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A lei e a morte encefálica

Juridicamente é relevante estabelecer o momento da morte.

20/11/2016

O homem, na história do universo, vive um singelo ciclo e quase sempre cumpre todas as etapas programadas pela biologia, porém, em razão da evolução natural e da procura por um viver melhor, estabelece condições para que possa realizar todos os seus objetivos. Tanto é que, no regramento constitucional brasileiro, vêm explicitados os princípios da proteção à vida, dentre eles, com relevo, o da dignidade da pessoa humana, para que haja a efetiva proteção desde a vida intrauterina, infantil, adolescência, adulta e idosa, compreendendo, portanto, o orior (nascer) e o morior, ( morrer) dos romanos.

Juridicamente é relevante estabelecer o momento da morte. Este, no entanto, é da competência exclusiva da medicina que, dentre os critérios existentes, irá apontar a causa e a forma pelo qual se deu o passamento. Um dos critérios que guarda relevante interesse para a área jurídica é o da decretação da morte encefálica. Pode até se ter a impressão de que se trata de uma faculdade discricionária outorgada ao médico para que possa declará-la de acordo com sua conveniência. Ocorre, no entanto, que há um rigoroso protocolo a ser seguido para atingir tal objetivo.

A morte encefálica, resumidamente, é aquela que ocorre quando ausentes as funções neurológicas, com total irreversibilidade das funções do cérebro. A sua decretação exige a realização de exames clínicos por dois médicos em pelo menos duas oportunidades, com acentuado intervalo de horas, com a finalidade de constatar a ausência dos reflexos cerebrais. Recomenda-se, também, a realização de outros exames, como, por exemplo, o eletroencefalograma, a cintilografia de perfusão cerebral, arteriografia, doppler, etc.

O tronco cerebral, que faz parte do encéfalo, responsável por todas as estruturas nervosas do corpo humano e de suas funções vitais, como o batimento cardíaco, respiração, sentimento, pressão arterial, pode ser considerado o administrador do grande latifúndio chamado corpo humano. Tanto é que, feito o diagnóstico de morte encefálica, apesar do paciente continuar “vivo”, é considerado legalmente morto. E as nossas legislações seguem rigorosamente o brocardo latino mors omnia solvit. Assim é que, a título de exemplo, o artigo 6º do Código Civil é taxativo em afirmar que a existência da pessoa natural termina com a morte e o Código Penal, por sua vez, no artigo 107, inciso I, estabelece que a morte do agente faz extinguir a punibilidade.

A definição na legislação brasileira vem consubstanciada no artigo 3º da Lei nº 9.434/97, in verbis: “A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina”.

Tal definição orientou o STF na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54), quando decidiu, por maioria de votos, pela autorização de aborto de feto anencéfalo, aquele desprovido do encéfalo e da calota craniana. É interessante destacar, nesta oportunidade, que foi afastada a pretensão de doação de órgãos de fetos anencéfalos, isto porque seria um contrassenso obrigar a mulher a manter a gravidez para viabilizar a doação de órgãos.

Não se pode confundir, desta forma, a decretação da morte encefálica com o estado de coma, pois neste estágio as funções cerebrais do paciente se encontram ativas. Também nenhuma semelhança com a eutanásia ativa, conhecida como homicídio piedoso ou caritativo, em que o agente pretende antecipar a morte do paciente que se encontra em estado de irreversibilidade. A morte ocorre em razão da conduta eutanásica, enquanto que na morte encefálica o paciente já se encontra morto e nenhuma conduta é realizada para tal objetivo, a não ser constatar a morte que já ocorreu.

Tamanha a importância de definição do momento da morte que, se após a decretação médica da falência encefálica, alguém praticar algum ato contra o paciente com a intenção de matá-lo, esbarrará no crime impossível e responderá, se for o caso, pelo crime de vilipêndio a cadáver.

Assim, a tão próxima e desconhecida morte ocorre pelos seus inenarráveis desígnios ou até mesmo, em algumas circunstâncias especiais, é reconhecida pela lei do homem. Em qualquer caso, é de se considerar que ela faz parte da própria vida. É o seu protocolo final. Cabe aqui a pureza e a intensidade da prece que o inconfundível poeta popular Patativa do Assaré dirigiu à morte: “Morte, você é valente/ o seu poder é profundo/ quando cheguei neste mundo/ você já matava gente./ Eu guardei na minha mente/ este seu grande rigor/ porém lhe peço um favor/ para ir ao campo santo/ não me faça sofrer tanto/ morte, me mate sem dor”.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em Direito Público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, reitor da Unorp e membro ad hoc da CONEP/CNS/MS.


 

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