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Boa-fé no Código Civil

A boa-fé não constitui um imperativo ético abstrato, mas sim uma norma que condiciona e legitima toda a experiência jurídica, desde a interpretação dos mandamentos legais e das cláusulas contratuais até as suas últimas conseqüências.

19/8/2003

Boa-fé no Código Civil

 

Prof. Miguel Reale*

 

O constante valor dado à boa-fé constitui uma das mais relevantes diferenças entre o Código Civil de 1916 e o de 2002, que o substituiu.

 

É que aquele se baseou no anteprojeto escrito por Clovis Bevilacqua, na última década do século 19, tendo esse insigne jurisconsulto se baseado, além de no Código de Napoleão e na legislação luso-brasileira anterior, nos ensinamentos da escola alemã dos pandectistas, entre os quais figuravam os elaboradores do Código Civil alemão, o BGB que entrou em vigor em 1900.

 

O pandectismo, assim denominado por seu apego às diretrizes do Direito Romano codificado pelo imperador Justiniano, se caracterizou pelo propósito de resolver as questões jurídicas de preferência mediante conceitos e categorias da própria Ciência do Direito.

 

É claro que nenhum jurista pode ser contrário à elaboração de "categorias jurídicas" destinadas à disciplina dos fatos sociais, atendendo às exigências da igualdade entre fatos da mesma espécie, mas o que é criticável é pretender que tal solução seja obtida tão-somente graças a fórmulas de natureza jurídica, sem levar em conta os fins éticos e econômicos, por aqueles também reclamados.

 

O que aqui se critica é o exclusivismo jurídico dominante na visão positivista do Direito, que se contenta com princípios e regras de caráter empírico ou factual.

 

A vida do Direito não se reduz a uma sucessão de fatos desvinculados dos valores que lhes dão sentido e significado, de cuja correlação dialética emerge a regula iuris.

 

Daí a orientação assumida pelos autores do anteprojeto do Código Civil, sistematizado e publicado em 1972, o qual, devidamente revisto, culminou no projeto de 1975, enviado ao Congresso Nacional, nele já apresentada a eticidade, cuja raiz é a boa-fé, como um dos princípios diretores que o distinguem do individualismo do código revogado de 1916.

 

O resultado da compreensão superadora da posição positivista foi a preferência dada às normas ou cláusulas abertas, ou seja, não subordinadas ao renitente propósito de um rigorismo jurídico cerrado, sem nada se deixar para a imaginação criadora dos advogados e juristas e a prudente, mas não menos instituidora, sentença dos juízes.

 

É a boa-fé o cerne em torno do qual girou a alteração de nossa Lei Civil, da qual destaco dois artigos complementares, o de n.º 113, segundo o qual "os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração", e o artigo 422, que determina: "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé."

 

Como se vê, a boa-fé não constitui um imperativo ético abstrato, mas sim uma norma que condiciona e legitima toda a experiência jurídica, desde a interpretação dos mandamentos legais e das cláusulas contratuais até as suas últimas conseqüências.

 

Daí a necessidade de ser ela analisada como conditio sine qua non da realização da justiça ao longo da aplicação dos dispositivos emanados das fontes do direito, legislativa, consuetudinária, jurisdicional e negocial.

 

Em primeiro lugar, importa registrar que a boa-fé apresenta dupla faceta, a objetiva e a subjetiva. Esta última - vigorante, v.g., em matéria de direitos reais e casamento putativo - corresponde, fundamentalmente, a uma atitude psicológica, isto é, uma decisão da vontade, denotando o convencimento individual da parte de obrar em conformidade com o direito.

 

Já a boa-fé objetiva se apresenta como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever de que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria uma pessoa honesta, proba e leal. Tal conduta impõe diretrizes ao agir no tráfico negocial, devendo-se ter em conta, como lembra Judith Martins Costa, "a consideração para com os interesses do alter, visto como membro do conjunto social que é juridicamente tutelado".

 

Desse ponto de vista, podemos afirmar que a boa-fé objetiva se qualifica como normativa de comportamento leal. A conduta, segundo a boa-fé objetiva, é assim entendida como noção sinônima de "honestidade pública".

 

Concebida desse modo, a boa-fé exige que a conduta individual ou coletiva - quer em juízo, quer fora dele - seja examinada no conjunto concreto das circunstâncias de cada caso.

 

Exige, outrossim, que a exegese das leis e dos contratos não seja feita in abstrato, mas sim in concreto. Isto é, em função de sua função social.

 

Com isto quero dizer que a adoção da boa-fé como condição matriz do comportamento humano põe a exigência de uma "hermenêutica jurídica estrutural", a qual se distingue pelo exame da totalidade das normas pertinentes a determinada matéria.

 

Nada mais incompatível com a idéia de boa-fé do que a interpretação atômica das regras jurídicas, ou seja, destacadas de seu contexto. Com o advento, em suma, do pressuposto geral da boa-fé na estrutura do ordenamento jurídico, adquire maior força e alcance o antigo ensinamento de Portalis de que as disposições legais devem ser interpretadas umas pelas outras.

 

O que se impõe, em verdade, no Direito, é captar a realidade factual por inteiro, o que deve corresponder ao complexo normativo em vigor, tanto o estabelecido pelo legislador como o emergente do encontro das vontades dos contratantes.

 

É que está em jogo o princípio de confiança nos elaboradores das leis e das avenças, e de confiança no firme propósito de seus destinatários no sentido de adimplir, sem tergiversações e delongas, aquilo que foi promulgado ou pactuado.

 

Donde se conclui que, quando o artigo 104 dispõe sobre a validade do negócio jurídico, referindo-se ao objeto lícito, neste está implícita a sua configuração conforme à boa-fé, devendo ser declarado ilícito todo ou parte do objeto que com ela conflite.

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* Jurista, filósofo, membro da Academia Brasileira de Letras, sócio do escritório Reale Advogados Associados.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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