“Em muitos casos, as pessoas têm vergonha em aplicar a lei. Acho isso uma coisa um pouco lamentável, para não dizer muito lamentável”.
(Teori Zavascki)
A morte de Teori Zavascki, ministro do STF, vem sendo bastante lamentada pela comunidade jurídica e pela sociedade como um todo, seja em função do talento e integridade do jurista (qualidades reconhecidas pelos operadores do Direito e, especialmente, pelos seus colegas de Corte1), seja em razão da seriedade e imparcialidade com a qual o ministro vinha conduzindo a operação Lava Jato.
Independentemente das razões que fundamentam a tristeza brasileira com o ocorrido, fato é que precisamos enxergar o lado positivo de tudo isso (melhor dizendo, é necessário ver o copo meio cheio). Todo acontecimento traz consigo algum aprendizado – e diante da morte de um dos ministros da nossa Corte Suprema, não poderíamos esperar um cenário diferente.
Há algum tempo não se discute com tanto vigor, ainda que de implicitamente, a importância do princípio do juiz natural no direito processual brasileiro – e talvez esse seja um dos muitos legados de Zavascki.
Ousaria dizer, aliás, que o princípio do juiz natural, ainda que sob a luz da jurisdição contemporânea, é um princípio maltratado, lembrado com mais afinco quando estamos diante de violações discrepantes. Todavia, há que se recordar que o princípio do juiz natural é uma garantia fundamental cuja violação não se restringe a casos extremos2 (como ocorre, por exemplo, com a criação de Tribunais de Exceção).
O tema vem ganhando importância e muito tem se discutindo sobre a substituição (sucessão, em verdade) de relatoria dos casos pertencentes a Teori Zavascki, especialmente por conta do futuro da operação Lava-Jato e do receio que se tem quanto a um possível desvirtuamento dos seus rumos.
Nesse diapasão, inúmeros foram os veículos de comunicação que passaram a noticiar a “solução” conferida pelo regimento interno do STF, que, em seu artigo 38, inciso IV, prevê:
“IV – em caso de aposentadoria, renúncia ou morte:
a) pelo ministro nomeado para a sua vaga3;
b) pelo ministro que tiver proferido o primeiro voto vencedor, acompanhando o do relator, para lavrar ou assinar os acórdãos dos julgamentos anteriores à abertura da vaga;
c) pela mesma forma da letra b deste inciso e, enquanto não empossado o novo Ministro, para assinar carta de sentença e admitir recurso”.
Cumpre recordar que, no ano de 2014, com a aposentadoria do ministro Joaquim Barbosa, não houve contestação contundente no que diz respeito a eventual violação do princípio do juiz natural quando Luís Roberto Barroso assumiu a relatoria do “Mensalão” (ação penal 470).
Considerando que Barroso era um juiz “post factum” (embora já integrasse o STF no momento da aposentadoria de Joaquim Barbosa), o princípio do juiz natural dava sinais evidentes da sua fraqueza, apesar da regra expressa constante no artigo 5º, incisos XXXVII e LIII da Constituição Federal4.
Contudo, hodiernamente, a sociedade (ainda que de maneira não técnica) foi capaz de perceber que a regra do Regimento Interno do STF não se coaduna com o princípio do juiz natural, o qual, outrora, em situação semelhante, havia sido vilipendiado. Estaríamos diante do recrudescimento do princípio do juiz natural?
O princípio do juiz natural pode ser definido como sendo um princípio concretizador da segurança jurídica, na medida em que se trata de uma garantia que o cidadão tem de que será julgado por um juiz constitucionalmente competente, imparcial, constituído in abstrato por lei, para o pleno desempenho da função jurisdicional . Trata-se, no dizer de Fernando Tourinho Filho, da “expressão mais alta dos princípios fundamentais da administração da Justiça”6.
Fato é que, em razão da forma de escolha dos ministros do STF7, a regra constante no artigo 38 do Regimento Interno do STF permite a constituição de ministros ad-hoc8, como poderá ocorrer no caso da operação Lava Jato na hipótese de a relatoria dos processos de Zavascki ser automaticamente repassada a um novo ministro indicado pelo presidente Michel Temer.
Ocorre que há inequívoca incompatibilidade da norma insculpida no artigo 38 com o princípio constitucional do juiz natural, o que nos faz crer que a opção que melhor se coaduna com o regramento constitucional seria a redistribuição dos processos entre os ministros restantes (antes da nomeação de um novo ministro, a fim de que não exista qualquer risco de transgressão do citado princípio).
