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A esperança no recrudescimento do princípio do juiz natural em detrimento das regras de substituição do regimento interno do STF

Há inequívoca incompatibilidade da norma insculpida no artigo 38 do RISTF com o princípio constitucional do juiz natural.

25/1/2017

“Em muitos casos, as pessoas têm vergonha em aplicar a lei. Acho isso uma coisa um pouco lamentável, para não dizer muito lamentável”.

(Teori Zavascki)

A morte de Teori Zavascki, ministro do STF, vem sendo bastante lamentada pela comunidade jurídica e pela sociedade como um todo, seja em função do talento e integridade do jurista (qualidades reconhecidas pelos operadores do Direito e, especialmente, pelos seus colegas de Corte1), seja em razão da seriedade e imparcialidade com a qual o ministro vinha conduzindo a operação Lava Jato.

Independentemente das razões que fundamentam a tristeza brasileira com o ocorrido, fato é que precisamos enxergar o lado positivo de tudo isso (melhor dizendo, é necessário ver o copo meio cheio). Todo acontecimento traz consigo algum aprendizado – e diante da morte de um dos ministros da nossa Corte Suprema, não poderíamos esperar um cenário diferente.

Há algum tempo não se discute com tanto vigor, ainda que de implicitamente, a importância do princípio do juiz natural no direito processual brasileiro – e talvez esse seja um dos muitos legados de Zavascki.

Ousaria dizer, aliás, que o princípio do juiz natural, ainda que sob a luz da jurisdição contemporânea, é um princípio maltratado, lembrado com mais afinco quando estamos diante de violações discrepantes. Todavia, há que se recordar que o princípio do juiz natural é uma garantia fundamental cuja violação não se restringe a casos extremos2 (como ocorre, por exemplo, com a criação de Tribunais de Exceção).

O tema vem ganhando importância e muito tem se discutindo sobre a substituição (sucessão, em verdade) de relatoria dos casos pertencentes a Teori Zavascki, especialmente por conta do futuro da operação Lava-Jato e do receio que se tem quanto a um possível desvirtuamento dos seus rumos.

Nesse diapasão, inúmeros foram os veículos de comunicação que passaram a noticiar a “solução” conferida pelo regimento interno do STF, que, em seu artigo 38, inciso IV, prevê:

“IV – em caso de aposentadoria, renúncia ou morte:
a) pelo ministro nomeado para a sua vaga3;
b) pelo ministro que tiver proferido o primeiro voto vencedor, acompanhando o do relator, para lavrar ou assinar os acórdãos dos julgamentos anteriores à abertura da vaga;
c) pela mesma forma da letra b deste inciso e, enquanto não empossado o novo Ministro, para assinar carta de sentença e admitir recurso”.

Cumpre recordar que, no ano de 2014, com a aposentadoria do ministro Joaquim Barbosa, não houve contestação contundente no que diz respeito a eventual violação do princípio do juiz natural quando Luís Roberto Barroso assumiu a relatoria do “Mensalão” (ação penal 470).

Considerando que Barroso era um juiz “post factum” (embora já integrasse o STF no momento da aposentadoria de Joaquim Barbosa), o princípio do juiz natural dava sinais evidentes da sua fraqueza, apesar da regra expressa constante no artigo 5º, incisos XXXVII e LIII da Constituição Federal4.

Contudo, hodiernamente, a sociedade (ainda que de maneira não técnica) foi capaz de perceber que a regra do Regimento Interno do STF não se coaduna com o princípio do juiz natural, o qual, outrora, em situação semelhante, havia sido vilipendiado. Estaríamos diante do recrudescimento do princípio do juiz natural?

O princípio do juiz natural pode ser definido como sendo um princípio concretizador da segurança jurídica, na medida em que se trata de uma garantia que o cidadão tem de que será julgado por um juiz constitucionalmente competente, imparcial, constituído in abstrato por lei, para o pleno desempenho da função jurisdicional . Trata-se, no dizer de Fernando Tourinho Filho, da “expressão mais alta dos princípios fundamentais da administração da Justiça”6.

Fato é que, em razão da forma de escolha dos ministros do STF7, a regra constante no artigo 38 do Regimento Interno do STF permite a constituição de ministros ad-hoc8, como poderá ocorrer no caso da operação Lava Jato na hipótese de a relatoria dos processos de Zavascki ser automaticamente repassada a um novo ministro indicado pelo presidente Michel Temer.

Ocorre que há inequívoca incompatibilidade da norma insculpida no artigo 38 com o princípio constitucional do juiz natural, o que nos faz crer que a opção que melhor se coaduna com o regramento constitucional seria a redistribuição dos processos entre os ministros restantes (antes da nomeação de um novo ministro, a fim de que não exista qualquer risco de transgressão do citado princípio).

