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O óbvio que não se vê: a nova forma do princípio da fungibilidade

Se há um princípio cuja função e cujo alcance têm que ser repensados atualmente, é o princípio da fungibilidade. Habitualmente, restringe-se o âmbito de incidência deste princípio à esfera dos recursos. Isto porque havia previsão expressa a respeito do art. 810 do CPC de 1939, pois já se sabia que o sistema recursal do Código revogado poderia gerar, como de fato gerava, uma série de dúvidas, quanto a qual seria o recurso adequado. Com a sistemática recursal implantada pelo CPC de 1973, o ato da escolha do recurso adequado se tornou mais simples. Ciente disso, o próprio legislador não incluiu expressamente no Código, o princípio da fungibilidade.

22/5/2006


O óbvio que não se vê: a nova forma do princípio da fungibilidade 

Teresa Arruda Alvim Wambier*
 

 

Se há um princípio cuja função e cujo alcance têm que ser repensados atualmente, é o princípio da fungibilidade. Habitualmente, restringe-se o âmbito de incidência deste princípio à esfera dos recursos. Isto porque havia previsão expressa a respeito do art. 810 do CPC de 1939, pois já se sabia que o sistema recursal do Código revogado poderia gerar, como de fato gerava, uma série de dúvidas, quanto a qual seria o recurso adequado. Com a sistemática recursal implantada pelo CPC de 1973, o ato da escolha do recurso adequado se tornou mais simples. Ciente disso, o próprio legislador não incluiu expressamente no Código, o princípio da fungibilidade.

 

Como era de se esperar, todavia, a realidade logo se mostrou mais rica e mais complexa do que a imaginação do legislador e, embora mais raramente do que ocorria no sistema anterior, começaram efetivamente a surgir hipóteses em que havia realmente dúvidas,  expressadas na doutrina e refletidas na jurisprudência discrepante, a respeito de qual seria o recurso adequado para esta ou aquela situação.

 

Logo se viu que o princípio da fungibilidade não era dispensável!

 

Desde então, até os presentes dias, se entende que este princípio integra o sistema, e deve incidir toda vez que houver hesitação, quer no plano da doutrina, quer no plano da jurisprudência, quanto a qual seria o recurso “correto”.

 

Na verdade, e é relevante que este aspecto seja devidamente realçado, não se trata de haver um único recurso adequado (o que implica que o outro seria inadequado !), mas se trata de se estar diante de uma situação que enseja DÚVIDA: segundo alguns autores ou segundo determinados tribunais, seria um o recurso correto; segundo outros autores e/ou outros tribunais, seria OUTRO, o recurso adequado.

           

O de que a doutrina ainda não se deu conta de forma satisfatória é que este princípio tem um espectro de incidência muito mais amplo.

 

Esta afirmação é decorrência direta e inexorável da razão de ser deste princípio, tão afeiçoado à processualística contemporânea: não pode a parte ser prejudicada pela circunstância de doutrina e jurisprudência não terem chegado a um acordo quanto a qual seja o meio adequado para se atingir, no processo, determinado fim. Ora, afinal, se nem estudiosos do processo ou magistrados têm certeza a respeito de qual seja o caminho adequado em certas situações, a parte é que teria o dever de o saber?

 

Não só na esfera dos recursos ocorrem situações como esta. Com efeito, às vezes a parte fica em dúvida até quanto ao tipo de ação deve manejar! ...

 

Muitos são os exemplos extraídos do dia a dia. Como se faz o depósito com o objetivo de suspender a exigibilidade do crédito tributário? No bojo do mandado de segurança? Por meio de uma ação cautelar? Ou se trata de depósito, que pode ser feito sem que haja ação em curso?

 

Como se consegue o “destrancamento” dos recursos excepcionais, nos casos em que, pela letra da lei, deveriam ficar retidos, mas esta retenção implicaria ofensa a princípios constitucionais? Deve-se entrar com uma ação cautelar? Ou basta um mero pedido? Aliás, junto a que órgão, tribunal a quo ou ad quem?

 

É conhecida a posição minoritária considerando não ser agravável decisão liminar concedida em mandado de segurança, mas impugnável por outro mandado de segurança. Esta posição conta com respeitável apoio doutrinário e alguma jurisprudência a favor. Mas, e isto me parece óbvio, nenhum agravo pode ser obstado, no juízo de admissibilidade, por não ser cabível: deve o Tribunal, onde esta posição prevalece, RESSALVAR seu entendimento e examinar, no mérito, o  pedido formulado pela parte. 