Toda essa discussão nos remete a um problema que, apesar de óbvio, continua assombrando enormemente o Direito: os textos jurídico-normativos somente podem ser considerados válidos se interpretados conforme a Constituição9. E, embora ninguém ouse negar que a Constituição é o parâmetro, muitas vezes ocorrem violações veladas (em outros casos, a própria falta de cultura constitucional faz com que soluções legais e/ou infralegais sejam incessantemente buscadas quando existe norma expressa constitucional autorizativa ou proibitiva).
Não se pode mais negar a importância da Constituição. O constitucionalismo não só é uma conquista do passado, mas o legado mais importante do século XX10. Por esse motivo, devemos sim prestar contas à Constituição, mantendo as suas correntes hígidas “correntes”11. A Constituição é um pré-compromisso – por isso, já nos dizia Lenio Streck: “melhor mesmo é confiar na Constituiço”12. Seria uma demonstração cabal de que não temos vergonha em aplicar a nossa lei.
_________
1 Como bem ressaltado pelo Ministro Roberto Barroso, “este é um momento muito difícil para o Tribunal, para o Brasil, e para a legião de amigos e de admiradores do ministro Teori Zavascki. Ele era um brasileiro que orgulhava o país por sua integridade, seu patriotismo e seu compromisso com o bem. Era um juiz que também era motivo de orgulho para o tribunal pelo seu talento, pela sua formação técnica, pelo seu senso de Justiça”. Notícias do Supremo Tribunal Federal (Sexta-feira, 20 de janeiro de 2017). Disponível em clique aqui. Acesso: 22/1/2017.
2 A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em seu artigo 8º, n. 1, traz uma definição ampla do princípio do juiz natural: “toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”. Disponível em: clique aqui. Acesso: 21/1/2017.
3 Remissão para o artigo 68 do mesmo Regimento Interno: “Em habeas corpus, mandado de segurança, reclamação, extradição, conflitos de jurisdição e de atribuições, diante de risco grave de perecimento de direito ou nas hipóteses de a prescrição da pretensão punitiva ocorrer nos seis meses seguintes ao início da licença, ausência ou vacância, poderá o Presidente determinar a redistribuição, se o requerer o interessado ou o Ministério Público, quando o Relator estiver licenciado, ausente ou o cargo estiver vago por mais de trinta dias”.
4 Art. 5º, inciso LIII da Constituição Federal: “Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Artigo 5º, inciso XXXVII da Constituição Federal: “Não haverá juízo ou tribunal de exceção”. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: clique aqui. Acesso: 20/1/2017.
5 "Todos têm direito ao julgamento de sua causa por um juiz abstratamente instituído como competente pela lei antes da ocorrência dos fatos originadores da demanda. (...). O Juiz Natural é o juiz legalmente competente, aquele a quem a lei confere ‘in abstrato’ o poder de julgar determinada causa, que deve ter sido definido previamente pelo legislador por circunstâncias aplicáveis a todos os casos da mesma espécie, e não por um juízo discricionário ou com a intenção deliberada de que esta ou aquela causa seja julgada por um ou outro juiz”. GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. Disponível em: clique aqui. Acesso: 23/01/2017.
6 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 285.
7 Art. 84, inciso XIV da Constituição Federal: “nomear, após aprovação pelo Senado Federal, os Ministros do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, os Governadores de Territórios, o Procurador-Geral da República, o presidente e os diretores do banco central e outros servidores, quando determinado em lei”. Op. cit.
8 “Ninguém deve ser protegido por um juiz especial, como ninguém deve ser perseguido por um juiz ad-hoc”. GRECO, Leonardo. Op. cit.
9 Lenio Streck, por diversas vezes, se debruçou sobre esse tema. STRECK, Lenio. Jurisdição Constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 52.
10 Streck estabelece que “a Constituição enquanto conquista, programa e garantidora substancial dos direitos individuais e sociais, depende fundamentalmente de mecanismos que assegurem as condições de possibilidade para a implementação do seu texto”. Idem, p. 99.
11 As Constituições funcionam como as correntes de Ulisses, por meio das quais o corpo político estabelece restrições para não sucumbir ao despotismo das futuras maiorias. BARRETO, Vicente de Paulo; STRECK, Lenio; OLIVEIRA, Rafael Tomaz. Ulisses e o canto das sereias: sobre ativismos judiciais e os perigos da instauração de um “terceiro turno da Constituinte”. Disponível em: clique aqui. Acesso: 22/1/2017.
12 Idem.
_________