Ainda está na lembrança da maioria das pessoas que a aprovação da lei de recuperação judicial era uma demanda dos bancos, que queriam regras mais claras e seguras para ter mais facilidade na recuperação de seus créditos. Com isso, tendo-se incluído no projeto de lei algumas regras que efetivamente favoreciam os bancos, prometia-se até que os juros (ou ao menos o spread) cairiam, já que uma parcela deles é destinada à cobertura da inadimplência.
O desembargador Manoel Justino Bezerra Filho, no seu livro editado contemporaneamente à edição da lei, chegou a apelidar o então recém-nascido Diploma de "Lei de Recuperação do Crédito Bancário" – o sarcasmo era, agora vemos, um sinal de como o Poder Judiciário trataria a nova lei, agora já pré-púbere.
Não há espaço, aqui, para uma análise sócio-histórica das razões da simpatia do Judiciário brasileiro pelo devedor – talvez haja, na sua raiz, algum traço de compaixão cristã, quem sabe também a ideia robinhoodesca de "tirar dos ricos para entregar aos pobres" (essa, aliás, uma interpretação bastante particular da lenda, porque o herói não tinha esse pendor socialista: ao contrário, tirava era do governo voraz, para devolver ao cidadão...) – mas muitas vezes ela é bastante visível.
Um exemplo recente: o artigo 6º, §4º, da lei de recuperações, prevê que o stay period (período em que nem mesmo os credores não sujeitos à recuperação podem acionar a devedora) "em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias".
Parece que o legislador não quis deixar dúvidas: o prazo não passaria de 180 dias em nenhuma hipótese. E como se essa expressão já não fosse clara o suficiente, acrescentou uma mensagem direta ao julgador: o prazo é improrrogável.
Mas estamos no Brasil, e o leitor decerto já sabe que o julgador não recebeu a mensagem – ou, se a recebeu, desprezou-a: "o prazo previsto no parágrafo 4º do art. 6º da lei 11.101/05 pode ser prorrogado quando comprovada a sua necessidade para o sucesso da recuperação, bem como não evidenciada a negligência da parte requerente" (AgInt no AREsp 854.437/PR, Rel. ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/09/2016, DJe 19/09/2016).
Não é mais incomum, portanto, que os 180 dias virem um ano, um ano e meio, dois anos... Ou que se prorrogue o período até a data da assembleia de credores, onde Inês, já defunta, comparecerá apenas para o beija-mão.
Justifica-se a afronta à letra da lei com a bandeira do interesse social na preservação das empresas – o que é, sejamos honestos, apenas uma afetação superficial: empresas cambaleantes, que em seis meses, mesmo sem pagar suas dívidas, não conseguem firmar o pé, raramente se recuperam. Os casos de recuperações judiciais efetivamente bem-sucedidas, que sacrificaram credores, mas pouparam empregos, quitaram impostos e devolveram a empresa inteira ao mercado, são raros.
O Judiciário, infelizmente, não tem percebido que uma liquidação rápida e honesta é, no mais das vezes, muito mais eficaz, do ponto de vista social, que a morte lenta nas recuperações: o patrimônio da devedora poderá ser aproveitado por empreendedor mais competente, ou com outra linha de negócios. Os empregos e os impostos voltarão com mais rapidez e vigor.
Mas, não: em nome do bem social, permite-se que aqueles que derrubaram a empresa continuem a comandá-la, sob a bruxuleante batuta de administradores multi atarefados. Na maior parte dos casos, enquanto a falência não vem, os sócios entram no modo salve-se-quem-puder e acumulam-se impostos e salários. Quando vem a quebra, os credores desprivilegiados vão para o fim da fila – e para uma fila muito maior que seria, se a quebra fosse decretada no primeiro sinal de insubsistência.
E a despeito de todos esses evidentes males da demora, a despeito da vedação legal inequívoca, a nossa jurisprudência já garante a prorrogação do stay period como se estivesse previsto em lei.
Claro que os credores muitas vezes não concordam com a prorrogação – muitos conhecem os bastidores do negócio e sabem que houve negligência da devedora, dissipação de patrimônio, negociatas etc. O que lhes cabia fazer era, claro, interpor o agravo de instrumento, contra a decisão de prorrogar.
Era uma possibilidade legal de reversão desse novo período de suspensão e, pelo menos, um consolo para o credor insatisfeito.
Mas eis que o incansável legislador decidiu alterar, agora, o CPC. E limitou as possibilidades de agravo de instrumento às hipóteses do artigo 1.015 que, evidentemente, não cuidam de decisões proferidas em recuperações judiciais: o inciso XIII, lançado para cobrir algum furo na lista que o precede, prevê que cabe o recurso nos "outros casos expressamente referidos em lei".
E agora, surpresa das surpresas, começam a sobrevir decisões (Agravo n. 1.615.084-2, do TJ/PR, por exemplo) que não conhecem do agravo de instrumento porque não prevista a hipótese no Código Ritual – e não aplicam o inciso XIII porque, ora vejam, a lei de recuperação judicial também não o prevê para a decisão que prorroga o stay period.
Evidente que não: a lei jamais poderia prever que caberia algum recurso contra a decisão que, segundo ela mesma, não pode ser tomada em hipótese nenhuma.
O resultado, além da perplexidade de quem recebe uma notícia como essa, é que a decisão monocrática, de primeira instância, que submete uma comunidade de credores à espera ilegal, não pode ser revista em segunda instância. Claro, o credor poderá tentar contornar a situação por meio do mandado de segurança, mas não será de se estranhar que a sua pretensão fique presa na implacável barreira da inexistência de direito líquido e certo, de que se trata de questão que demanda dilação probatória...
É só um exemplo, enfim, de como Legislativo e Judiciário, cada qual com sua agenda, não têm um diálogo produtivo e terminam, assim, sacrificando a segurança jurídica e, em última análise, o cidadão: basta ver que até hoje nem o spread, nem os juros, caíram por conta da reforma legal. E recuperar créditos é hoje mais incerto que antes.
Enquanto cada um tiver o seu próprio projeto de país, não teremos país nenhum.
_____________