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O STJ e a subversão das garantias creditícias

Para o STJ a aprovação do plano em Assembleia, pela respectiva classe vincula a todos os credores e afasta a necessidade da anuência "expressa do credor titular da respectiva garantia" exigida pela lei.

9/12/2016

O STJ vem causando frisson na comunidade jurídica. Em recente julgamento, a Terceira Turma, sob a relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, deu provimento ao REsp 1.532.943/RJ, para, a pretexto da aplicação do princípio da par conditio creditorum, possibilitar que garantias reais fossem suprimidas, sem anuência dos credores. Verdadeiro confisco autorizado pela Corte Superior, sobretudo ante a redação dos arts. 50, §1º, 56, §3º, e 59, da lei 11.101/05.

A celeuma teve origem em Recuperação Judicial cujo plano previu, numa de suas cláusulas, a supressão de garantias reais e fidejussórias. Aprovado em Assembleia Geral de Credores (por maioria, na classe dos credores com garantias reais), o plano foi homologado, com a ressalva, pelo Juízo de primeiro grau, de que a disposição se aplicaria, apenas, aos credores que votaram pela aprovação do plano de recuperação judicial. Instaurou-se, aí, a discussão. O Tribunal Estadual manteve o entendimento, atento à redação dos artigos em voga.

É sabido – e nem poderia ser diferente - que a lei falimentar exige, textualmente, a anuência do credor titular da garantia real para suprimir ou substituir a proteção creditícia. Para o STJ, porém, a aprovação do plano em Assembleia, pela respectiva classe –ainda que não à unanimidade, mas pela maioria prevista em lei – vincula a todos os credores e afasta a necessidade da anuência "expressa do credor titular da respectiva garantia" exigida pela lei.

Com o devido respeito, parece-nos porém, que a Egrégia Corte confundiu "alhos com bugalhos" – e o resultado, nesse racional, não poderia ser juridicamente satisfatório.

Não se desconhece que a credores de mesma classe deva ser dispensado tratamento paritário, igualitário, isonômico: se aprovado o plano de recuperação pelo quórum determinado em lei, suas estipulações aproveitam indistintamente a todos os credores. Contudo, não é essa, em verdade, a matéria submetida à cognição do STJ.

A questão cervical é anterior. Plano de recuperação judicial que preveja a supressão ou substituição de garantias reais à revelia dos credores delas titulares é inarredavelmente contra legem. Não há como homologar tal plano, aprovado pela maioria dos credores, a pretexto da necessidade da recuperação da empresa: A recuperação da empresa é, inegavelmente, um instrumento valioso, porém ela não é um valor absoluto, que se coloca acima da lei: para que ela ocorra torna-se necessária a obediência ao sistema normativo. Não é possível pensar-se na possibilidade de recuperação empresarial, mediante o confisco de direitos alheios.

A problemática parece bem clara. Não bastasse o absurdo de admitir-se que a aprovação majoritária do plano de recuperação possa afastar a necessidade da anuência exigida pelo disposto no art. 50, §1º da lei falimentar, a gênese do equívoco encontra-se no próprio plano de recuperação, que jamais poderia incluir previsão nitidamente ilegal. Cabe dizer, ainda, que se credores com garantia real, que por lei integram a classe II, decidem abrir mão de sua garantia, eles tornam-se credores quirografários e, assim, devem votar na classe III. O que não pode ocorrer é haver uma votação "interna corporis", a maioria votando pela supressão das garantias em detrimento da minoria. A manutenção das garantias não viola o princípio da "par conditio creditorum", pois todos os credores da mesma classe ostentam a mesma situação jurídica antes da AGC. A decisão da maioria, aprovando um plano “contra legem”, e sua homologação judicial é que geram o confisco do direito de determinados credores.

O plano de recuperação que prevê supressão de garantias reais sem anuência expressa do credor titular de cada garantia não poderia ter sido aprovado, e na tentativa de se ladear o obstáculo, criou-se cenário verdadeiramente atroz: se a aprovação e homologação do plano dependiam da convalidação de uma cláusula nula, ilegal, então a situação da empresa recuperanda era, de fato, falimentar. O plano não poderia ter sido homologado. A tentativa de afastar a ilegalidade, muito embora bem-intencionada, acabou por abrir portas ao entendimento do STJ.

O absurdo é tão gritante que chega a dificultar a crítica. Ao violar frontalmente texto literal de lei, o acórdão possibilita um verdadeiro confisco de um direito legítimo. A garantia real é direito sobre bem alheio. Como é que este direito pode ser destruído por decisão majoritária de uma Assembleia? Mesmo que não houvesse uma disposição expressa na lei vedando tal possibilidade, esta inexistiria por absolutamente contrária aos princípios jurídicos e à própria natureza do direito em foco. O que dizer, ainda, do credor de garantia fiduciária, cujo direito real de aquisição (por definição da lei civil, na forma do art. 1.368-B) sequer se submete aos efeitos da recuperação judicial, na forma ao art. 49, §3º da lei 11.101/05. Impossível não notar o contraponto. Não estaria aí a ofensa à isonomia?

O direito real do credor é neutralizado à sua revelia e pior, o acórdão do STJ não cuidou sequer de indicar quais as consequências do que decidiu. A qual classe pertencerá, agora, o credor cuja garantia fora suprimida? Será ele quirografário? A classe dos credores com garantia real deixará de existir no caso? E na hipótese de convolação em falência, qual a classificação do crédito deste credor?

Não é demais ponderar que a decisão tem efeitos econômicos desastrosos e de proporções alarmantes, pois coloca em xeque a única (ou uma das únicas) formas de resguardo do credor que, agora, toma conhecimento de que sua garantia é meramente condicional, eficaz apenas enquanto a empresa for financeiramente saudável, não porém na hipótese de grave crise financeira. Logo, não se pode falar em "garantia". Que "garantia" é essa que nada garante ? E o mais contundente é que a subversão do sistema de garantias se faz a pretexto da preservação da empresa devedora – às custas, porém, da empresa credora, e, pior ainda, da segurança jurídica das relações comerciais e econômicas agora certamente prejudicadas pela diminuição do crédito como um todo, pois evidentemente essa decisão implicará profunda redução do crédito.

Jus est ars boni et aequo: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere (o direito é a arte do bom e do justo: viver honestamente, não lesar outrem, dar a cada um o que é seu). É de fundamental importância que o Poder Judiciário retome o rumo da lei.
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*Lionel Zaclis é consultor do escritório Azevedo Sette Advogados.






*Danielle Chipranski Cavalcante é advogada do escritório Azevedo Sette Advogados.

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