O Código de Processo Penal, já vetusto, com seu cansado olhar, corroído pelo tempo, sem qualquer remodelagem que o faça recobrar as forças, estabeleceu de forma categórica, no § 3º do artigo 5º: "Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação pública, poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade policial, e esta, verificada a procedência, mandará instaurar inquérito".
Talvez seja esta a legitimidade mais abrangente que exista no estatuto processual, vez que o legislador, de uma forma genérica, com a intenção de autorizar qualquer um do povo, sem nenhuma restrição, permite ao cidadão levar ao conhecimento da autoridade policial a ocorrência de fato a ser perquirido mediante ação penal pública incondicionada. Para tanto, basta que compareça à presença da autoridade para ser ouvido ou faça a comunicação por escrito, em ambas as opções, lançando sua assinatura. Se a notitia criminis tiver fundamentação persecutória, o procedimento policial será instaurado.
Verifica-se, sem muita ginástica interpretativa, que o interesse do legislador, além da delatio criminis relatando a ocorrência de ilícito de natureza pública, que não tenha chegado ao conhecimento da autoridade policial, era obter o nome e a qualificação de quem a ofertava, justamente para se ter a garantia de sua procedência.
Ocorre que o Direito, em razão da necessidade de atender os reclamos sociais mais prementes, vai encartando em seus quadros novas figuras, que vão se firmando e conquistando espaços, pela própria interpretação jurisprudencial, exercício necessário para a prática do suum cuique tribuere. O legislador, como é sabido, tem os olhos voltados para a situação de momento, sem qualquer chance de previsibilidade a respeito do futuro.
A denúncia anônima, logo que surgiu, não ganhou ressonância jurídica, vez que padecia de credibilidade e qualquer pessoa, sem se identificar, poderia trazer para o âmbito investigativo notícia de fato não verdadeiro. Aliás, o fato relatado nem se submetia ao crivo de viabilidade da autoridade policial. Tanto é que o Superior Tribunal de Justiça, na chamada Operação Castelo de Areia, que representava à época a maior investigação criminal desenvolvida pela Polícia Federal, envolvendo empresários e políticos em fraudes em obras públicas, cuja denúncia foi formulada para perquirir os crimes de lavagem de dinheiro, evasão de divisas, doações ilícitas a campanhas políticas e pagamentos de propinas a agentes públicos, entendeu que as interceptações telefônicas realizadas e autorizadas foram contaminadas por provas obtidas por meio ilícito, vez que tiveram como base e sustentação a denúncia anônima. Segundo a decisão do órgão colegiado, a denúncia anônima, pela sua fragilidade e inconsistência, não carrega força suficiente para determinar restrições aos direitos fundamentais dos envolvidos.
E, recentemente, a denúncia anônima, ganhou interpretação diferenciada dada pela 4ª seção do TRF, da 4ª região, competente para julgar os recursos interpostos nos processos da Operação Lava Jato, editando a súmula nº 128, in verbis: “Válida a instauração de procedimento investigatório com base em denúncia anônima, quando amparada por outro indício”.
O CPP, quando estabelece no artigo 312 as condições para a decretação da prisão preventiva, dentre elas refere-se aos “indícios suficientes de autoria ou de participação”. A mesma expressão é utilizada no artigo 413 para proferir a sentença de pronúncia. Nestas duas hipóteses, há um plus diferenciador, que transforma os indícios em verdadeiras provas, com a segurança para decretar até mesmo ordem de prisão.
Indício, isoladamente, vem a ser o veio condutor que circunda o fato principal fazendo ver que há uma relação entre ambos. Tourinho, de forma precisa, define que "é o fato que está em relação tão íntima com o outro que a autoridade o interliga por uma conclusão muito natural".1
Desta forma, com a nova interpretação, torna-se viável a denúncia anônima, desde que venha acompanhada de qualquer indício que justifique a abertura do procedimento investigativo. Pode ser considerada como fonte de informação, com a consequente realização da pesquisa necessária para rastrear sua idoneidade.
É compreensível a elasticidade conferida à notícia inqualificada, principalmente nos casos que envolvem a operação Lava Jato. Quanto maiores os braços da criminalidade, mais recursos legais devem ser disponibilizados para a realização da persecução penal. Assim, apesar do anonimato do informante, a autoridade policial ou o MP pode receber material seguro de convicção para a deflagração do inquérito policial.
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1 Tourinho Filho, Fernando da Costa. Código de processo penal comentado – 3 ed. rev., modificada e ampl. São Paulo: Saraiva, 1998, vol. I, p. 240.
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