 

Este é um ponto que merece reflexão: o princípio da fungibilidade não deve gerar a necessidade de “conversão” de um meio, no outro. Como conseqüência inexorável e inafastável da incidência do princípio, tem-se o exame do pedido da parte e a aceitação do MEIO eleito por ela, desde que se esteja diante de uma zona cinzenta. A necessidade de “conversão” não é inerente à idéia que está por detrás do princípio da fungibilidade, até porque, dificuldades de ordem procedimental poderiam levar alguém a concluir no sentido de que, por serem insuperáveis tais dificuldades, o princípio não deveria incidir.

 

Necessário que se volte a repisar, correndo-se o risco da repetitividade: pressuposto da incidência deste princípio é a existência de uma ZONA CINZENTA. Esta zona cinzenta é significativa da existência de opiniões divergentes manifestadas no plano doutrinário e jurisprudência conflitante no PAÍS, (não importando, para fins de incidência do princípio da fungibilidade, que haja unanimidade a respeito do tema no Tribunal) sobre qual seja o veículo correto para formular determinado pedido ou pretensão perante o Poder Judiciário. Obviamente, esta situação não tem lugar exclusivamente no plano dos recursos. E razão genuinamente jurídica inexiste para que não se faça incidir em casos fora desta esfera o princípio da fungibilidade.

 

Reparem, aliás, que esta visão em que se propõe seja aceito um recurso por outro (e não que seja CONVERTIDO um recurso no outro) elimina até mesmo a conhecida controvérsia a respeito da necessidade de se exigir que o prazo observado seja sempre o menor, caso a dúvida exista entre recursos com prazos diferentes. Segundo o que se propõe nestas anotações, o recurso pelo qual a parte terá optado será julgado como tal, e não como se fosse outro recurso. Esta afirmação, em nosso sentir, aplica-se a todas as outras hipóteses, inclusive a ações.

 

O exemplo que nos parece mais expressivo no campo da ações é o da dúvida que pode haver quanto à escolha entre a ação rescisória e a “actio nullitatis” (“querela nullitatis” ou ação declaratória de inexistência jurídica do processo e da sentença), no caso de se estar diante de sentença de mérito proferida sem que tenha havido citação de litisconsorte necessário.

 

Segundo alguns, sem que integrem a relação processual todos os litisconsortes necessários, não se pode considerar ter-se triangularizado a relação processual: é como se uma das “partes” não estivesse “completa”.

 

Assim, rigorosamente, a sentença não chegaria nem mesmo a transitar em julgado porque não teria aptidão para tanto. Logo, na verdade, nada haveria a rescindir-se e o correto seria o manejo de ação meramente declaratória.

 

Por outro lado, não se pode negar ter havido ofensa à literal disposição de lei, pelo que a rescisória (com o prazo de dois anos), poderia considerar-se o meio adequado para impugnar tal decisão.

 

Este é um caso em que, ao meu ver, devem-se admitir ambas as ações e julgá-las, no mérito, tal como foram propostas: evidentemente, ou uma, ou outra. E não pedir à parte que emende a inicial “convertendo-se” uma na outra, até porque haveria problemas, por exemplo, ligados à competência que, no caso da ação rescisória, como se sabe, é do 2º grau de jurisdição.

 

É necessário que se compreenda a dimensão do erro que se está cometendo quando se afirma que neste ou naquele caso, o princípio da fungibilidade não poderia incidir porque (embora presentes os pressupostos de sua incidência) seria concretamente impossível proceder-se à conversão de um meio no outro, por razões ligadas a competência ou de ordem procedimental.

 

As figuras e os institutos do processo são frutos de convenções. Há um acordo na comunidade jurídica a respeito do que seja processo (uma relação jurídica trilateral que se estabelece entre autor, juiz e réu), sobre o que seja a preclusão ou a coisa julgada. São figuras “inventadas”.

 

Dentre estas convenções, existem aquelas que são meras convenções, cuja existência é necessária para tornar o sistema operativo e funcional. Existem outras, todavia que, embora sejam convenções, traduzem conquistas, avanços da civilização, a que, portanto, deve se dar prioridade, em caso de se ter que escolher. Eu diria que estas convenções traduzem uma maior compreensão a respeito da adoção de valores que proporcionam ao ser humano uma vida melhor.

