem de investir seus recursos nele e, sem recursos, as companhias – boas ou ruins – também deixarão de recorrer ao mercado de capitais para financiar suas atividades. Esse ciclo vicioso pode, em última análise, comprometer a própria existência do mercado.

Assim, é interessante perceber que no caso da CVM e do mercado de capitais, existe uma espécie de simbiose moral entre regulador e regulado. Por meio dela, o regulador disciplina o funcionamento do mercado mas, ao mesmo tempo, o próprio mercado também disciplina a atuação moral do regulador.
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 *Breno Casiuch é mestre em Direito pela Harvard Law School e advogado do escritório Chediak, Lopes da Costa, Cristofaro, Menezes Côrtes, Rennó, Aragão – Advogados.

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