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Para além do CADE: o enforcement privado do antitruste pelo Poder Judiciário

Aqueles que se sentirem prejudicados poderão ingressar em juízo em defesa de seus interesses individuais ou coletivos com base na lei de defesa da concorrência.

28/11/2016

Além do maior rigor, na esfera administrativa, no combate às práticas anticoncorrenciais (public enforcement), deve-se registrar a crescente importância da alternativa judicial para que particulares possam buscar a cessação de condutas anticompetitivas, bem como a indenização pelos prejuízos sofridos (private enforcement). Isso porque, hoje, a análise de questões como essas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) não é a única forma pela qual condutas potencialmente anticompetitivas podem ter seus efeitos identificados e seus autores responsabilizados.

A nova lei antitruste brasileira (lei 12.529/11) não poderia ser mais clara a respeito em seu artigo 47, que trata do direito de ação: ao fazê-lo, deixa claro que aqueles que se sentirem prejudicados poderão ingressar em juízo em defesa de seus interesses individuais ou coletivos com base na lei de defesa da concorrência, independentemente do inquérito ou processo administrativo, que não será suspenso em virtude do ajuizamento daquela ação.

A lei antitruste faz referência ao Código do Consumidor, que trata da tutela judicial coletiva, ou seja, da defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. Espelhando o consagrado modelo processual do Código do Consumidor, a nova lei da Concorrência brasileira explicitou, dessa forma, um amplo esquema de tutela judicial da defesa da livre concorrência, ou seja, toda uma gama de possibilidades externas ao âmbito administrativo do CADE e dele independente – além dos prejudicados, Ministério Público, entes federativos, entidades da Administração Pública e associações são convidados ao protagonismo judicial para a promoção do princípio constitucional da livre concorrência, um dos pilares da Ordem Econômica (Constituição, art. 170, IV).

Isso não significa que o Judiciário estivesse afastado do direito antitruste no regime da lei anterior, pois esta já continha norma parecida (art. 29 da lei 8.884/94), mas que a possibilidade da tutela judicial agora é aggiornata e estimulada pela nova lei, enfatizando-se sua independência em relação à esfera administrativa, o que configura um importante aprimoramento institucional do sistema de defesa da concorrência no Brasil.

Em outras palavras, contrariando o senso comum, falar de defesa da concorrência hoje no Brasil é muito mais do que falar do CADE. Significa compreender que a já consagrada tradição do direito do consumidor de tutela judicial de interesses individuais e coletivos pode ser integralmente aplicada para a proteção do bem jurídico da livre concorrência.

Diante disso, empresários de todos os setores que se sentirem prejudicados por condutas potencialmente anticoncorrenciais podem e devem recorrer ao Judiciário para fazer cessar imediatamente as condutas ilícitas e buscar a reparação pelos prejuízos provocados. O CADE pode ser chamado a contribuir no processo judicial, bem como pode, a seu critério, também dar início a procedimento administrativo, independentemente – insistimos – dos desdobramentos da ação na esfera do Judiciário.

Essa nova sistemática foi enfatizada na manifestação oficial do governo brasileiro em importante relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) sobre a matéria. Após iniciar esclarecendo que a nova lei brasileira possui duas modalidades de enforcement antitruste, a pública e a privada, o texto enfatiza que elas são completamente independentes entre si: "sob a égide da lei da Concorrência, portanto, são independentes os enforcements público e privado. Não é necessário que haja uma decisão final da autoridade antitruste brasileira (CADE), nem mesmo que haja procedimento administrativo instaurado, para que se possa propor uma ação judicial em busca de indenização por prejuízos decorrentes de infração às regras de defesa da concorrência" (OECD, Competition Committee, "Relationship Between Public and Private Antitrust Enforcement", 2015).

Embora, dentre outros motivos, por razões de natureza cultural, ainda seja incipiente no direito antitruste brasileiro a prática do private enforcement, especialmente para reclamar a reparação por danos, prossegue o documento, é imperativo que esse mecanismo passe a ser mais utilizado de modo a se conferir maior efetividade ao direito antitruste. A total independência entre as esferas administrativa e judicial não implica ausência de coordenação. Ao contrário, há enorme sinergia entre o enforcement privado e o público. O desejável aumento de proposição de ações judiciais para fazer cessar ilícitos e buscar a reparação de danos dará significativa contribuição para a efetividade da defesa da concorrência.

Estarão os juízes brasileiros conscientes dessa tarefa e devidamente equipados para enfrentá-la?
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*Jean-Paul Veiga da Rocha e Diogo R. Coutinho são professores da Faculdade de Direito da USP.

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