 

Exemplo do primeiro caso, são as regras de competência. São convenções imprescindíveis, mas de valor meramente instrumental. Exemplo do segundo caso, são as regras atinentes à citação, que indubitavelmente são reflexo de uma visão político-jurídica do Estado democrático de Direito.

 

Significa atribuir equivocadamente valor diferenciado àquelas regras (meras convenções de função instrumental) em detrimento deste tipo de regra (este último de que tratei: regras em que se consubstanciam em conquistas do homem), afirmar-se, por exemplo, que não se pode aplicar o princípio da fungibilidade entre mandado de segurança e reclamação, porque, pura e simplesmente, não haveria como converter uma medida na outra !!

 

Imperativo, portanto, que se afaste de vez a idéia de que a conversibilidade é pressuposto da possibilidade de incidência do princípio da fungibilidade, este sim que privilegia valores ligados às conquistas do homem.

 

É o que se vê no acórdão que julgou a apelação nº 205.864-5/5, da Comarca de São Paulo, cujo relator foi José Roberto Bedaque: “Não obstante tenha o apelante impetrado mandado de segurança depois de vencido o prazo de 120 dias, contado do primeiro indeferimento administrativo, a ausência de interesse-adequação revela-se irrelevante a esta altura. Como se trata de questão exclusivamente de direito, não há diferença entre modalidades de tutela – mandamental e declaratória – para o fim de fixação dos limites da controvérsia. Eventuais especificidades do procedimento previsto na lei especial já foram superadas. Uma delas, aliás, é a liminar, não concedida na situação em exame. No mais, não há distinção substancial entre os modelos processuais estabelecidos em lei para as duas modalidades de tutela. No caso, a autoridade coatora defendeu adequadamente o ato impugnado, deduzindo todos os argumentos jurídicos normalmente utilizados em situações análogas. Em sede recursal, a pessoa jurídica de direito público interveio, por procurador regularmente habilitado, oportunidade em que também justificou a legalidade do ato. Em síntese, não houve qualquer prejuízo ao contraditório. Os efeitos práticos de ambas as tutelas também são idênticos: o reconhecimento do direito à sexta-parte. Por tudo isso, a ausência de interesse processual quanto à tutela mandamental, pelo decurso do prazo de 120 dias, não constitui mais óbice ao julgamento do mérito. O reconhecimento da carência da ação nesta oportunidade não condiz com a natureza instrumental do processo”.

 

A única explicação que imaginamos possa ser atribuída à circunstância de a doutrina ainda não ter visto com clareza as idéias aqui expostas e nem os tribunais, com algumas raras e honrosas exceções. Dentre estas exceções, inclui-se acórdão cujo relator foi o eminente processualista, Ministro Cezar Peluso, em que se lê: “Cumpre desde logo reconhecer a admissibilidade da via eleita. A propósito, a Corte ainda não firmou posição definitiva, oscilando entre considerar adequada ora a reclamação, ora medida cautelar, ou até o agravo de instrumento, para que a parte prejudicada com a retenção do recurso extraordinário, na forma do art. 542, § 3º do CPC, lhe obtenha processamento imediato. (...) Nos termos dos dois primeiros precedentes, que consideraram admissíveis tanto reclamação quanto medida cautelar incidental, tenho por curial qualquer das três vias.Em primeiro lugar, porque, diante da incerteza da jurisprudência do Tribunal, não seria lícito prejudicar a parte com o eventual não conhecimento do remédio que, dentre aqueles, se entenda impróprio. Em segundo lugar, porque a pretensão de que se cuida – o desbloqueio de recurso extraordinário retido, cujo julgamento compete à Corte – parece quadrar no âmbito de admissibilidade das três medidas processuais, que, para esse efeito, devem ter-se por fungíveis”.1 [destaques nossos]

 

Existem, com toda a certeza, medidas legítimas e saudáveis para o sistema que levam a este resultado, ou seja, à diminuição da carga de trabalho dos tribunais, como p. ex., a adoção da súmula vinculante, do instituto da repercussão geral e os próprios arts. 557 e 518 (em sua nova redação), se interpretados adequadamente.

 

Mas quero crer que não devem estar entre elas conclusões a que se chega a partir de uma visão angustiada e retorcida do princípio da fungibilidade, que, indubitavelmente, arranha doloridamente o ideal legítimo do acesso à justiça.

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1 Petição 3598 MC/RJ, Relator Min. Cezar Peluso. DJU 10.2.2006.

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* Advogada do escritório Arruda Alvim Wambier Advocacia e Consultoria Jurídica

                       

 

 

 

 

 

 

 

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