Toda essa discussão nos remete a um problema que, apesar de óbvio, continua assombrando enormemente o Direito: os textos jurídico-normativos somente podem ser considerados válidos se interpretados conforme a Constituição9. E, embora ninguém ouse negar que a Constituição é o parâmetro, muitas vezes ocorrem violações veladas (em outros casos, a própria falta de cultura constitucional faz com que soluções legais e/ou infralegais sejam incessantemente buscadas quando existe norma expressa constitucional autorizativa ou proibitiva).

Não se pode mais negar a importância da Constituição. O constitucionalismo não só é uma conquista do passado, mas o legado mais importante do século XX10. Por esse motivo, devemos sim prestar contas à Constituição, mantendo as suas correntes hígidas “correntes”11. A Constituição é um pré-compromisso – por isso, já nos dizia Lenio Streck: “melhor mesmo é confiar na Constituiço”12. Seria uma demonstração cabal de que não temos vergonha em aplicar a nossa lei.

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1 Como bem ressaltado pelo Ministro Roberto Barroso, “este é um momento muito difícil para o Tribunal, para o Brasil, e para a legião de amigos e de admiradores do ministro Teori Zavascki. Ele era um brasileiro que orgulhava o país por sua integridade, seu patriotismo e seu compromisso com o bem. Era um juiz que também era motivo de orgulho para o tribunal pelo seu talento, pela sua formação técnica, pelo seu senso de Justiça”. Notícias do Supremo Tribunal Federal (Sexta-feira, 20 de janeiro de 2017). Disponível em clique aqui. Acesso: 22/1/2017.

2 A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em seu artigo 8º, n. 1, traz uma definição ampla do princípio do juiz natural: “toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”. Disponível em: clique aqui. Acesso: 21/1/2017.

3 Remissão para o artigo 68 do mesmo Regimento Interno: “Em habeas corpus, mandado de segurança, reclamação, extradição, conflitos de jurisdição e de atribuições, diante de risco grave de perecimento de direito ou nas hipóteses de a prescrição da pretensão punitiva ocorrer nos seis meses seguintes ao início da licença, ausência ou vacância, poderá o Presidente determinar a redistribuição, se o requerer o interessado ou o Ministério Público, quando o Relator estiver licenciado, ausente ou o cargo estiver vago por mais de trinta dias”.

4 Art. 5º, inciso LIII da Constituição Federal: “Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Artigo 5º, inciso XXXVII da Constituição Federal: “Não haverá juízo ou tribunal de exceção”. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: clique aqui. Acesso: 20/1/2017.

5 "Todos têm direito ao julgamento de sua causa por um juiz abstratamente instituído como competente pela lei antes da ocorrência dos fatos originadores da demanda. (...). O Juiz Natural é o juiz legalmente competente, aquele a quem a lei confere ‘in abstrato’ o poder de julgar determinada causa, que deve ter sido definido previamente pelo legislador por circunstâncias aplicáveis a todos os casos da mesma espécie, e não por um juízo discricionário ou com a intenção deliberada de que esta ou aquela causa seja julgada por um ou outro juiz”. GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. Disponível em: clique aqui. Acesso: 23/01/2017.

6 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 285.

7 Art. 84, inciso XIV da Constituição Federal: “nomear, após aprovação pelo Senado Federal, os Ministros do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, os Governadores de Territórios, o Procurador-Geral da República, o presidente e os diretores do banco central e outros servidores, quando determinado em lei”. Op. cit.

8 “Ninguém deve ser protegido por um juiz especial, como ninguém deve ser perseguido por um juiz ad-hoc”. GRECO, Leonardo. Op. cit.

9 Lenio Streck, por diversas vezes, se debruçou sobre esse tema. STRECK, Lenio. Jurisdição Constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 52.

10 Streck estabelece que “a Constituição enquanto conquista, programa e garantidora substancial dos direitos individuais e sociais, depende fundamentalmente de mecanismos que assegurem as condições de possibilidade para a implementação do seu texto”. Idem, p. 99.

11 As Constituições funcionam como as correntes de Ulisses, por meio das quais o corpo político estabelece restrições para não sucumbir ao despotismo das futuras maiorias. BARRETO, Vicente de Paulo; STRECK, Lenio; OLIVEIRA, Rafael Tomaz. Ulisses e o canto das sereias: sobre ativismos judiciais e os perigos da instauração de um “terceiro turno da Constituinte”. Disponível em: clique aqui. Acesso: 22/1/2017.

12 Idem.

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Fabiana Mariotini é advogada do escritório Gasparini, De Cresci e Nogueira de Lima Advogados, atuante nas áreas de contencioso cível, direito do consumidor e propriedade industrial.

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